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Maria Rita Kehl: em defesa da família tentacular

“A nostalgia da família tradicional perdida talvez venha como busca de uma referência que compense tamanho desamparo.” Maria Rita Kehl, psicanalista brasileira

Maria Rita Kehl, psicanalista brasileira (foto à esq, com o Prof. Dr. Donaldo Schüler), aborda o que denomina família tentacular, a estrutura da família contemporânea, em oposição à família nuclear, moderna. Para Kehl, os tentáculos, que remetem aos polvos, abraçam diversos membros antes inexistentes – frutos de novos casamentos, filhos destes novos pais, filhos de adolescentes que engravidaram e não têm onde morar, etc. Sem os locais tão bem definidos no início do século XX (estrutura nuclear – pai, mãe e filho), as funções se dissolvem e as posições se confundem. O poder do pai antes temido se dilui, a presença da mãe antes dona de casa e hoje trabalhadora diminui, e a criança enfrenta novos desafios.

Kehl tenta remover o sentido de culpa que surge nas mães contemporâneas, a da ausência na casa por sua busca pessoal, lembrando que foi precisamente a estrutura nuclear que gerou a psicanálise freudiana: “não é à toa. A psicanálise surge quando surge a doença”, afirma.

Como se configura uma família bem estruturada? Quais são os novos desafios da família para a criação de seus filhos – ou falta de filhos? O que é uma família afinal? No artigo abaixo, Em defesa da família tentacular, a psicanalista aborda a questão:

Uma das queixas que os psicanalistas mais escutam em seus consultórios é esta: “eu queria tanto ter uma família normal…!” Adolescentes filhos de pais separados ressentem-se da ausência do pai (ou da mãe) no lar. Mulheres sozinhas queixam-se de que não conseguiram constituir famílias, e mulheres separadas acusam-se de não ter sido capazes de conservar as suas. Homens divorciados perseguem uma segunda chance de formar uma família.

Mães solteiras morrem de culpa porque não deram aos filhos uma “verdadeira família”. E os jovens solteiros depositam grandes esperanças na possibilidade de constituir famílias diferentes – isto é, melhores – daquelas de onde vieram. Acima de toda essa falação, paira um discurso institucional que responsabiliza a dissolução da família pelo quadro de degradação social em que vivemos.

Os enunciadores desses discursos podem ser juristas, pedagogos, religiosos, psicólogos. A imprensa é seu veículo privilegiado: a cada ano, muitas vezes por ano, jornais e revistas entrevistam “profissionais da área” para enfatizar a relação entre a dissolução da família tal como a conhecíamos até a primeira metade do século XX e a delinquência juvenil, a violência, as drogadições, a desorientação dos jovens, etc. Como se acreditassem que a família é o núcleo de transmissão de poder que pode e deve arcar, sozinha, com todo o edifício da moralidade e da ordem nacionais.

Como se a crise social que afeta o todo o país não tivesse nenhuma relação com a degradação dos espaços públicos que vem ocorrendo sistematicamente no Brasil, afetando particularmente as camadas mais pobres, há quase quarenta anos. E sobretudo como se ignorassem o que nós, psicanalistas, não podemos jamais esquecer: que a família nuclear “normal”, monogâmica, patriarcal e endogâmica, que predominou entre do início do século XIX a meados do XX no ocidente (tão pouco tempo? Pois é: tão pouco tempo) foi o grande laboratório das neuroses tal como a psicanálise, bem naquele período, veio a conhecer.

A cada novo censo demográfico realizado no Brasil, renova-se a evidência de que a família não é mais a mesma. Mas “a mesma” em relação a que? Onde se situa o marco zero em relação ao qual medimos o grau de “dissolução” da família contemporânea? A frase: “a família não é mais a mesma”, já indica a crença de que em algum momento a família brasileira teria correspondido a um padrão for a da história.

Indica que avaliamos nossa vida familiar em comparação a um modelo de família idealizado, modelo que correspondeu às necessidades da sociedade burguesa emergente em meados do século XIX. De fato, estudos demográficos recentes indicam tendências de afastamento em relação a este padrão, que as classes médias brasileiras adotaram como ideal.

