Por Ana Maria Straube, Camila Martins, Hamilton Octavio de Souza, Luana Schabib, Tatiana Merlino
Em entrevista exclusiva para a edição 146 da Caros Amigos, em maio de 2009, a psicanalista falou de seu então recém lançado livro, analisou as consequências do ritmo frenético da vida contemporânea e apontou a depressão como sintoma social de uma sociedade que cria o “sujeito esvaziado”. Maria Rita Kehl contou a sua experiência como jornalista, nos anos 1970 e 1980 e também como psicanalista de homens e mulheres que integram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na Escola Nacional Florestan Fernandes.
Tatiana Merlino: Qual sua origem, e como você entrou para a psicanálise?
Nasci na cidade de Campinas aqui do lado, apesar de me considerar paulistana. Todos os filhos são de Campinas, mas fomos criados aqui, passei a vida inteira no bairro de Pinheiros. Estudei em uns colégios de freiras. Minha mãe era religiosa, e depois fiz psicologia na USP em 71 a 75, no período mais fechado da Universidade, com muita gente cassada. Então, muito insatisfeita com o curso, lá pelo terceiro ano eu queria trabalhar, sair de casa. E bati na porta do Jornal do Bairro, cujo diretor era o Raduan Nassar, que ainda não era o grande escritor, e falei: “Eu quero escrever”. Eu queria trabalhar em alguma coisa que não fosse psicologia, que me parecia na época uma coisa muito xarope. E aí o editor, José Carlos Abbate, e o Raduan foram muito generosos, do tipo: “Bom, você sabe escrever, mas não sabe o que é jornalismo, escreve trabalho de escola”. E eles falavam: “Vai assistir tal filme”. Aí me ensinaram o que é um abre de uma matéria, enfim, que não pode ter cara de trabalho escolar. E eu virei jornalista free lancer, em seguida veio a lei que exigia registro. Foi muito formadora para mim a época dos jornais alternativos, dos tablóides, foi o único lugar em que eu pude ser contratada numa redação, porque eles já estavam totalmente irregulares mesmo, então eles contratavam gente que era de movimentos. Foram três anos, de 75 a 78 no máximo, mas foi muito marcante, muito formador, porque foi o período que eu pude alargar esse horizonte de uma faculdade de psicologia, numa formação um pouco medíocre numa época em que estava todo mundo com medo, mesmo porque eu nunca entrei para a luta armada nem nada. Mas as coisas que me acontecem hoje eu devo muito a esse período.
Hamilton Octavio de Souza: O Jornal do Bairro?
Não. Ele foi uma iniciação para eu aprender a escrever, não era jornal de esquerda. Mas era muito legal, porque era um jornal muito engraçado. Ele era a capa, com artigos de política, e a contracapa, com artigos de cultura, e o resto eram anúncios. E todos os artigos eram escritos em 40 linhas. Em 40 linhas você aprende a pegar o fundamental, você não precisa entender do assunto, você junta umas ideias, faz um texto razoável, agradável, põe uma abertura chamativa, um final retumbante e ponto. Quarenta linhas é o meu forte, digamos assim.
Hamilton Octavio de Souza: Você colaborou com aqueles jornais feministas da época?
No Mulherio. Recebi a notícia que esse jornal ia começar e eu era levemente atraída pela
esquerda. Eu não tinha formação política: no começo, nas reuniões de pauta tinha que disfarçar a minha ignorância. Como eu era disponível, eles precisavam de gente que pudesse ganhar pouco e de gente que eles pudessem fazer a cabeça. Porque eles não podiam tentar, aí na época era o Movimento era do PCdoB mesmo, eu nem sabia o que era PCdoB. Eu sabia que era um jornal de oposição à ditadura e isso me interessou. Em um ano eu era editora de cultura, mas você tem que ir na raça. Não tem quem faça, você faz. Então, foi muito legal.
Camila Martins: E lá você foi também desenvolvendo essa formação?
É, e nunca não mais parou, porque isso é uma coisa que não para, não vou dizer que seja uma formação, é uma trajetória. Talvez eu tenha descoberto uma coisa que tinha mais a ver comigo e eu estava fora disso. Engraçado que depois de mim, os meus irmãos, a minha família é razoavelmente de esquerda.. Meu pai não era, mas ele morreu dizendo: “Na próxima eleição,eu vou votar no Lula”. Ele morreu em 2000. Uma família um pouco inconvencional, sempre foi um pouco gauche. Então o esquerdismo caiu bem, para todo mundo quando a gente começou a se abrir, para todo mundo fez sentido. Então, eu fiquei uns sete anos só como jornalista.
