Em termos psíquicos, na pele se encontram as marcas que nos constituem enquanto pessoas. Seu revestimento narra as pancadas e as contusões, os direitos e os avessos, as feridas e as cicatrizes trazidas desde a totalidade do corpo até a unidade com alma. Por detrás de cada sinal, deixado por um adoecimento dermatológico, há uma história para se contar e, talvez, um conflito emocional a se resolver. “Nesse caso a pele revelaria no exterior o estado interior, pois ao mesmo tempo em que protege nosso meio interno, por meio de sua forma, textura, coloração e cicatrizes, ela o revela” [1, p.83]. Lá estão registradas sucessivas lutas, inúmeras vergonhas e orgulhosas conquistas.
Por meio da pele sentimos habitar em um corpo que é só nosso e de mais ninguém. Nela se cruzam os limites postos pela individualidade que alcançamos e pela coletividade que nos foi transmitida. No contato da pele experimentamos a nós mesmos e fazemos a experiência do outro. Ela atua diretamente na fronteira entre o ‘eu’ e o ‘não eu’ [2]. Muito do que somos hoje, inclusive para a formação do psiquismo [3], provém das sensações mais afetivas, bem como das percepções mais antigas, vivenciadas de maneira saudável ou patológica através da pele.
Já em termos fisiológicos, a pele é compreendida como uma membrana responsável por envolver a estrutura corporal. Além de abrangê-la, por inteiro, também tem a função de isolar os órgãos vitais, protegê-los de agentes patológicos, ao mesmo tempo em que cuida e regula a temperatura interna do corpo. Ela possui três extensas divisões de tecidos: a epiderme superficial, a derme intermediária e a hipoderme profunda [4]. Suscetível a tantos estímulos, “as ligações existentes com o sistema nervoso tornam a pele altamente sensível às emoções, independente da consciência. A pele expressa os sentimentos, mesmo quando não se está ciente deles” [5].
Hoje em dia, o saber psicológico e o conhecimento médico têm se integrado, a partir de um trabalho multidisciplinar e psicossomático, visando o entendimento das doenças que se manifestam na pele, mesmo sem uma causa orgânica visível. Não raro os próprios dermatologistas encaminham os seus pacientes para a avaliação psicológica. Nesses atendimentos deve-se evitar toda espécie de psicologização, isto é, a defesa de que as doenças cutâneas são de origem estritamente emocional.
Afinal, nem todo adoecimento é psíquico. Mas, uma grande parcela é provocada por estados mentais conflituosos [4, p. 72, 481-482]. Cabe destacar aqui o bonito trabalho dos psicólogos que acompanham mães de recém-nascidos e crianças com patologias na pele. Isso porque “Crianças […] podem tornar-se inábeis para lidar com a ansiedade, podendo desencadear sintomas na pele quando estressadas, cuja profundidade é proporcional à profundidade do dano psíquico” [6]. Se a compreensão já é difícil para um adulto, quanto não será para os menores.
Tanto o corpo (do grego sôma) quanto à alma (do latim anima) falam da nossa unidade primeira. O que ocorre em uma dimensão tem consequência direta sobre a outra. Tal totalidade pode ter sido rompida pelos embates da vida, a ponto de nos deixar fragmentados e adoentados. Logo, alguns pacientes trarão na pele as marcas de uma relação possessiva da qual tiveram que se libertar, enquanto outros testemunharão no corpo as feridas do abandono e da separação, como por exemplo, em situações de luto, no término de um namoro, na condução de um divórcio, no processo de adoção e até no aparecimento de outras doenças. De uma maneira bastante precisa “a pele lesionada parece representar esse rasgo, esse corte marcadamente simbólico da ruptura com o outro fusionado, necessária para a continuidade do desenvolvimento psíquico saudável” [2, p. 185].
Muitas dessas afecções possuem uma íntima relação com conflitos emocionais negados ou reprimidos por anos afins. São as chamadas psicodermatoses. Os termos técnicos têm ares de difíceis. Entretanto, a maior dificuldade está no dia a dia dos pacientes, cujo sofrimento atua sob a forma concreta da Dermatite Atópica, do Vitiligo, da Psoríase, do Lúpus, do Herpes, dentre outras patologias. As terríveis inflamações, as repetidas coceiras, as decorrentes ardências e os constantes pruridos “não deixam retocar a impressão excessivamente honesta que a pele transmite” [7].