A demógrafa Elza Berquó, na História da vida privada no Brasil – o século XIX atesta algumas dessas tendências. Em primeiro lugar, na segunda metade do século XX a família “hierárquica”, organizada em torno do poder patriarcal, começou a ceder lugar a um modelo de família onde o poder é distribuído de forma mais igualitária: entre o homem e a mulher mas também, aos poucos, entre pais e filhos.

Se o pátrio poder foi abalado, é de se supor que algum deslocamento tenha ocorrido do lado das mulheres – a começar pelo ingresso no mercado de trabalho, com a consequente emancipação financeira daquelas que durante tantas décadas foram tão dependentes do “chefe da família” quanto as crianças geradas pelo casal. Com isto, o número de separações e divórcios vem aumentando assim como aumenta a idade em que as mulheres vêm decidindo se casar – em proporção direta ao aumento dos índices de escolaridade feminina.

O número de relações conjugais “experimentais”, ou seja, não legalizadas, entre jovens, também vem crescendo, em função não apenas da maior independência financeira das moças – que se veem em condições de arriscar um pouco mais nas escolhas amorosas – quanto em função da liberdade sexual conquistada há quase meio século pelas mulheres. Isto nos ajuda a entender o papel tradicional do tabu da virgindade, único freio capaz de fazer com que jovens adultas adiassem por tanto tempo o início de sua vida sexual à espera do casamento legal e definitivo.

Com a descoberta e a democratização das técnicas anticoncepcionais, o tabu que sustentava o casamento monogâmico (às custas da inexperiência e da frigidez femininas, como Freud bem o percebeu) deixou de fazer sentido. Em contrapartida, hoje, o número de mulheres que se encontram sozinhas com filhos para criar vem aumentando, assim como a gravidez não programada entre as adolescentes. “Casar, ter filhos e se separar leva cada vez menos tempo”, escreve Elza Berquó.

Neste cenário de extrema mobilidade das configurações familiares, novas formas de convívio vêm sendo improvisadas em torno da necessidade – que não se alterou – de criar os filhos, frutos de uniões amorosas temporárias que nenhuma lei, de Deus ou dos homens, consegue mais obrigar a que se eternizem. A sociedade contemporânea, regida acima de tudo por leis de mercado que disseminam imperativos de bem estar, prazer e satisfação imediata de todos os desejos, só reconhece o amor e a realização sexual como fundamentos legítimos das uniões conjugais.

A liberdade de escolha que esta mudança moral proporciona, a possibilidade (real) de se tentar corrigir um sem número de vezes o próprio destino, cobram seu preço em desamparo e mal estar. O desamparo se faz sentir porque a família deixou de ser uma sólida instituição para se transformar num agrupamento circunstancial e precário, regido pela lei menos confiável entre os humanos: a lei dos afetos e dos impulsos sexuais.

O mal estar vem da dívida que nos cobramos ao comparar a família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos pais. Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos. Ou com o ideal de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores, que não necessariamente o realizaram. Até onde teremos de recuar no tempo para encontrar a família ideal com a qual comparamos as nossas?

Estamos em dívida com o modelo de família burguesa oitocentista, que as condições da sociedade contemporânea não permitem mais que se sustente a não ser à custa de grandes renúncias e, provavelmente, grande infelicidade para todos os seus membros. Como costuma acontecer a todos os endividados, nós idealizamos a fortuna de nossos credores. Tendemos a nos esquecer de que família era aquela, e a que custo – psíquico, sexual, emocional – ela se manteve, durante um curto período de menos de dois séculos, como célula mãe da sociedade.

Não é necessário retrocedermos até as revoluções burguesas europeias para procurar o que se perdeu no ocidente, e particularmente no Brasil, a partir dos anos 1950. Basta recordar o que foi a “tradicional família brasileira” para perguntar: o que estamos lamentando que tenha se perdido ou transformado? Será que a sociedade seria mais saudável se ainda se mantivesse organizada nos moldes das grandes famílias rurais, a um só tempo protegidas e oprimidas pelo patriarca da casa grande que controlava a sexualidade das mulheres e o destino dos varões?

Temos saudade da família organizada em torno do patriarca fundiário, com sua contrapartida de filhos ilegítimos abandonados na senzala ou na colônia, a esposa oficial calada e suspirosa, os filhos obedientes e temerosos do pai, dentre os quais se destacariam um ou dois futuros aprendizes de tiranete doméstico? O sentimento retroativo de conforto e segurança que projetamos nostalgicamente sobre o patriarcado rural brasileiro não seria, como bem aponta Roberto Schwartz em As ideias fora do lugar, tributário da exploração do trabalho escravo, que o Brasil foi o último país a abolir já quase às portas do século XX?