Teve um momento que eu fiquei um pouco insatisfeita. Fui virando free lancer para poder sobreviver. Folha, Veja, Isto É. Mas eu cobria várias coisas da área de cultura. E senti que eu não sabia nada com muita consistência. Aí fui fazer um mestrado uns quatro anos depois de formada e sobre televisão, pois, por causa da minha prática em jornalismo cultural, falei: “Ninguém está percebendo o que a televisão está fazendo no Brasil”. Na época, a única pessoa que escrevia sobre televisão era a Helena Silveira, que comentava as novelas, falava dos figurinos. E só depois que fiz a tese é que eu fui perceber que podia ser psicanalista.Na verdade, é uma coisa ruim de contar hoje porque não é uma coisa que psicanalistas respeitam. Mas foi no trambolhão, tinha meu filho pequeno; o pai do meu filho morava em uma comunidade, eu morava em outra. Eu já morava há um bom tempo. Era uma casa que caiu, uma casa genial, daquelas antigas na rua Matheus Grou, que você entra e tem um porão aqui, e sobe uma escada, tem um corredor, a cozinha é lá no fundo, o banheiro é depois da cozinha. Morei em várias comunidades, mas essa foi a mais marcante, tinham uns refugiados que vinham morar com a gente, era uma delícia, meu filho nasceu aí. Eu saía e deixava o pessoal tomando conta, era muito legal. Então, eu tive uma bolsa da Fapesp, que era muito bom porque eu podia fazer a minha tese e ficar bastante com o Luan, meu filho. E no mesmo ano a comunidade terminou, cada um foi morar numa casinha. A bolsa terminou, e eu tinha que fazer alguma coisa, com filho para sustentar. Tive um trabalho rapidinho na Rádio Mulher, me chamaram para fazer um programa que eram entrevistas ao vivo, e as mulheres ligavam e a gente dava respostas, era muito divertido. O programa acabou também. E eu abri consultório no dia seguinte, uma menina da rádio me pediu terapia, e no dia seguinte, sem nada, sem nenhum preparo, eu estava fazendo o consultório. Foi em 1981, desde lá eu sou psicanalista, nunca mais larguei. Aí foi fazendo cada vez mais sentido, até hoje cada vez eu mais me espanto com isso.
Ana Maria Straube: E sua tese de televisão já tinha alguma coisa a ver com psicanálise?
Nada, nada. Claro que se você faz psicologia,lê algumas coisas, você tem um pouco de abertura para entender com objetividade. A minha tese era “O papel da Rede Globo e das novelas da Globo em domesticar o Brasil durante a ditadura militar”. Pegava desde a primeira novela, foi de 73, as novelas das 8, desde Irmãos Coragem até na época, que era Dancing Days, mostrando como se criou um retrato, uma imagem do Brasil para si mesmo. A brincadeira na época era assim: a única coisa que os militares conseguiram modernizar durante 20 anos de ditadura foi a imagem televisiva que o Brasil apresentava para o próprio Brasil, que é o que o Brasil acreditou. E a minha tese era mais ou menos isso.
Camila Martins: Você viveu essa questão da mulher nos anos 70, da luta feminina?
Olha, eu fui muito pouco feminista. Eu falo isso até com um pouco de sentimento de culpa de não ter prestado atenção em uma coisa importante. Por exemplo, a minha contemporânea na USP, era Raquel Moreno que é uma feminista importante, militante desde o começo. Eu achava aquilo uma chatice, eu não queria ir naquelas coisas, eu achava que eu não era oprimida, que eu me virava muito bem, que eu não tinha esse problema. Talvez porque eu estivesse achando a minha vida com os homens muito divertida. Depois que eu tive filho é que, embora fosse tudo muito libertário, quem carregou o piano sozinha fui eu. Aí eu falei: “Opa! Negócio de feminismo, pelo menos para a mulher que tem filho faz sentido. Não dá para dizer que eu estou livre disso não”. E eu, não sei, não me acho uma feminista de bandeira, porque pelo menos na minha geração tinha uma bandeira feminista que até hoje eu não embarco, que é “mulher e homem é igual”. Eu acho que isso criou um ambiente meio belicoso, não que eu não brigue com os homens, mas brigar assim por mesquinharia: eu lavei dez pratos você tem que lavar dez, não posso lavar onze e você lavar nove. Eu morava em comunidade. Cada um tinha um dia para fazer supermercado, para lavar, e claro que a gente brigava porque sempre tinha um cara que folgava. No jornalismo, por exemplo, olha como as coisas são contraditórias, na época, por eu ser mulher eu acho que eu tive uma chance que se eu fosse um rapaz eu não teria, de entrar numa redação, onde só tinha homem. Hoje em dia ninguém te olha se você é mulher ou não é porque está tudo igual hoje. Só tinha homem, eu entrei e falei “não sou jornalista mas eu quero escrever”, e veio um cara legal me ensinar, entendeu? Como que isso iria acontecer se eu fosse rapaz?
