PSICANÁLISE

Melanie Klein, a mulher que deu um novo rumo ao legado de Freud

Por Amanda Mont’Alvão Veloso

Se hoje uma criança com dificuldade na fala pode expressar uma angústia por meio de uma brincadeira, essa possibilidade ocorre graças à psicanalista austríaca Melanie Klein. Há exatos 135 anos nascia, em Viena, a mulher que renovou e ampliou criativamente os ensinamentos deixados pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939).

Uma das contribuições mais emblemáticas de Freud para a psicanálise e também para a cultura foi a constatação de um mal-estar inerente à civilização, trazido pela impossibilidade da satisfação plena de cada um dos indivíduos. Klein, por sua vez, detectou um mal-estar ainda mais primitivo no ser humano, situado nos primórdios da relação entre a mãe e o seu bebê. O ciúme e a inveja, inconscientemente, apareciam já no começo da vida.

“Melanie foi das primeiras psicanalistas a considerar a agressividade como um fator do mundo interno da criança e a apontar que os aspectos violentos e destrutivos também fazem parte da constituição da vida mental do bebê”, explica ao HuffPost Brasil a psicanalista Suzana Grunspun, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBP-SP).

As brincadeiras, portanto, eram via de acesso a esses conteúdos inconscientes da criança, como sentimentos e pensamentos, afirma a psicanalista Luciana Saddi, também da SBP-SP:
Ela desafiou a psicanálise de seu tempo introduzindo o brincar como dispositivo de expressão da criança, equivalente à linguagem verbal do adulto. Assim, ela ampliou a técnica clínica de atendimento de crianças por meios lúdicos, possibilitando ao psicanalista desvendar as fantasias mais remotas, compreender alguns dos processos de pensamento infantil e acessar os níveis inconscientes das crianças e bebês.

– Luciana Saddi, psicanalista, ao HuffPost Brasil.

Os novos rumos apontados por Melanie Klein no pensamento psicanalítico, porém, vinham acompanhados de incômodo e críticas radicais de um lado, e de admiração extremada de outro. Entre os opositores estavam a filha de Freud, Anna Freud, o próprio Freud e a filha de Klein, Melitta Schmideberg, que também se tornou psicanalista.

Ela não era uma unanimidade, como destacam Elisa Maria de Ulhoa Cintra e Luís Claudio Figueiredo, autores do livro Melanie Klein: Estilo e Pensamento (Editora Escuta, 2010): “Muita gente ainda hoje não aceita Melanie Klein com facilidade, ou não simpatiza com seu estilo ou suas ideias, mas poucos a desprezam liminarmente ou lhe negam a genialidade.”

O psicanalista francês Jacques Lacan, por sua vez, considerava Klein uma “açougueira genial” por compreender e revelar aspectos mais selvagens e violentos daqueles até então considerados puros e inocentes, ressalta Saddi:

“Freud já havia maculado essa representação cristã/ocidental das crianças, os ‘anjinhos’, pois imputava a elas impulsos sexuais. Melanie Klein terminou por macular a inocência das crianças pequenas ao atribuir-lhes aspectos sádicos, violentos e passionais. Paradoxalmente, crianças que expressam níveis tóxicos de violência tendem à cura, enquanto crianças que sufocam as paixões tendem ao adoecimento.”

Com novos conceitos, um novo olhar da doutrina freudiana e mudanças na prática com os pacientes, as descobertas de Klein deram início a um sistema teórico e clínico próprio, o kleinismo, como definem Elisabeth Roudinesco e Michel Plon no Dicionário de Psicanálise (Zahar, 1998).

No Brasil e na Argentina, as ideias dela ganharam rápida adesão. “Aqui, ela foi fundamental para se compreender melhor as crianças que sofrem por causa de suas dificuldades emocionais”, exemplifica Grunspun.

Até hoje o nome feminino mais importante na História da psicanálise, como destacam Cintra e Figueiredo, Klein foi marcada para o bem e para o mal por ser uma mulher. “Ela teve e tem, é claro, inúmeros grandes seguidores entre os homens, mas o grupo original de adeptos foi predominantemente feminino.”

Uma trajetória marcada pelo luto

Nascida Melanie Reizes, Klein adotou o sobrenome do marido, o engenheiro químico Arthur Klein, com quem teve uma união infeliz e malsucedida. Tiveram três filhos – o mais novo, Erich, se tornou o primeiro estudo de caso dela.

Perdas trágicas marcaram a história de Klein e se refletiram em sua obra. A irmã, Sidonie, morreu ainda criança, quando a psicanalista tinha quatro anos. Aos 18, ela perdeu o pai. Logo em seguida, morreu o irmão, Emanuel, de quem ela era bem próxima. Mais tarde, em 1934, o filho Hans morreu ao escalar uma montanha.

Aos 32 anos, morando em Budapeste, na Hungria, com os três filhos, ela leu um texto de Freud sobre os sonhos, e o interesse foi imediato. Era 1914, mesmo ano em que começou a fazer análise com Sándor Ferenczi, disposta a se livrar de uma grave depressão.

Cinco anos mais tarde, ela se tornou membro da Sociedade Psicanalítica de Budapeste e apresentou a análise de uma criança de cinco anos; no caso, o filho dela, Erich, mas com o nome fictício de “Fritz”.

A psicanálise surgiu como uma salvação para Klein, descrevem Cintra e Figueiredo:

“Melanie poderia ter sido, como milhares ou milhões de outras de sua época e situação social, uma pobre mulher judia condenada pela sua condição de filha, esposa e mãe a uma vida de profunda infelicidade, submissão, humilhação, ressentimento e fracasso. E, de fato, sua existência parecia transcorrer assim, e assim fadada a permanecer, até os seus 30 e tantos anos. A psicanálise, literalmente, salvou-a da depressão, da inveja, da raiva e da mediocridade, salvou-a do casamento desastrado.”

Depois de Budapeste, Klein continuou seu desbravamento da psicanálise em Berlim, na Alemanha, e posteriormente em Londres, onde se tornou um dos principais nomes da escola inglesa. Ela escreveu cerca de 50 artigos e um livro, A Psicanálise de Crianças. As obras foram traduzidas em 15 línguas.

Ela morreu em 1960, de câncer do cólon, em Londres, sem conseguir se reconciliar com a filha Melitta.

Com uma obra subestimada ou ignorada em algumas regiões, Klein mais tarde foi reconhecida nos Estados Unidos e na França. “Foi o principal expoente do pensamento da segunda geração psicanalítica mundial”, atestam Roudinesco e Plon.

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST

 

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