Ou será que temos saudade da família emergente das classes médias urbanas, fechada sobre si mesma, incestuosa como em um drama de Nelson Rodrigues, temerosa de qualquer contágio com membros da camada imediatamente inferior, mantidos à distância às custas de preconceitos e restrições absurdas? Saudades das famílias “de bem” que viviam atemorizadas em relação aos próprios vizinhos, com medo de cada nova fase da vida, apavoradas com a sexualidade dos filhos e filhas adolescentes – maledicentes e invejosas da vida alheia, administrando a vida conjugal como se administra um pequeno negócio?

Saudades dos casamentos induzidos a partir de namoros quase endogâmicos, rigorosamente restritos a “gente do nosso nível” e mantidos à custa da dependência econômica, da inexperiência sexual e da alienação das mulheres? A família burguesa no Brasil, escreve Maria Ângela D’Incao na História das mulheres no Brasil, desenvolveu-se no século XIX na esteira da necessidade de “civilizar”, o que era o mesmo que dizer – afrancesar – nossa sociedade escravocrata, mestiça, luso-tropical.

Ou seja: nasceu para fortalecer um núcleo de resistência contra as condições históricas formadoras da sociedade brasileira. Naquele período, o desenvolvimento das cidades e da vida burguesa influiu também na arquitetura das residências, procurando tornar o convívio familiar mais íntimo, mais aconchegante, o que significa: mais separado do tumulto das ruas e do burburinho da gente do povo.

Esta tendência de fechamento da família sobre si mesma foi o início do que D’Incao chama de processo de privatização da família, marcado pela valorização da intimidade. Era uma privacidade vigiada. As famílias que se retiravam, civilizadamente, do convívio caótico e miscigenado das ruas das cidades brasileiras, abriam suas casas para a apreciação de um “público” selecionado, capaz de atestar o sucesso de sua elitização e de seu branqueamento.

Um círculo restrito de parentes, amigos, alguns pretendentes, um ou outro político interesseiro e interessante para a carreira dos cavalheiros – como no Memorial de Aires ou em Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Eram poucos os convidados para participar de saraus, jantares e festas. Nestas ocasiões, escreve Maria Ângela D’Incao, “a família, em especial a mulher, era submetida à avaliação da opinião dos ‘outros’ (…). Se agora era mais livre, pois a convivência social dá maior liberdade às emoções, não só o marido e o pai vigiavam seus passos; sua conduta também era submetida aos olhares atentos da sociedade”.

Quanto aos filhos, os cuidados maternos diretos (lembremo-nos que a figura da mãe dedicada ao lar também é uma criação do século XIX europeu) passaram, naquele momento, a garantir a reprodução dos padrões de boas maneiras que as amas e escravas não poderiam transmitir. Ganhava força a ideia de que “é muito importante que as próprias mães cuidem da primeira educação dos filhos e não os deixem simplesmente soltos sob a influência das amas, das negras ou de ‘estranhos’, ‘moleques da rua’, etc.”

O quadro estava formado. Esta foi a família nuclear burguesa no Brasil, privatizada, excluída do convívio das ruas como garantia de preservação e transmissão dos privilégios de classe. Estavam formados os padrões de exclusão e seleção das elites, a ser adotados pelas famílias das classes mais baixas, cada qual tentando simular as boas maneiras dos que estão acima – e assim, quem sabe, conseguir um casamento vantajoso para um dos(as) filhos(as) – e separar-se dos “maus modos” dos que ficam ainda mais abaixo.

Mas, a lógica que rege a sociedade onde reinava a moderna família burguesa acabou por destruir as bases de sua sustentação. Razões de mercado abriram oportunidades profissionais para as mulheres e achataram os salários dos pais de família, eliminando em grande parte a dependência econômica feminina que sustentava o casamento patriarcal. A perda de poder aquisitivo também contribuiu para minar o poder dos homens dentro de casa.