Tatiana Merlino: Como é que surgiu a ideia do livro Tempo e o Cão?
Quando a gente está muito perto de uma escrita, é difícil a gente ter claro o porque escreveu. Mas eu tive no meu consultório duas ocorrências de suicídio nos anos 80, quando eu era ainda novata. Interessante que nenhum dos dois era deprimido, no sentido daquela pessoa que se suicida porque está no fundo do poço, era mais uma coisa persecutória, não era por depressão. Mas eu fiquei com muito medo de tornar a atender pacientes muito deprimidos, que vinham já dizendo que eram deprimidos. Eu precisei de muito tempo para entender o que eu tinha não escutado. Um não deu nem tempo, porque ele fez pouquíssimas sessões e foi demitido, pior da demissão é que ele perderia o seguro que dava direito de continuar a psicanálise, é claro que eu continuaria atendendo, mas ele ficou muito desesperado, ele tinha feito sei lá, um mês. Mas o outro era meu paciente de alguns anos, tinha interrompido, e nessa interrupção se suicidou. Então, eu fiquei muito culpada, como todo analista fica. Não dá para dizer que a culpa é toda sua e não dá para dizer também que você não tem nada a ver com isso. Então, eu ia encaminhando as pessoas deprimidas que sempre chegam. De uns anos para cá eu fui amadurecendo, e comecei a atender pessoas deprimidas e comecei a ficar interessadíssima no fato de como elas eram sensíveis à análise, como tinham permeabilidade maior ao inconsciente que no neurótico, que, vamos dizer, está bem defendido, que vai para a análise também, mas é um custo para abrir uma brecha. Então primeiro isso, eu comecei a escutar os depressivos e comecei a falar “há uma riqueza de saber, tem uma coisa muito interessante, que eu gostaria de um dia poder escrever”. E depois teve esse incidente, que está escrito também na introdução do livro, que foi justamente, a caminho da Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, onde eu atendo pacientes, no livro eu não pus isso, e na Dutra que é uma estrada pesada, eu atropelei um cachorro. E essa cena, não vou dizer que foi traumática, mas exigiu reflexão, porque foi uma coisa muito rara.
O cachorro estava na beira da estrada, tinha movimento e ele começou a atravessar como se estivesse em um campo. Cachorro de beira de estrada deveria estar acostumado, não é que ele tentou e veio um carro rápido e ele não viu. Ele começou a atravessar e eu vi que ele estava atravessando, eu vi que ele ia ser atropelado, mas eu não podia desviar, porque tinha um carro do lado, e eu não podia frear, você não pode frear na via Dutra. Eu ia morrer, enfim, não podia frear. Então eu tive essa enorme agonia de perceber que eu estava em uma velocidade irreversível e que eu ia matar um animal, um ser. Passar por cima. E eu consegui desviar muito pouco, diminuí a velocidade muito pouco, de modo que eu só peguei ele com a roda, eu consegui não passar por cima, eu dei um tempinho para ele. E o que foi mais chocante, foi que, quando eu tentei ver o que aconteceu com ele, eu olhei e ele já virou uma figura no retrovisor, eu só percebi que ele estava uivando de dor porque eu vi o uivo dele no espelho, porque eu já não ouvia mais e ele atravessou a estrada mancando e sumiu no mato e desaconteceu. E esse acontecimento teria desacontecido, eu não sofri nada, se eu não ficasse tão chocada com o que a velocidade faz com os acontecimentos da vida. Não só pelo cachorro, o atropelamento é mais uma metáfora, porque atravessou a outra pista mancando e não morreu. Eu comecei a me dar conta de quantos acontecimentos na minha vida, nessa velocidade, não aconteceram, viraram desacontecimentos. Quando cheguei na escola, fui olhar o para-choque, e tinha uma sujeirinha, talvez o pelo dele. E tinha um ligeiro amassadinho. Aí entra a associação. Eu estava lendo Walter Benjamin, por causa de um grupo de estudos, estava lendo o texto dele sobre experiência. Ele faz uma articulação entre a perda da experiência e a velocidade da vida moderna. E eu falei “a depressão está aqui”, porque Walter Benjamin chama isso de melancolia, não é também que eu inventei isso, então são duas coisas diferentes que se juntaram. A depressão como o começo de uma experiência no consultório que me interessou muito, e a depressão como um sintoma social, quer dizer, algo que se alastra, sintoma social no sentido de um tipo de sofrimento mental que além de dizer respeito ao sujeito, a cada um por si que está sofrendo, cada um com suas razões, revela alguma coisa que não vai bem. Não se poderia dizer que é o sintoma social do homem contemporâneo, porque drogadição também é um sintoma, violência também é um sintoma.
