COLABORADORES

A mãe suficientemente boa

Para a Psicanálise, o indivíduo humano não é um objeto da natureza, mas um sujeito que, para existir, precisa do cuidado e atenção de outro ser humano. O psicanalista inglês D. W. Winnicott vai dizer que não existe o bebê, mas sim o bebê com sua mãe. Enfatiza que a mãe intervém como ativa construtora do espaço mental da criança, formando com ela quase que uma verdadeira unidade.

A mãe suficientemente boa ajuda a formar a mente do bebê, possibilitando-lhe a experiência da onipotência primária, base do fazer criativo: o bebê crê que ele cria o mundo. Essa percepção criativa do mundo é uma experiência do self, núcleo singular do sujeito. Winnicott acredita que a localização do self no corpo não é uma experiência dada desde sempre, mas sim fruto do desenvolvimento saudável.

A relação com a mãe leva o bebê a administrar a própria espontaneidade e as expectativas externas. A mãe suficientemente boa aceita, consciente ou inconscientemente, as expressões do bebê: a fome; os incômodos; o prazer; o desejo. Ela não impõe o que pensa ser o certo, mas permite ao filho ter experiências nas quais ele é sempre sujeito. Assim, o bebê forma seu verdadeiro self.

Se, por outro lado, o bebê é tido como objeto e se constrói em função da vontade alheia, o seu self será falso. O indivíduo será privado de liberdade, espontaneidade e criatividade. A mãe que não consegue ser suficientemente boa não proporciona ao bebê que ele se constitua como sujeito independente.

Winnicott explica que não é necessário a mãe ter uma compreensão intelectual de sua função ou tarefas. Para ele, a mãe está preparada para a mesma, em sua essência, pela orientação biológica em relação ao seu próprio filho. Implica mais o fato de sua devoção do que de sua compreensão para que seja suficientemente boa para obter sucesso nas primeiras etapas da vida do bebê. É exatamente quando ela confia em seu próprio julgamento que está em sua melhor forma.

A prática de executar o que lhe parece correto vai habilitá-la a descobrir e usufruir da plenitude da maternidade. Ela também se permite surpreender-se no contato direto com seu filho. Pois é, desse modo, ao se sentir livre para agir, que ela aprimora-se na função materna.
Inicialmente, como já foi sugerido, o vínculo entre a mãe e o bebê é muito intenso. Não apenas para a mãe essa experiência é forte e poderosa; também o bebê precisa desse tipo de ambiente protetor e confiável.

 

O adulto saudável, para Winnicott, é aquele que teve, na infância, nas primeiras semanas e meses, estabelecidos os alicerces de sua saúde psíquica. Para o bebê tornar-se sujeito, é imprescindível que o mesmo seja, desde o início, reconhecido como pessoa e não como objeto. Por exemplo, o bebê não se importa tanto que lhe deem a alimentação substancial na hora precisa, mas que seja alimentado por alguém que ama alimentá-lo.

Para constituir-se, o bebê não pode dispensar do prazer da mãe ao exercer sua função materna. Se cada tarefa do cuidado é executada com prazer isso é estruturante para o sujeito. Winnicott utilizará a seguinte metáfora: é algo como o raiar do sol para o bebê. O prazer materno de estar realmente presente nesta relação leva o bebê ao seu desenvolvimento pleno.

Entretanto se, para a mãe, cada tarefa ou toda a função materna é monótona, inútil, mecânica ou precária, o bebê não se estrutura. Definha ou adoece. Apesar disso, Winnicott enfatiza que cada bebê é uma “organização em marcha”: seu ímpeto para a vida, para o crescimento e o desenvolvimento é uma parcela da centelha vital que cada bebê carrega consigo. Daí sua esperança no que poderíamos denominar de “cura” terapêutica nos futuros adultos adoecidos.

Nos primeiros dias, é o padrão ou a técnica do cuidado da mãe que o bebê percebe, bem como os detalhes de seu mamilo, o formato de suas orelhas, a qualidade de seu sorriso, o hálito e outros aspectos físicos. Mais à frente, ele terá uma rudimentar ideia da totalidade da mãe, em certos momentos especiais. Independente do que o bebê possa ou não perceber, ele precisa que a mãe esteja constantemente presente como uma pessoa inteira.

Pois apenas pessoas inteiras – um ser humano total – podem amar e possuir o caráter necessário para exercer suficientemente bem a função materna. Decorre daí a afirmação de Winnicott que um bebê não existe sozinho, sendo essencialmente parte de uma relação.
Para o terapeuta inglês, a mãe é necessária como pessoa viva: o bebê deve sentir o calor de sua pele; deve prová-la e vê-la. Deve existir completo acesso ao corpo vivo da mãe.

Sem esta presença vital, nenhuma técnica, receita ou conselho valem. Porque a presença física real da mãe satisfaz necessidades emocionais profundas da criança. Nos primeiros tempos, dessa forma, o amor deve manifestar-se essencialmente em termos físicos. A vivacidade da mãe e sua orientação somática fornecem para o bebê um ambiente psicológico e primordial para seu desenvolvimento emocional.