Por outro lado, a expansão de todos os meios de comunicação teve o efeito de explodir o isolamento até mesmo das famílias mais conservadoras, minando a condição que garantia a transmissão estável de valores e padrões de comportamento entre as gerações. Finalmente – o que foi mais decisivo, do ponto de vista da estabilidade conjugal: a democratização das técnicas anticoncepcionais possibilitou às mulheres diversificar suas experiências sexuais, desvinculando a sexualidade feminina dos avatares da procriação. As mulheres passaram a incluir a satisfação sexual entre os requisitos para a escolha do cônjuge.

A independência sexual das mulheres e a possibilidade de separar a vida sexual da procriação – o “poder de atentar contra o caráter sagrado do sêmen masculino”, no dizer de Elisabeth Roudinesco – fizeram com que alguns conservadores e nostálgicos da ordem patriarcal atribuíssem ao novo “poder das mães” a responsabilidade pela dissolução da família e dos costumes.

As mulheres não foram as únicas responsáveis pela desarticulação da ordem familiar oitocentista; mas a renúncia das mães de família à liberdade sexual e à vida pública era condição estrutural para que aquela ordem se mantivesse estável. No pequeno livro de Roudinesco sobre as famílias contemporâneas um capítulo é dedicado sobre a relação entre a nova “desordem familiar” e o recém-adquirido poder das mães.

Hoje, as antigas rainhas do lar, que até a década de 1950 ainda valorizavam (a exemplo da Sophie ou da Heloise, de Rousseau) o sacrifício e a dedicação aos filhos como sendo o principal sentido de suas vidas, adquiriram a possibilidade de … “controlar o número dos nascimentos e se recusar a colocar no mundo, da puberdade à menopausa, um número ilimitado de filhos. Assim como os homens, poriam também procriar filhos de diversos leitos e fazê-los coabitarem em famílias ditas ‘co-parentais’, ‘recompostas’, ‘biparentais’, (…). A difusão dessa terminologia, derivada do termo ‘parentalidade’, traduz tanto a inversão da dominação masculina que a evoquei como um novo modo de conceitualização da família”.

 

A partir dessa virada, os laços conjugais já não escondem mais a base erótica – portanto, instável – de sua sustentação. Os filhos deixaram de ser a finalidade, ou a consequência inevitável, dos encontros eróticos. As separações e as novas uniões efetuadas ao longo da vida dos adultos foram formando, aos poucos, um novo tipo de família que vou chamar de família tentacular, diferente da família extensa pré-moderna e da família nuclear que aos poucos vai perdendo a hegemonia.

De certa forma, a família desprivatizou-se a partir da segunda metade do século XX, não porque o espaço público tenha voltado a ter a importância que teve na vida social até o século XVIII, mas porque o núcleo central da família contemporânea foi implodido, atravessado pelo contato íntimo com adultos, adolescentes e crianças vindas de outras famílias. Na confusa árvore genealógica da família tentacular, irmãos não consanguíneos convivem com “padrastos” ou “madrastas” (na falta de termos melhores), às vezes já de uma segunda ou terceira união de um de seus pais, acumulando vínculos profundos com pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas.

Cada uma dessas árvores híper-ramificadas guarda o traçado das moções de desejo dos adultos ao longo das várias fases de suas vidas – desejo errático, tornado ainda mais complexo no quadro de uma cultura que possibilita e exige dos sujeitos que lutem incansavelmente para satisfazer suas fantasias. É importante observar também o papel da mídia, particularmente da televisão, doméstica e onipresente, no rompimento do isolamento familiar e consequentemente, na dificuldade crescente dos pais controlarem o que vai ser transmitido a seus filhos.

A família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais arejada que a família estável no padrão oitocentista, traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido, em que aquele par apostou, na falta de um padrão que corresponda às novas composições familiares, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado.

Ideal que não deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje. Ideal que, se não for superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível.

A família e a crise ética contemporânea

Temos ainda que nos perguntar se essas transformações na composição familiar são realmente as responsáveis pelos sintomas do que se pode detectar como uma crise ética na sociedade contemporânea. A transformação da família ocidental, que cobra seu preço em sofrimento e desamparo, tem sido apontada como responsável pela crise da cultura burguesa, sobretudo no que diz respeito ao comportamento de crianças e adolescentes.