A pele é o maior órgão do corpo humano. Sua funcionalidade também se remete à contenção. Em determinadas ocasiões, ela também passa a repelir as repetidas invasões dos agentes externos. Engana-se quem os pensa apenas como vírus ou bactérias. Muito além disso, podem ser também os considerados bisbilhoteiros, os denominados abelhudos e os sabidos curiosos de plantão. Por esse motivo, os pacientes acometidos por transtornos dermatológicos dão a merecida importância aos espaços que precisam ser respeitados, aos limites que não deveriam ser ultrapassados e ao alcance que os demais terão sobre suas existências.
Tem coisas que não adianta explicar. Às vezes, é desgastante por demais fazer-se compreender. Alguns não vão entender mesmo a utilização de roupa comprida para esconder as cicatrizes das feridas passadas. O que para eles soa como estranho, para os doentes ressoa como proteção. Outros podem não perceber o porquê do isolamento no quarto, em especial, nos dias de crise aguda, quando a vermelhidão, a inflamação e a escamação parecem ter vida própria ao se alastrarem pelo corpo. Questionarão até mesmo o motivo de tanta coceira como se ela fosse uma questão de simples escolha. Talvez, a incompreensão venha do desconhecimento da doença e de estarem distantes da angústia sentida pelos psicodermatos.
Chega um período em que a pele adoecida clama por solução. Chega um momento em que a irritabilidade pede para ser trabalhada. Chega uma estação em que a imagem corporal, outrora distorcida pela doença, solicita pela reconciliação com o próprio corpo. É chegada, então, a hora de diminuir as defesas. Junto do tratamento dermatológico, o acompanhamento psicológico é fundamental. As feridas das lesões e a expansão das despigmentações tendem a ser amenizadas à medida que elaboramos o que não havia sido elaborado e verbalizamos o que havia sido silenciado. Damos um sentido à dor: simbolizando-a! A doença dermatológica não é de todo ruim. No fim, “não é ela que é curada, mas ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la” [8]. Que ela possa, então, contribuir com o desenvolvimento psíquico que nos impulsiona para a vida.
Paulo Crespolini – Psicólogo – CRP 06/132391
Graduado em Filosofia e pesquisador em Psicologia Analítica.
Textos profissionais: facebook.com/conflitopsiquico
REFERÊNCIAS
[ 1 ] Sant’Anna PA, Giovanetti RM, Castanho AG, Bazhuni NFN, La Selva VA. A expressão de conflitos psíquicos em afecções dermatológicas: um estudo de caso de uma paciente com vitiligo atendida com o jogo de areia. Psicologia: Teoria e Prática. 2003;5(1):81-96.
[ 2 ] Jorge HZ, Ludwig MDB, Muller MC. A pele como órgão de relação e suas implicações no desenvolvimento psicológico. Werlang BSG, Oliveira MS, organizadoras. Temas em Psicologia Clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2006, p. 183-190.
[ 3 ] Souza CGP, Sei MB, Arruda SLS. Reflexões sobre a relação mãe-filho e doenças psicossomáticas: um estudo teórico-clínico sobre psoríase infantil. Boletim de Psicologia. 2010;60(132):45-59.
[ 4 ] Rivitti EA. Manual de Dermatologia Clínica de Sampaio e Rivitti. São Paulo: Artes Médicas; 2014, p. 1-14, 72, 481-482.
[ 5 ] Silva JDT, Muller MC. Uma integração teórica entre psicossomática, stress e doenças crônicas de pele. Estudos de Psicologia. 2007;24(2):247-256.
[ 6 ] Silva AK, Castoldi L, Kijner LC. A pele expressando afeto: uma intervenção grupal com pacientes portadores de psicodermatoses.
[ 7 ] Dahlke R. A doença como linguagem da alma: os sintomas como oportunidades de desenvolvimento. Pignatari D, tradutor. São Paulo: Cultrix; 1992, p. 55.
[ 8 ] Jung CG. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes; 2000, p. 160-161.
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