Mas certamente depressão é um dos importantes sintomas. Porque, digamos, ele faz água no barco. Tem um barco, que é a sociedade de consumo, que as pessoas supostamente navegam, às vezes achando que a vida vai ter sentido porque você pode ter dinheiro e comprar não sei o quê. Todo mundo fala: “Que sociedade de consumo? Brasil? Menos de 1/3 pode consumir o básico”. E eu insisto que essa sociedade é de consumo, nos termos mesmo dos autores, do Jean Baudrillard, aliado à ideia de Guy Débord da sociedade do espetáculo, porque o que dá sentido à vida é o consumo. A questão não é a sociedade de consumo porque todo mundo está consumindo furiosamente, pouca gente está consumindo furiosamente, mas as pessoas medem o que elas são pelo que elas podem consumir, medem o sentido da sua vida pelo que elas podem consumir. Estão convencidas de que o valor delas e das outras se define pelo que elas podem consumir. Por isso sociedade de consumo, pela crença, não necessariamente pelos atos.
Então voltando ao por que a depressão que é sintoma social. Porque a sociedade, em termos dos discursos dominantes nos quais a gente acredita, deveria ser uma sociedade menos depressiva. Dos anos 60 para cá nós somos mais livres, nós podemos fazer mais sexo, nós podemos desfrutar do corpo e da saúde de uma maneira privilegiada. Tem mais opções de lazer e de festas, encontrar sua tribo para não ficar necessariamente submetido a um padrão só de comportamento. E tem um avanço enorme no desenvolvimento de antidepressivos, então essa sociedade não deveria ser mais deprimida, a não ser os casos patológicos raros de porque um dia o pai estuprou a irmã na frente dele, essas coisa mais horrorosas. Não deveria ter mais depressivos. E os dados da Organização Mundial da Saúde são de que a depressão cresce a nível epidêmico nos países industrializados e que em 2020, se eu não me engano, será a segunda maior causa de comorbidade, não de morte diretamente, mas de comorbidade do mundo ocidental. Então, é o sintoma social, está mostrando que esse negócio não funciona
Tatiana Merlino: Então o aumento do mercado de antidepressivos não resulta numa diminuição dos casos de depressão?
O antidepressivo, embora seja em muitos casos importante, vital até, não quero aqui falar contra os avanços da indústria farmacêutica, embora o antidepressivo às vezes salve vidas, deva ser tomado por pessoas que correm risco até de se matar ou então de morrer por não dizer, não consegue nem ir a um consultório de analista. O antidepressivo não cura, ele ajuda o depressivo a ter energia e ânimo para fazer algumas coisas e aí ele tem que se tratar.
Camila Martins: Você diz então que a depressão faz parte da sociedade contemporânea. Mas é muito comum a gente escutar: “o quê, a menina está com depressão? Parece que não trabalha, que não estuda, só quem é desocupado é que tem tempo de ter depressão”.
Luana schabib: Ao mesmo tempo tem gente que qualquer coisa fala: “Puxa, tô deprimido”.
