COMPORTAMENTO

‘Meu país é corrupto, a Justiça é falha.’ Como isso afeta nossas atitudes?

Por Amanda Mont’Alvão Veloso

Em uma cena de Batman: O Cavaleiro das Trevas, o comissário Jim Gordon (Gary Oldman), tido como um policial resistente que se recusa a seguir seus pares, corruptos, descobre que o honesto e exemplar promotor de Justiça de Gotham, Harvey Dent (Aaron Eckhart), não é honesto, tampouco exemplar.

Desolado, o policial pretende levar a público todas as maldades de Dent e desmascará-lo, mas Batman o impede: se Gordon revelar que a única figura pública confiável da cidade era, na verdade, uma farsa, a população não terá esperança para suportar os desafios de Gotham.

Suportar a corrupção sistêmica e alastrada como praga é desafio nosso, brasileiros, há muito, muito tempo. Conversas informais apontam para uma descrença em políticos, na polícia, no sistema Judiciário, em instituições como um todo. “Não sobra ninguém”, ouvimos, com frequência. Na água chacoalhada com óleo, é difícil saber quanto é água e quanto é óleo.

É tentador apontar o dedo e declarar: tal partido é mais corrupto. Mas já passamos por isso, e se revelou improdutivo. É mais urgente pensar que a corrupção tem sido lida como natural, esperada, quando ela deveria estar de mãos dadas com o absurdo e com o inaceitável.

Sem exemplos daqueles que escolhemos como nossos representantes ou nossos guardadores, estaríamos condicionados a multiplicar essa corrupção? Qual nossa parcela de responsabilidade sobre o que chamamos de “país corrupto”? De que maneira essa falta de confiança afeta nossas atitudes no dia a dia?

“Como já sabemos: reproduzindo a corrupção! Ao fugir das regras, desrespeitar a lei e burlar as autoridades, o sujeito faz, em escala doméstica, o que os políticos fazem em escala pública”, explica ao HuffPost Brasil a historiadora Mary Del Priore, pós-doutorada pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e que acaba de lançar o livro Histórias da Gente Brasileira – Vol 1: Colônia (Editora Leya).

Atualmente, o Brasil ocupa o 76° lugar em um ranking de corrupção que traz 168 países, feito pela ONG Transparência Internacional (TI). É o pior resultado para o País desde 2008. Pelo segundo ano seguido, a Dinamarca ficou no topo do estudo.

Del Priore afirma que a corrupção é um mal muito antigo no Brasil, com registros históricos desde os primórdios da colonização.

“Já achei cartas, escritas no século 18, em que o indivíduo se queixa de ter que “azeitar as rodas” das autoridades com caixas de goiabada e açúcar, produtos caros na época! Em outra, um senhor de engenho, na Bahia, do século 19, acusava os governantes de praticar “chupancinhas”, nome de época para o pixuleco [propina].” Para a psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e doutora em medicina pela USP Marion Minerbo, a situação é mais grave do que a falta de confiança nos políticos: perdemos a confiança na política, ela diz em entrevista ao HuffPost Brasil.

“A corrupção precisa ser entendida como um processo no qual a desqualificação da Lei vai sendo institucionalizada; o processo se completa quando ela se torna, em si mesma, uma instituição e um modo de vida. Como consequência, o sistema simbólico que sustentava uma instituição oficial – por exemplo, a Política – se desnatura, apodrece. A corrupção corrói a credibilidade das instituições, o que é bem mais grave do que a perda de confiança neste ou naquele político que se deixaram subornar.”

Segundo Minerbo, quando a corrupção se transforma em uma cultura, isto é, quando se torna um modo de vida, a transgressão deixa de ser vivida como transgressão e passa a ser vivida como normal, natural.

A fila furada, o Imposto de Renda sonegado, o atestado falsificado, o benefício recebido irregularmente, o processo seletivo fraudado, o “gato” na TV a cabo, a propina no cancelamento da multa, a carteirinha do estudante que já não estuda mais: essas atitudes podem representar uma transgressão ou, de maneira mais preocupante, uma corrupção.

“Alguém pode fazer isso com medo das consequências, com vergonha de ser descoberto, sabendo que isso não se faz. Aqui, a lei é plenamente reconhecida, ela continua valendo, e por isso não podemos falar em corrupção: é apenas uma transgressão”, explica Minerbo.

“Mas outra pessoa pode fazer isso com arrogância, sentindo que, pelas razões x e y, ela tem esse direito. Neste segundo caso, a transgressão não é mais vivida como transgressão, mas como direito.”

Aí, há, claramente, uma nova lei em vigor, declara a psicanalista. É a Lei de Gerson – cada um por si, sentindo-se no direito de levar vantagem sobre os demais. Quem vem junto? Uma velha conhecida nossa, usada nas cinco regiões do País: a Lei do Jeitinho Brasileiro.