É o que questiona Elisabeth Roudinesco, ao avaliar a força simbólica do núcleo familiar nos mais diversos tipos de organização social em todos os tempos. A família, escreve Roudinesco citando Lévi-Strauss, é a forma de organização social mais persistente, mesmo levando em consideração diferenças históricas e culturais. A família que está em “desordem”, na expressão da autora, é justamente a família nuclear contemporânea, herdeira da família vitoriana.

Vale lembrar que na época em que Freud começou a escutar as expressões do sofrimento das histéricas e a entender as razões das inibições culposas dos obsessivos, a família nuclear burguesa estava em pleno apogeu. Era do seio das famílias vienenses mais estruturadas, no final do século XIX, que vieram os primeiros pacientes que possibilitaram ao Dr. Sigmund Freud investigar a origem das neuroses e inventar a psicanálise.

Aquele foi o modelo de família onde germinaram as modalidades modernas de mal estar, que Freud associou às exigências da monogamia, às restrições sexuais impostas sobretudo às mulheres, à claustrofobia doméstica que contribuía para fixar os filhos no lugar de objetos do amor incestuoso de suas mães. Observem que estou invertendo propositalmente os termos do chamado Complexo de Édipo, ao afirmar que são as mães, insatisfeitas tanto com as limitações de seu destino doméstico quanto com a pobreza de sua vida sexual, que fazem dos filhos o objeto de um investimento libidinal pesado demais.

A família estruturada que ocupa nossas fantasias nostálgicas produziu a histeria como sintoma do desajuste das mulheres em relação ao lugar que lhes era destinado e aos ideais de feminilidade, impossíveis de se sustentar. Produziu a neurose obsessiva como expressão da impossibilidade de um homem afirmar sua virilidade diante de um pai que ele deve, ao mesmo tempo, idealizar e ultrapassar. Além disso, aquela família superestruturada produziu a fixação incestuosa entre os filhos e as mães. Não é obrigatório que a passagem pelo Édipo produza a fixação dos filhos à mãe, mas o isolamento da mãe e dona de casa das famílias tradicionais propicia os excessos do amor materno como única fonte de satisfação afetiva e erótica de muitas mulheres.

Os filhos das famílias nucleares, centrados no poder do pai e tomados pelo amor materno, vivem entre eles a condição de uma disputa permanente. Disputa pelo amor da mãe, que de sua prole escolherá o rebento que melhor representar, na fantasia dela, a posse de um objeto fálico. Disputa pelo lugar de identificação com o pai centralizador, pois se o código civil na atualidade dispõe a mesma herança material para todos os filhos, a herança simbólica, o privilégio de levar adiante o nome e os avatares paternos, costuma ficar com aquele filho que o pai escolhe como sendo o mais digno dele.

A rivalidade fratricida, que na teoria freudiana aparece como condição universal da convivência entre irmãos, é fruto das alianças familiares centradas em torno do poder do UM. Representante laico do antigo lugar do Monarca, o pai de família moderno cultiva inconscientemente a rivalidade entre os filhos ao buscar fazer da transmissão do nome uma identidade.

Nas famílias contemporâneas em que o pátrio poder vem sendo progressivamente distribuído entre vários adultos, observamos a tendência do surgimento de novas formas de aliança entre os irmãos, ao ponto de que talvez se possa pensar em uma função fraterna como complementar, na constituição do sujeito, da função paterna.

Com frequência, nas famílias que se desfazem e refazem várias vezes ao longo da vida das crianças, os irmãos constituem referências sólidas para as identificações horizontais; alianças de afeto e cumplicidade entre os irmãos são mais estáveis do que os laços com os adultos. O poder da fratria, mais condizente com o modelo das democracias republicanas, começa a questionar o poder do patriarca, herdeiro da falência das velhas monarquias.

Vale lembrar que os pactos horizontais entre irmãos, cuja lógica Freud já havia esboçado ao propor o assassinato do pai pela fratria como mito fundador das civilizações, não substituem a função paterna mas são a própria condição para que o poder do “pai” se torne cada vez mais abstrato, fazendo da Lei uma função simbólica e não uma versão arbitrária do poder do mais forte.

