Por Giuliarde de Abreu
Assistir a um filme é se dispor à leitura de uma história contada em imagens. Significa mergulhar em uma narrativa visual e sonora artisticamente produzida para exprimir ideias e emoções. A imagem no cinema, portanto, não tem a intenção de ser realista, antes de tudo, ela é uma visão estética da realidade que age intensamente sobre nossas sensações, mesmo que não estejamos conscientes disso. Sendo assim, observar com atenção o trabalho de fotografia de Moonlight – sob a luz do luar, premiado filme estadunidense dirigido por Barry Jenkins, pode ser uma dessas experiências visuais arrebatadoras, capazes de revelar, à medida que percebemos conscientemente sua lógica visual, seus enquadramentos, sua luz e suas cores, a intensidade de uma realidade e a intimidade dos personagens que a povoam.
Através de uma paleta equilibrada de cores primárias e secundárias e de intensos contraste luminosos, Moonlight estabelece com sofisticação e beleza uma complexa paisagem emocional de seu personagem central, Chiron, um garoto negro, homossexual e morador da periferia de Miami, cuja história, contada em três fases, não apenas se divide em três etapas de sua vida, infância, adolescência e vida adulta, mas se compõe também na coerente mudança de texturas e no peso que as cores vão assumindo ao longo da projeção.
Fotografado por James Laxton e colorido por Alex Bickel, o filme de Jenkins estabelece já em seu primeiro plano uma tensão visual que será predominante durante toda a narrativa. Situado na dura realidade de Liberty City, localidade pobre de Miami, um bairro ensolarado envolve as personagens em luminosos tons pastéis, circundados pelo verde das árvores e da vegetação rasteira. Desde o início, Moonlight constrói cuidadosamente uma identificação visual dos espectadores com as cores, responsáveis por estabelecer, ao longo do filme, a empatia e o vínculo emocional desses com as personagens da história contata. Um primeiro e abrangente tom de azul surge imediatamente associado à Juan, personagem vivido por Mahershala Ali, traficante e principal figura paterna na vida do pequeno Chiron (Alex R. Hibbert). Ao fundo o amarelo e o vermelho aparecem inicialmente com mais timidez, pois só mais adiante terão maior relevância na trama. Jenkins e Laxton, afastando-se de um tratamento documental e realista da imagem, optam por oferecer às personagens uma luminosidade quase pictórica, como se filmassem em tinta óleo sobre a tela, modelando as faces sempre expressivas dos atores.
A belíssima textura da pele negra das personagens é constantemente realçada por diferentes efeitos de contraste, por vezes advindo do próprio meio opressor e violento no qual se inserem. Segundo Laxton, “queríamos abraçar a tensão dessa beleza, justaposta com as coisas muito escuras que estão acontecendo com os personagens da história”.
“Sob a luz do luar, garotos negros ficam azuis. Você está azul. Então vou te chamar assim. Azul”.
A frase acima, presente no primeiro ato do filme, quando Juan conta a Chiron a origem de um apelido, torna-se determinante para alinhavar à história do garoto o significado íntimo e existencial dos tons de azul, os quais serão predominantes em toda projeção e símbolo permanente de sua personalidade em formação. O azul, em diferentes nuances, figura como reflexo constante dos desejos, anseios e tensões que moldam a personalidade de Chiron, tornando-se, deste modo, nossa fonte primeira de afeto e de identificação com os estados da alma do personagem.
Filmado em três estágios distintos de tratamento da imagem, Moonlight cria uma lógica visual incrivelmente coesa. Em sua primeira parte, centrada na infância de Chiron, apelidado de Little pelos colegas, a predominância do azul apresenta-se em tons médios, saturado quando aplicado em belos contrastes com o branco e o preto, ou liquefazendo-se com o verde do mar, em uma das cenas de maior lirismo do longa, que não apenas estabelece a dimensão emocional da personagem e suas lembranças de infância, mas principalmente a identificação paternal com a figura masculina representada por Juan. Dito isso, não deixa de ser profundamente tocante ver um ponto azul piscar por duas vezes na tela e se apagar, anunciando com elegante sutileza, ao mesmo tempo, a entrada para a segunda parte, a adolescência de Chiron, e também a morte do traficante, que passa a ser mais uma figura de ausência na vida do jovem. Nessa passagem da primeira para a segunda parte, uma nova cor, o amarelo, torna-se cada vez mais presente, traduzindo com intensidade as sensações de desamparo e de solidão vivenciadas pela personagem.