Em seguida, a mãe é necessária para apresentar o mundo ao bebê. Ela é sua mediadora da realidade externa. Sendo uma pessoa total e agindo de modo suficientemente saudável, a mãe ajudará o bebê a desenvolver em si a convicção de que o mundo contém o que é amado e necessário. Cria no bebê esperança e confiança de que há entre a realidade externa e sua realidade interna uma relação viva. Tal harmonia e equilíbrio, sempre flutuantes, incentivam a capacidade criadora, inata e primária, e criam o mundo que é compartilhado por todos os humanos.

A terceira maneira em que a mãe é necessária está na capacidade materna de desilusionamento. Foi ela quem capacitou à criança a ilusão de que o mundo foi criado a partir de suas necessidades e imaginação. Agora, terá de levá-la através de um processo de desilusionamento, que constitui um aspecto mais vasto do desmame – ou poderíamos também dizer da castração.

O psicanalista inglês afirma que o que pode ser oferecido à criança é o desejo adulto de tornar a realidade suportável ao ponto em que se possa aguentar o terrível peso do cotidiano e dos imperativos da realidade. A mãe, levando o bebê à desilusão, abre para ele a possibilidade de desenvolver sua capacidade criadora. Com isso, ele pode crescer e constituir-se através de talentos amadurecidos e contribuir futuramente para a sociedade.

A mudança da ideia de necessidade para a de desejo indica um crescimento e uma aceitação da realidade externa com um enfraquecimento gradativo e consequente dos imperativos pulsionais. Inicialmente, a mãe – viva e total – deixou-se conduzir pelo bebê e foi até dominada por ele. Finalmente, a criança fica habilitada a livrar-se dessa relação dual e da dependência que pertence às fases iniciais de desenvolvimento.

Winnicott, entretanto, deixa claro que, no seu pensamento, a mãe não poderá privar o filho dela própria (desmame, desilusionamento, castração) se antes não tiver significado tudo para a criança. Segundo ele, mantém-se o princípio de que o desenvolvimento emocional do bebê só pode ser bem consolidado na base das relações com uma pessoa que, idealmente, deve ser a mãe suficientemente boa.

A mãe – que conseguindo funcionar como um agente adaptativo – apresenta o mundo de forma a que o bebê comece com um suprimento da experiência de onipotência, constitui o alicerce apropriado para que a criança, depois, como já foi dito, entre em acordo com o princípio de realidade. Submeta-se à função paterna; à lei do pai. A realidade será, assim, suportada a partir da criatividade. Ou seja, da manutenção através da existência de algo pertencente à experiência primitiva e infantil: a capacidade de criar o mundo. Só a mãe suficientemente boa é capaz de se adaptar às necessidades do bebê para que ele não perceba que o mundo já estava lá antes que ele tivesse sido concebido ou concebesse o mundo.

De modo saudável, o bebê torna-se, então, preparado para encontrar um mundo de objetos e ideias e, segundo seu desenvolvimento, a mãe suficientemente boa é que lhe vai apresentando o mundo necessário e generoso. O resultado prático é que cada bebê começa com uma nova criação do mundo. Isso quando as coisas correm razoavelmente bem, como, para Winnicott, geralmente acontece. Se, entretanto, quando o bebê tiver que criar o mundo e ninguém estiver lá (ou seja, não estiver aí uma mãe suficientemente boa) a criança cairá num autismo ou numa esquizofrenia infantil. O ser humano que não começar a vida com a experiência de ser onipotente não tem chance de se tornar uma peça na engrenagem da vida

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D. W. Winnicott, “A criança e o seu mundo”, Rio de Janeiro: LTC, 1982.
_ “Tudo começa em casa”, São Paulo: Martins Fontes, 2016.

Paulo Emanuel Machado

Paulo Emanuel Machado é psicanalista, escritor e professor. Tem dois romances publicados: A TEMPESTADE (Editora Scortecci, 2014) e VOCÊ NÃO PODE SER O OCEANO (Edição independente, 2015), ambos baseados em relatos de pacientes e alunos. O primeiro sobre abuso sexual; o segundo sobre a travessia difícil da adolescência. Também possui artigos publicados e contos em antologias. É de Salvador, Bahia, nascido a 10 de janeiro de 1960.

Recent Posts

Dicas para controlar os gastos e economizar nas compras

Você ama comprar roupas, mas precisa ter um controle melhor sobre as suas aquisições? Veja…

1 dia ago

Minissérie lindíssima da Netflix com episódios de 30 minutos vai te marcar para sempre

Qualquer um que tenha visto esta minissérie profundamente tocante da Netflix vai concordar que esta…

1 dia ago

Saiba o que é filofobia, a nova tendência de relacionamento que está preocupando os solteiros

Além de ameaçar os relacionamentos, esta condição psicológica também pode impactar profundamente a saúde mental…

1 dia ago

‘Mal posso esperar para ficar cega’; diz portadora de síndrome rara cansada de alucinações

Aos 64 anos, Elaine Macgougan enfrenta alucinações cada vez mais intensas conforme sua visão se…

2 dias ago

Pessoas que se sentiram ‘excluídas’ na infância costumam desenvolver estas 11 características na vida adulta

Segundo a psicóloga Drª. Alexandra Stratyner, “a infância é um período crucial para o nosso…

2 dias ago

Economia nos cuidados diários: como higienizar seu pet em casa corretamente?

Manter o ambiente limpo e uma boa higienização, além de idas regulares ao médico, são…

2 dias ago