Apesar disso, creio que ainda cultivamos uma dívida para com a formação familiar tradicional; o passado idealizado representa um abrigo diante das modalidades de desamparo que enfrentamos no presente. No ocidente, a família que foi duramente criticada e questionada pelos movimentos de contestação dos anos 1960, em nome das liberdades sexuais, dos direitos dos homossexuais, das reivindicações feministas e dos movimentos de jovens, hoje tem sido revalorizada pelos próprios grupos marginais que a contestavam. Pares homossexuais reivindicam o casamento institucional; solteiros de ambos os sexos lutam pelo direito de adotar crianças e constituir uma família “normal”. A família mudou, mudaram os papéis familiares, mas não foi substituída por outra forma de organização molecular.

Como ocorre com todos os bens sujeitos à escassez, parece que hoje a família nuclear em vias de extinção tem sido mais valorizada e idealizada do que nunca, criando uma dívida permanente e impagável que pesa sobre os membros das famílias que se desviam do antigo modelo. A indústria cultural se alimenta dessas idealizações. A dramaturgia popular, veiculada pelo cinema e pela televisão, apela constantemente para a restauração da família ideal, ao mesmo tempo em que vende sabonetes, marcas de margarina e conjuntos estofados para compor o cenário da perfeita felicidade doméstica.

As funções familiares insubstituíveis

É verdade que as demandas pelos direitos constitucionais dos casais homossexuais, por exemplo, revelam a tendência a reproduzir os papeis familiares tradicionais – pai, mãe, filhos. Só que esses papéis não são mais, necessariamente, desempenhados pelas pessoas que, na estrutura de parentesco, correspondem a pai, mãe e filhos.

O máximo que podemos pensar é que, se existir para a criança alguém que faça função paterna e alguém que se encarregue amorosamente dos cuidados maternais, a família estruturará edipicamente o sujeito; é dentro dessa estrutura chamada de família que a criança vai se indagar sobre o desejo que a constituiu – o desejo do Outro – e vai se deparar com o enigma de seu próprio desejo. É nesse percurso que ela vai se tornar um ser de linguagem, barrado em relação ao gozo do Outro. Em linhas gerais, isto seria suficiente para constituir seres humanos orientados pela Lei que interdita o incesto, que é aquela que exige de cada sujeito a renúncia a uma parcela de seu gozo para pertencer à comunidade humana.

No que diz respeito ao masculino e ao feminino, é no atravessamento edípico que a criança vai se sexuar como macho ou como fêmea – processo que não é mais do que, como brinca Lacan, o de constituir a certeza subjetiva que nos orienta para sabermos se devemos entrar no banheiro das ‘damas” ou dos “cavalheiros”. A brincadeira lacaniana indica que a identidade sexual se afirma no campo da linguagem, e não do corpo.

Interdição do incesto e sexuação resumem o papel que a família deve desempenhar na Constituição do sujeito. A partir deste ponto, o papel da família na modernidade é formador, no sentido de preparar as crianças para suas responsabilidades em relação às normas de convívio social. A família moderna é aquela centrada sobre o poder do pai a partir do período da abolição das monarquias absolutistas, onde o destino dos súditos era decidido pela vontade do Rei. Ao contrário do que normalmente se pensa, o poder do patriarca burguês é tributário da queda da figura centralizadora do monarca: é nesta transição que a família ganha importância disciplinar, de célula formadora dos cidadãos e perpetuadora das condições do poder.

A relação entre a dissolução da família patriarcal, hoje, e a correspondente “dissolução dos costumes”, pode se dar por duas vias. A primeira delas vai ao sentido do público ao privado. O modelo de socialização que durante quase dois séculos esteve ao encargo da família patriarcal só fazia sentido em sociedades onde havia algum tipo de continuidade entre a vida pública e a vida privada, onde os valores aprendidos e as restrições impostas aos sujeitos no âmbito da família correspondiam a ideais e exigências importantes para o desempenho dos papéis na vida pública. A dissolução do espaço público em vários países do Ocidente – que no Brasil ganha contornos dramáticos – e a passagem de uma ética da produção para uma ética do consumo, entre outros fatores, são os grandes responsáveis pela desmoralização da transmissão familiar dos valores, e não o contrário.

Sobre a relação entre a moralidade pública e a educação privada, o psicanalista Marcus do Rio Teixeira comenta o caso de uma escola particular de classe alta, em Brasília, em que os diretores, “atentos às transformações da nossa sociedade (…) chegaram à conclusão pouco animadora de que os corruptos e gatunos são mais propensos ao sucesso do que aqueles que se pautam pelo princípio da honestidade.