Neste momento, o trabalho fotográfico de Laxton e Bickel se revela mais uma vez primoroso, pois percebemos, dentro da lógica visual que o filme estabelece, que o amarelo já estava pontualmente presente na primeira parte, nos pequenos motivos florais do vestido da mãe, ou nos azulejos e utensílios do banheiro, antecipando em instantes de certa melancolia e abandono, alguns dos estados emocionais que se intensificariam na adolescência de Chiron (Ashton Sanders).
Para seus realizadores, a composição visual de Moonlight sempre se pautou na tentativa de encapsular os elementos necessários ao alcance do que se pretendia que o filme fosse em cada um de seus três capítulos, a fim de atribuir a cada um deles uma experiência distinta do olhar. Enquanto no primeiro ato, cores mais quentes trazem uma grande quantidade de texturas aos tons de pele das personagens, mais profuso que os outros, o segundo ato cobre as sequências de imagem com uma entristecida tonalidade azul-esverdeada, diametralmente oposta àquela do oceano visto na primeira parte.
Anunciando a passagem ao terceiro e último capítulo, um novo interlúdio, desta vez com pontos vermelhos intermitentes, marca a presentificação determinante dessa última cor, cuja presença já atravessara decisivamente momentos de grande impacto emocional na vida Chiron, desde o vermelho de sua camiseta e do sangue que percebe no amigo Kevin (Jaden Piner), em uma das primeiras expressões físicas de afeto entre os dois ainda crianças, até o vermelho presente nas portas e paredes da escola, responsáveis por antecipar, na segunda parte do filme, os momentos de extrema violência que viriam logo em seguida.
Todavia, reside na figura materna e na relação conflituosa e amargurada de Chiron com a mãe (Naomie Harris) o ponto de maior intensidade da cor vermelha no filme. Representado em uma recorrente cena de pesadelo, o terrível impacto emocional de ver a mãe entrar no quarto para se prostituir, após mais uma vez expulsá-lo de seu próprio lar a gritos, se dá sublinhado pelo vermelho de sua blusa e pelo brilho avermelhado da luz artificial de neon que a envolve e parece consumi-la.
Uma vez estabelecida essa lógica das imagens, a solitária trajetória cinematográfica de Chiron (Trevante Rhodes) encerra-se em um movimento que o traz já adulto de volta à Miami, significando, também, um retorno afetivo a um mundo de anseios e dissabores vividos na infância. Dirigindo em direção à cidade natal, em razão do afetuoso chamado de um velho amigo, presenciamos Chiron, em uma poderosa metáfora visual, mergulhar nas águas espumantes de um oceano sob o céu noturno.
À medida que o carro avança sobre a estrada, em uma belíssima fusão de planos, um grupo de crianças mescla-se à cena, brincando nas águas do mar sob a luz do luar, traduzindo assim, na pura linguagem do cinema, as lembranças e sensações que aquele retorno desperta no interior do protagonista. Por fim, reapresentado sob a iluminação azulada de uma cozinha de restaurante, quando com um telefonema repentino volta a entrar decisivamente na vida de Chiron, Kevin (André Holland) passa a representar, pela afeição e ternura que comunica ao amigo em cada gesto, o consolo e a aceitação a tanto tempo ausente na existência rude e solitária de Chiron. Vale notar, na cena em que ambos se encontram no modesto lar de Kevin, como este veste o mesmo tom de azul que antes identificara Juan, e que emerge na imagem como ponto luminoso frente ao mundo acabrunhado de tons amarelados e marrons do protagonista.
Moonlight nos convida, portanto, a mergulhar em uma experiência visual repleta de sutilezas e simbolismos. Ao discursar na cerimônia do Oscar, após justa vitória de seu filme na categoria principal, Barry Jenkins disse: “Claramente, nem nos meus sonhos isso poderia ser realidade. Mas ao inferno com os sonhos, estou farto deles. Pois isso é verdade!”. Pois compartilhamos da mesma ideia. No mundo real, de preconceitos, violências e intolerâncias no qual vivemos, enquanto os tolos sonham, muitos meninos sensíveis e corajosos buscam quem são em uma realidade capaz de se tornar poesia sob a luz do luar.
TEXTO ORIGINAL DE OBVIOUS
A nova minissérie da Netflix apresenta o público a uma história engenhosa e surpreendente que…
O longa-metragem tem sido muito elogiado por críticos por sua capacidade de emocionar e educar,…
Por que temos tanta dificuldade em nos livrar de roupas que não usamos? Segundo especialistas,…
Segundo a mãe, a ação judicial foi a única forma de estimular a filha a…
Uma pequena joia do cinema que encanta os olhos e aquece os corações.
Uma história emocionante sobre família, sobrevivência e os laços inesperados que podem transformar vidas.