Exatamente, tem os dois lados. Tem o lado talvez mais conservador, e principalmente com os jovens, “isso é frescura, vai trabalhar”. Mas eu acho que o lado que a Luana falou, hoje é predominante, porque qual é a estratégia dos laboratórios? Às vezes eu brinco e falo assim: “quem vai salvar o capitalismo da crise é a indústria farmacêutica, porque quanto mais crise mais remédios eles vão vender”. Entendeu? Qual é a estratégia dos laboratórios farmacêuticos? Não é mais somente divulgar os remédios. Saiu o Prozac, na época foi divulgadíssimo, foi o primeiro grande antidepressivo genérico que as pessoas tomavam. Hoje tem muita gente da geração 20 anos do Prozac que vem para o consultório dizendo: “tomei um tempão, foi ótimo, fiquei muito alegre. Depois fiquei simplesmente indiferente e agora não aguento mais não sentir nada. E vou fazer análise”. Mas enfim hoje a principal estratégia de marketing é divulgar a doença. Que por um lado poderia ser um trabalho importante de saúde pública, dizer para as pessoas como é que é a Aids, cuidado. se previna Agora, nas doenças mentais a popularização da doença ajuda você a se identificar com ela. Que se você faz uma campanha contra o câncer de mama, tudo bem, todas as mulheres podem falar: “ai meu Deus do céu, será se eu tenho isso?”. Ai você vai ao médico e faz uma mamografia e se tem, tem, se não tem, não tem.Não dá para você achar que você tem só porque houve uma divulgação maior, preventiva. Agora, na depressão, todos os ambulatórios no Brasil têm esse folhetinho: “Você tem depressão? Atenção, é uma doença séria mas tem cura”. Aí se você tem alguns sintomas, ai tem uma lista de 20 sintomas que qualquer um de nós tem alguns deles. Falta de sono, excesso de sono, falta de fome, excesso de fome, desânimo, irritabilidade, bom, em São Paulo quem é que não tem irritabilidade, estresse, vai por aí. O importante é que no caso das depressões, numa sociedade em que a moral social é a moral da alegria, do gozo, da farra, não é a moral até a primeira fase do capitalismo, que até os anos 1950, e isso combinou também com o protestantismo, era a moral do adiamento da gratificação, sacrifício, esforço, sobriedade, tudo que a gente conhece hoje em dia de literatura. E a moral que mudou muito rapidamente depois dos anos 60, não por culpa dos movimentos dos anos 60, mas pela tremenda plasticidade do capitalismo, do boi eu aproveito até o berro, do homem eu aproveito até o berro, derramo o que não queremos, o que queremos é sexo livre, independência. E o sistema fala “oba, vamos devolver isso na forma de mercadoria”. E hoje nós nos beneficiamos, mas também a sociedade de consumo bombou depois dos anos 60. Então, numa sociedade como essa em que você moralmente se sente obrigado a estar sempre muito bem, qualquer tristeza você identifica como depressão. Então tem aí muitas dessas famílias que dizem que isso é frescura, que não é depressão, mas eu acho que é minoria. A maioria é assim: o filho está mal educado, toma remédio, porque é hiperatividade, toma remédio; o filho está numa crise adolescente, deprimido, toma remédio. É a mesma lógica, digamos assim, imaginária que rege o capitalismo financeiro: jogue certo que você vai estar rico a vida inteira, acabaram os seus problemas, acumule um monte, faça a jogada, e não é para ter turbulência, que as turbulências são deficiências, perdas de tempo, porque tempo é dinheiro; afinal de contas, então, remédio, remédio. E qual a relação disso com a depressão? Você vai criando um sujeito esvaziado.