Tal conclusão precipitou os insignes educadores numa dúvida angustiante: acaso deveriam seguir educando a criançada segundo o velho ideal de respeito a propriedade alheia, lançando-os indefesos na luta pela sobrevivência, ou seria melhor garantir-lhes o futuro ensinando-os a ser, digamos, mais ‘flexíveis’ nesse aspecto? Não querendo tomar uma decisão unilateral (…) resolveram convocar uma reunião de pais e mestres para discutir o problema”. O exemplo é anedótico, mas representa perfeitamente o conflito (ainda que por vezes inconsciente) de muitos pais, diante da inadequação entre os “bons e velhos” valores tradicionais e a realidade que seus filhos terão que enfrentar na vida em sociedade.

A segunda via é a que vai do privado ao público, e diz respeito a dificuldades dos pais e mães contemporâneos – ou padrastos e madrastas – em sustentar sua posição de autoridade responsável perante as crianças. É como se o peso da dívida para com a família patriarcal, a que me referi acima, impedisse os adultos de legitimar suas funções no âmbito das estruturas familiares que eles foram capazes de constituir.

Neste ponto, não importa que se trate de uma mãe solteira com seu único filho ou de uma família resultante de três uniões desfeitas e refeitas, com meia dúzia de filhos vindos de uniões anteriores de ambos os cônjuges, ou ainda de um par homossexual que conseguiu adotar legalmente uma criança. Seja como for, cabe aos adultos que assumiram o encargo das crianças o risco e a responsabilidade de educá-las. Talvez o peso da dívida para com a família idealizada faça com que estes adultos sintam-se também em dívida com seus filhos, legítimos ou de adoção, e assim incapazes de lhes impor as restrições necessárias a um processo educativo.

A isso, soma-se o descompromisso crescente da sociedade contemporânea em relação a todas as tradições, mesmo as de um passado recente. Mas a tradição recalcada, como bem lembra Hanna Arendt, retorna ainda com mais força para determinar, sem que o saibamos, a vida social. A mesma cultura que nos incita a viver de maneira radicalmente diferente das escolhas de nossos pais – o que nos mantém ao desabrigo de toda possibilidade de transmissão das experiências – não é capaz de legitimar as novas configurações familiares que foram surgindo, e ainda nos oferece como ideal de felicidade justamente o modelo familiar da geração dos nossos avós.

Os adultos ficam, assim, em um lugar de difícil sustentação. A sustentação simbólica da autoridade perdeu a consistência imaginária conferida pela tradição; assim, homens e mulheres se veem na contingência de impor limites e transmitir ideais a seus filhos por sua conta e risco. Por um lado, esta “relatividade” na interpretação da Lei permite uma grande liberdade de invenção, e uma maior adequação das intervenções dos adultos às necessidades das crianças. Mas por outro, aproxima perigosamente os limites da Lei das arbitrariedades e caprichos dos adultos. A nostalgia da família tradicional perdida talvez venha como busca de uma referência que compense tamanho desamparo.

Deste lugar mal sustentado, é possível também que os adultos não compreendam no que consiste sua única e radical diferença em relação às crianças e adolescentes, que é a única ancoragem possível da autoridade parental no contexto contemporâneo. Esta é, exatamente, a diferença dos lugares geracionais. É porque os pais ocupam, desde o lugar a geração adulta, as funções de pai e mãe (seja qual for o grau de parentesco que mantenham com as crianças que lhes cabe educar) que eles estão socialmente autorizados a mandar nessas crianças.

Vale ir um pouco mais longe: as funções paterna e materna, exercidas desde o lugar geracional dos adultos – seja qual for a idade destes genitores, o que implica, portanto, também a paternidade dos adolescentes – não apenas autoriza, mas depende de que essas pessoas se responsabilizem pelas crianças que estão a seus cuidados, sob pena de perder a guarda delas.

A patologia da família que representa a si mesma como desestruturada – isto é, que não consegue confiar na estrutura criada a partir de suas necessidades e deslocamentos afetivos – está relacionada à omissão da geração parental em relação à educação dos filhos, sejam eles seus consanguíneos ou não. Some-se a isso o alto investimento narcísico de que as criança são objeto, como única razão da existência privatizada dos adultos de hoje – uma existência desgarrada tanto de sentido público quanto de laços tradicionais, portanto projetada em direção ao futuro.