“São duas instituições paralelas poderosas, que ocupam o lugar das instituições oficiais. Temos, então, uma total inversão de valores: quem se recusa a praticar o ‘jeitinho brasileiro’ é considerado traidor e punido pela coletividade. Quem se recusa a praticar a “lei de Gerson” é considerado ingênuo e excluído dos negócios.”

Del Priore afirma que o “jeitinho” pode ser sinônimo de adaptação, resiliência e criatividade quando remete à capacidade dos brasileiros em meio a crises e dificuldades. Sabe aquela história de que o melhor do Brasil é o brasileiro?

“Vemos esse lado positivo ao estudar os primeiros anos de adaptação dos colonos à terra desconhecida, lutando contra insetos que acabavam com a lavoura, aprendendo com os índios a sobreviver nas matas, abrindo caminhos para o sertão, construindo, com materiais pobres, os primeiros núcleos urbanos, enfim, pois foi uma luta árdua para se enraizar na chamada Terra de Santa Cruz”, contextualiza.

Mas essa mesma criatividade pode ser usada para contornar problemas, dificuldades e carências, como os ‘gatos’ de energia elétrica, explica Del Priore:

Onde há falta de Estado, o cidadão supre com um ‘jeitinho’. Numa sociedade onde os direitos básicos, inclusive o da educação, estão garantidos, há menos necessidade de tanta criatividade.

Corrupção corrosiva

A perda de confiança na Justiça gera consequências bastante visíveis, em maior ou menor grau, como os linchamentos, os justiçamentos pessoais e queixas pessoais postadas no Facebook em que o público define quem é criminoso e quem é vítima.

A corrupção leva à desnaturação das instituições oficiais, explica a psicanalista Minerbo. Quando isso acontece com a Justiça, palavras como lei, justiça, culpa, réu, pena e juiz continuam existindo, mas perdem seu significado original. “Ninguém mais acredita nelas. Abre-se espaço para uma nova maneira de sentir, pensar e agir, determinada por outros valores, como fazer justiça com as próprias mãos.”

Minerbo destaca que a justiça com as próprias mãos já pressupõe algum grau de institucionalização, pois ninguém poderia ter uma atitude dessas individualmente se não se sentisse parte de uma comunidade que compartilha das mesmas crenças e dos mesmos valores. “Seria considerado um assassino, e não um ‘justiceiro’. Essa comunidade, bem como os linchamentos, pode ser real ou virtual.”

A tal da vantagem

Um(a) brasileiro(a) acorda às 4 da manhã para tomar um ônibus das 4h45 e que o deixará no trabalho para seu turno que começa às 6h30. O expediente tem broncas do chefe, corte de benefícios pela empresa e só vai se encerrar às 17h, quando um outro ônibus lotado enfrentará um trânsito de duas horas e só então ele poderá chegar em casa, onde vai precisar lidar com outro turno de trabalho: o das tarefas domésticas.

No trajeto de ida e volta ao trabalho, ele(a) deixará o pagamento por um transporte de funcionamento precário e abaixo das expectativas para o preço pago nas tarifas. Paga um plano de saúde e descobre que não existe cobertura para os procedimentos que precisa fazer.

Fora desse trajeto, permanece a realidade de contas a pagar. Além dos tributos municipais, estaduais e federais, essa pessoa arca também com um caríssimo serviço de internet, uma telefonia problemática e cara, uma energia elétrica e um aluguel abusivos.

É difícil se livrar da sensação de que o(a) brasileiro(a) “levou pancada” na vida, e continua tomando. Aqueles em quem se deveria confiar não inspiram confiança. É como se houvesse um estímulo para compensar essa porção de dificuldades. Não se importar com ações que afetem quem está ao redor é um efeito perverso da lei desqualificada e substituída pela Lei de Gerson, esclarece Minerbo.

Nessa cultura, vale mais quem souber manobrar melhor para ‘levar vantagem’, quer dizer, manobrar para ter acesso a mais prazer do que os demais. A esperteza é premiada: os mais espertos merecem mais, e por isso podem e devem gozar mais do que os outros.

Por muito tempo se disse que o caminho mais fácil era varrer a corrupção para debaixo do tapete. Se não é vista, não nos atinge.

Mas cada vez em que nos sentimos passados pra trás, desamparados por nossas próprias autoridades, presenciamos nosso bolso se responsabilizando por obras superfaturadas e desvios afins e encaramos que a corrupção é estimulada, como se só ela tivesse trânsito, permitisse diálogo na política e sinalizasse “malícia”, esse tapete se mostra tão esburacado como uma peneira.

Em vez do tapete, a historiadora Del Priore nos lembra que o confronto com a corrupção passa por uma outra velha conhecida nossa, obrigatória para todos os brasileiros:

Hoje, graças aos meios de comunicação, os cidadãos têm acesso a informações que o permitem avaliar o impacto e o mal que a corrupção traz a coletividade. Certa “conscientização” está em andamento…Mas, para acelerar tal processo, falta o essencial: educação. Só ela impõe limites.

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST

Imagem de capa: Shutterstock/RomanR

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