Mas o remédio não é a cura, é só a condição para a pessoa ir se tratar. Então, o que é a força psíquica, a chamada vida interior? É trabalho permanente, desde o bebezinho ali que a mãe não chegou na hora e ele estava com fome e teve que esperar um pouquinho, o psiquismo é isso, trabalho para se enfrentar a dificuldade, enfrentar conflitos, suportar crises, suportar desprazer em momentos, porque não dá para ter prazer o tempo todo, isso é psiquismo. A ansiedade diz “não enfrenta conflitos, não enfrenta porque você vai ficar um tempo meio confuso, meio improdutivo, toma o remédio e vai em frente”. Vai se criando uma vida sem sentido. Como é estar realmente deprimido? Porque tem alguns casos de depressão que são diferentes do que eram os casos de depressão da minha bisavó ou do meu tataravô. Hoje uma pessoa deprimida, além dela sentir todo o sofrimento da depressão, a sensação de vazio, de que a vida não vale a pena, de que ele mesmo, ou ela mesma, não vale nada, de que o tempo não passa, que os dias estão estagnados e insuportavelmente lentos, enfim, falta de vontade de viver basicamente, tudo isso que já é sofrimento suficiente para um depressivo, hoje recebe um acréscimo da culpa de se estar deprimido. Ai faz parte do que você falou, não é só que eu estou passando por tudo isso e tudo isso é uma dureza e eu preciso de uma ajuda. Eu estou passando por tudo isso, então eu sou pior do que os outros. Eu já me sinto ruim porque estou deprimido, e agora estou me sentindo ruim porque eu sou quase que culpado, é quase como se fosse um fora da lei. Hoje um deprimido se sente culpado por não querer ir para as festas. Na adolescência isso é tremendo, os adolescentes, que é a idade de ouro na sociedade de consumo, os adolescentes são o outdoor da sociedade de consumo, eles aparecem como nossos representantes, já que são mais livres, não têm filhos, teoricamente os de classe média são sustentados, não têm que trabalhar, eles são os mais convidados para essa festa perpétua que não existe, mas que aparece no horizonte social. O adolescente em crise hoje, ele se sente o último.
Hamilton Octavio de Souza: O modelo atual coloca que você não tem emprego porque você não se preparou, você que não é capaz, o problema não é do sistema, o problema é teu.
Isso começou a ficar mais claro para mim quando eu comecei a atender os pacientes no MST, na Escola Nacional Florestan Fernandes, onde eu fui uma vez fazer uma conferência em 2006, eu fui falar de televisão, justamente o que foi a minha tese. E eles me perguntavam de psicanálise, assim na aula. E eu dizia: “olha, dá para ter atendimento aqui”. Mas ninguém me procurava para isso, eu já tinha oferecido. E um dia me perguntaram de novo como que a psicanálise podia ajudar a militância e eu falei: “olha, a psicanálise não é uma teoria militante. Pela psicanálise eu creio que não vai sair nenhuma militância psicanalítica”. Mas, aí eu brinquei com eles: “tem muito neurótico militando, e os neuróticos atrapalham a militância, misturam seus problemas pessoais com os problemas da militância, o que embola o meio de campo. Então o que a psicanálise pode fazer é tratar as pessoas, e se ajudar a militância, o cara fica menos louco e daí milita melhor”. Eu saí da sala e tinham duas pessoas da direção me esperando: “quando é que você pode começar?”.
Ana Maria Straube: Interessante, porque a psicanálise parte de uma perspectiva mais individual. E no MST acho que tem uma coisa, de buscar soluções coletivas para as coisas.
Então, isso é genial, porque eu achava que alienação neurótica era uma coisa, e alienação política é outra, e uma não interfere na outra. Reformulei o que eu pensava. Uma parte da alienação neurótica é alienação política, porque lá o cara, as pessoas que vão lá sofrem pelos motivos que os neuróticos sofrem, não interessa nem contar detalhes, porque é contar o detalhe de qualquer outra clínica, mas qual é o grande diferencial? Esse a mais de culpa, de baixa estima, do indivíduo que se acha ele próprio obrigado a dar conta da vida dele e de passar na frente de todo mundo, ele já tem, nos 25 anos do MST, uma formação que não é só política, não é só cartilha, é formação humana, isso é que me impressiona. É consistente, você ouve um paciente três anos seguidos, e você fala: “não é só cartilha”. É formação humana, eles distinguem o que é o problema deles, do que é a sua situação de classe, claro que não estou falando de pessoas superdotadas, mas eles distinguem. As mulheres, eu nunca vi um feminismo tão profundo, mais verdadeiro do que eu vi nas mulheres do MST, porque não é feminismo anti-homem, não é feminismo masculinizado, é uma coisa tão profundamente libertária, elas são cientes de que elas têm o valor delas como mulher, que elas não vão atrelar a vida delas, de estilo de militância, a um homem, a não ser que o caminho coincida, é muito impressionante. Porque o que mais tem na clínica psicanalítica das cidades? Qual é a questão mais banal?