Na cultura do individualismo e do narcisismo, as crianças são a única esperança de imortalidade, a única “obra” destinada a levar adiante o nome e a memória de seus pais. Ninguém quer errar, ninguém se arrisca a contrariar os desejos de uma criança que representa a realização de uma perfeição impossível e imperativa.

Encontramos com frequência, na clínica, pais e mães que afirmam não conseguir impor limites a seus filhos porque “eles não deixam”. São adultos desnorteados, que desconhecem os fundamentos simbólicos de sua autoridade. Dizer a uma criança – “eu não permito que você faça tal ou tal coisa” é um ato performático de linguagem que não precisa ser justificado, nem pode se sustentar com base em chantagens e ameaças. Nada funda este ato a não ser a profunda convicção, por parte do adulto, de sua responsabilidade em relação à criança – e nada garante também que ele não seja injusto.

Educar, no contexto contemporâneo, é assumir riscos ante a geração seguinte. É claro que, na adolescência dos filhos, os riscos assumidos pelos pais serão cobrados – mais uma vez, nem sempre de forma justa. Mas, é possível responder à cobrança adolescente a partir do lugar da responsabilidade: “eu assumi o encargo de cuidar de você e te educar; prefiro correr o risco de errar do que te abandonar”. Este enunciado fundamenta-se no desejo de paternidade ou de maternidade. No limite, o adulto está dizendo: “eu assumo educar você porque eu quis ser seu pai (ou mãe, etc.)”.

A recusa a correr a este tipo de risco coloca as crianças em estado de abandono. Não se trata necessariamente de um abandono amoroso. Pais extremamente afetivos podem deixar seus filhos à mercê de seus próprios impulsos, de sua fragilidade e de sua onipotência infantil, não por falta de amor, mas por falta de responsabilidade. O efeito é de abandono, porque a criança não pode arcar com o critério para as decisões dos adultos, como ocorre no caso de pais que só fazem o que os filhos “consentem”.

O abandono sofrido pelas crianças mimadas de hoje – qualquer que seja a composição familiar a que pertençam – é o abandono moral. Não é porque a mãe, separada do pai, passa muitas horas por dia trabalhando; não é porque um pai decidiu criar sozinho os filhos que a mãe rejeitou; ou porque um casal jovem só tenha tempo para conviver com a criança no fim de semana. O abandono, e a consequente falta de educação das crianças, ocorre quando o adulto responsável não banca sua diferença diante delas.

Fora isso, sabemos que todos os “papeis” dos agentes familiares são substituíveis – por isso é que os chamamos de papéis. O que é insubstituível é um olhar de adulto sobre a criança, a um só tempo amoroso e responsável, desejante de que esta criança exista e seja feliz na medida do possível – mas não a qualquer preço. Insubstituível é o desejo do adulto que confere um lugar a este pequeno ser, concomitante com a responsabilidade que impõe os limites deste lugar. Isto é que é necessário para que a família contemporânea, com todos os seus tentáculos esquisitos, possa transmitir parâmetros éticos para as novas gerações.

Necessário, mas insuficiente: se o espaço público não for revalorizado e se as responsabilidades públicas não forem retomadas, sobretudo no Brasil, a família sozinha não será capaz de dar conta da crise ética que estamos enfrentando. A situação se agrava no caso das famílias pobres, fragilizadas pela falta de políticas sociais e de construção da cidadania; nelas, o desvio em relação às fantasias de família ideal podem ser vividas como uma forma de desmoralização dos pais, o que dificulta a tarefa de educação dos filhos e pode produzir justamente a delinquência e a violência que se quer evitar.

Mas, a restauração do espaço público não pode ser deixada a encargo do Um – de um governante que represente, no imaginário popular, o patriarca protetor. Se existe uma correspondência entre as estruturas sociais e a estrutura familiar, nas repúblicas democráticas contemporâneas a costura do espaço público só se legitima se for fruto do trabalho e do pacto entre os cidadãos – que correspondem, na estrutura familiar, não aos pais, mas ao conjunto dos irmãos.

Texto original de Fronteiras

Psicologias do Brasil

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