Não estou banalizando os meus clientes, estou falando que tem uma questão que é banal: me ama ou não me ama, papai gostou de mim, mamãe não gostou de mim, um gostou muito, outro gostou menos, eu era o predileto, meu irmão que era predileto, gostava de mim, não gostava de mim, meu namorado gosta ou não gosta, ai não tenho um homem então sou uma porcaria porque não tenho homem, ah não tenho mulher. Isso aí eu nunca ouvi lá, em três anos e pouco já. O valor do sujeito não está atrelado a se o outro gosta dele ou não, é muito impressionante, o valor está ligado à militância. E ao mesmo tempo não está ligado à militância, é claro que alguns sofrem de uma coisa assim “eu sou herói mais do que todo mundo”, mas também tem essa ideia de que o que você é, você é coletivamente. E é fácil dizer isso por quê, não preciso nem contar dos meus pacientes, eu posso contar por exemplo de um rapaz com quem eu conversei quinze minutos na porta, eu estava na porta do consultório esperando um paciente que estava atrasado e tinha um rapaz, que eu nunca tinha visto, sei lá, é que tem muitos cursos, então uns ficam uma semana, alguns ficam um mês, tinha um rapaz paraibano que puxou conversa comigo, queria saber quem eu era, comecei a contar, e ai ele me disse: “Ah! Então você vai na reunião da direção?” Me perguntou se eu ia para alguma coisa grande lá e eu falei: “Não, eu aqui sou peixe pequeno”. E ele falou: “não existe peixe pequeno”. E eu falei: “Não, eu quero dizer que o que eu faço aqui é secundário”. “Não existe tarefa secundária”. Ele foi me interpretando. “Companheira, ou somos iguais ou não somos iguais. Se somos iguais, você pode trabalhar lá nas privadas que o seu trabalho é tão importante quanto de um dirigente”. Claro que isso não é tão perfeitinho assim, porque tem aqueles que se acham o máximo, principalmente os escalões intermediários, o Stedile não. Claro que tem gente que gosta do poder, bom isso é do humano, mas o que o rapaz falou bate e pronto, e isso é muito profundo.
Na festa de Sarandi, eu fiquei muito impressionada, porque foi uma festa enorme, tinha duas mil e quinhentas pessoas, três mil, barbaridade assim. Nada terceirizado, evidentemente, não tinha uma companhia que oferecia churrasquinhos, tudo era feito por eles, e todos faziam tudinho, as brigadas são fantásticas, mas o que aquilo funcionou era impressionante. E daí você pensa: “não, então eles são uma coisa militar?” Porque quando eu conto para algumas pessoas que têm a perspectiva da sociedade do oba-oba, dizem – então é militar? Não. Aí tem o baile no fim do dia que é para acabar à meia-noite, porque no dia seguinte a coisa começa cedo, e acaba ás três da manhã e o pessoal bebe, e no dia seguinte está todo mundo trabalhando às oito. Aguenta a sua ressaca. Mas não é repressivo nesse sentido, por outro lado, tinha barraca de bebidas, teve uma cerimônia de premiação longuíssima, porque tudo lá é cerimonial, cerimônia longuíssima, e pediram para a barraca de bebida não vender bebida durante a premiação, para não misturar uma coisa com a outra, daí sim. E pediram para os participantes que não estavam dentro do auditório não começarem a comer o lanche que já estava servido. E uma hora eu, ingenuamente, sai do auditório, estava morrendo de fome, eram 10 da noite já, o almoço tinha sido ao meio-dia, passei na barraca e peguei um negocinho, na barraca não, nas mesas, quando eu olhei estava todo mundo olhando parado. Aí fui na barraca de cerveja, e pedi uma água, e os meninos falaram: “É, a gente agora só vende água”. E eu falei: “Por quê, acabou a cerveja?” “Não, pediram para não beber cerveja enquanto está a cerimônia”. Então tem um comprometimento de todos com o bom funcionamento da coisa. Com evidentes exceções, uma pessoa teve o celular roubado, paraíso não existe, mas pensando no funcionamento coletivo, em que as pessoas, a sensação de confiar, confiar eu não estou falando confiar no marido, no irmão, acho que quando você está entre estranhos confiar é uma coisa muito boa.
Ana Maria Straube, Camila Martins, Hamilton Octavio de Souza, Luana Schabib, Tatiana Merlino | fotos Jesus Carlos.
TEXTO ORIGINAL EM CAROS AMIGOS