A morte é a fiel companheira da vida. Uma coexiste na outra. Da mesma maneira que somos desembrulhados para o viver também somos envolvidos pelo morrer. De um lado, a potencialidade da vida. Mais adiante, a vulnerabilidade da morte. Enquanto uma caminha para a plenitude, a outra peregrina para a finitude. Ambas são polaridades opostas de uma única realidade a qual chamamos de existência. As duas nos tocam, dizem respeito a nós, são da nossa conta, nos interessam por inteiro e, acima de tudo, nos pertencem. Há de se ter em conta que “vida e morte não são inimigas. São irmãs. Sem a morte, a vida também não existiria, pois a vida é, precisamente, uma permanente despedida” [2]. Alguns, mais voltados ao exercício da religiosidade popular, temem a morte como salário do pecado, ao modo de uma punição imposta pelo corrompimento humano [3]. Outros a concebem enquanto resultado da vontade soberana de uma divindade. Cabe exclusivamente a ela dar a vida e também retirá-la quando assim lhe aprouver. Outros ainda, sem recursos psíquicos suficientes para compreender o porquê de tamanha atrocidade, permanecem aniquilados em uma extinta esperança.
Já os restantes, subjugados pela dor da perda, sentem-na como decorrência do fracasso médico. “A onipotência técnico-científica, a serviço da ciência médica, criou a ilusão da saúde perfeita que vence todas as doenças e imperfeições da natureza humana. Consequentemente não aceita nenhum fracasso diante da doença e da morte” [4].
Por mais negada, contestada e odiada que seja: a morte segue pedindo passagem, afirmando que é sequela direta da vida: ‘vivemos e, por isso, morremos’. Sem grande rigor, é fácil teorizar sobre a morte. Bastaria tê-la como irrevogável, infalível e inevitável. Ah, se fosse simples assim! Tudo seria bem mais prático caso reconhecêssemos a impossibilidade de evitá-la, mas não é o que ocorre. Afinal, se racionalizarmos as emoções, classificarmos as perdas e nos distanciarmos da dor estaremos a banalizar a experiência da morte e do morrer [5].
Podemos até adiá-la artificialmente. Mas, até o presente momento, com as soluções científicas que dispomos, não fomos capazes de detê-la.
O fato é que sem nos consultar, agindo em total desconsideração para com os nossos sentimentos, ela retira de nós: pais, filhos, familiares e amigos. Na verdade, a morte dilacera-nos por dentro porque rompe com os vínculos mais duradouros que possuímos. Pressupõe-se que, em nossos acordos afetivos, estabelecidos vida afora, só há espaço para viventes, nunca para morrentes. Esperada ou inesperadamente, a morte chega trazendo a temida angústia da separação.
Sem generalizações descabidas, é possível que falta-nos força para reconhecer a dimensão limitada e finita da vida perante a chegada da morte. Naquele primeiro momento nosso ego parece não dispor de recursos psíquicos necessários para assimila-la, acolhê-la e elaborá-la sob a forma do luto. É por isso que muitos, atordoados pela perda, sepultam seus mortos apenas externamente. Mas, internamente, lá na fundura da alma, continuam a venerá-los e a cultivá-los como se não houvessem falecido. Ao invés de integrar a difícil realidade da morte, passam a negá-la por completo.
É como se aquela pessoa morta continuasse a existir dentro do sujeito que se recusa a aceitar a partida de um ente querido. Assim, no lugar de ser sepultado, o morto é introjetado, ou seja, incorporado de modo inconsciente. A consequência disso é que não há luto. Para manter o falecido vivo dentro de si gasta-se uma energia psíquica descomunal. Assim, retiram-se das relações com os familiares e os amigos para investi-la no morto cultuado internamente.
Daí provêm o afastamento afetivo, o isolamento social e, em algumas circunstâncias, o domínio pela depressão. Por conseguinte, muitos são aqueles que buscam na psicoterapia um meio de aproximação com a vida e de escuta com a morte, de modo que falecido e vivente continuem “a se amar pelo resto de suas vidas com o poder da memória e da saudade” [6].
Do ponto de vista científico, a Psicologia não pode afirmar absolutamente nada sobre o pós-morte. Cabe-lhe apenas se debruçar sobre os relatos dos pacientes acometidos pelas Experiências de Quase Morte (EQM’s). São “experiências vividas no estado intermediário entre a vida e a morte, tais como são relatadas por indivíduos que se recuperaram de um estado de inconsciência” [7].
Por outro lado, sendo a morte um problema dos vivos, a Psicologia visa a atuar junto do sofrimento humano, na tentativa de avançar pelos cinco estágios do luto, a saber: 1. Negação, 2. Isolamento, 3. Barganha, 4. Depressão e 5. Aceitação [8].
No caso de pacientes terminais e de seus respectivos familiares, a Psicologia também age no sentido de que a doença não seja vista tão-somente como “a possibilidade da perda, uma emissária da morte”. [ 5 ].
Além disso, perante a doença “deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrário, teremos um desencontro com ela e perdido a oportunidade de conhecer quem somos. Não é ela que é curada, mas ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la” [9] de alguma forma. É fundamental acolher o enfermo terminal e de todos os modos não aplicar-lhe a pena de “[…] uma longa e sofrida agonia” [10].
Se há alguma certeza nesta vida é a de que a morte não nos faltará. Ela é um fenômeno recorrente, universal e inerente. Chegará um tempo em que ela nos encontrará nas esquinas da vida. Ali todo o desejo infantil da imortalidade se dissipará. O mais importante é que aprendamos, junto da morte, a sabedoria do bem viver, tornando-nos pessoas: mais resolvidas com os sentimentos, mais apaziguadas com os fatos e mais reconciliadas com as pessoas. Do contrário, a vida vai se tornando pesada por demais, a ponto de se tornar insuportável, mediante o fado das mágoas e a ferida dos ressentimentos.
Que frente à morte possamos silenciar as nossas palavras, respeitando a dor alheia, acolhendo a ferida psíquica do luto que carece de cura e transformação: “Eu vivia em Nova York com a minha família. Aí o pai da minha esposa foi morto num acidente, no Brasil. Ao abrir a porta do apartamento, no chão estava um buquê de flores. Aquele que o trouxera se retirara em silêncio. Não tocara a campainha. Mas deixara um bilhete onde estava escrito: ‘Não quis perturbar a sua dor…’” [1].
Paulo Crespolini – Psicólogo – CRP 06/132391
Graduado em Filosofia e pesquisador em Psicologia Analítica.
Textos profissionais: facebook.com/conflitopsiquico
REFERÊNCIAS
[ 1 ] Alves R. A morte e o silêncio. [publicação on-line]; 2008 [acesso em 04 de set. 2016]. Cotidiano. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0912200806.htm.
[ 2 ] Alves R. O médico. 7. ed. Campinas: Papirus, 2002, p. 67.
[ 3 ] Cf. Rm 6,23.
[ 4 ] Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? 2. ed. São Paulo: Loyola; 2007, p. 332.
[ 5 ] Lima AAF. A morte, o tempo e o cuidar. Silva MJP. Qual o tempo do cuidado? Humanizando os cuidados da enfermagem. São Paulo: Loyola; 2004, p. 164.
[ 6 ] Alves R. Sobre o tempo e a eternidade. 13. ed. Campinas: Papirus; 1995, p. 83.
[ 7 ] Freitas LV. O ser humano: entre a vida e a morte – visão da Psicologia Analítica. Kovács MJ. Morte e desenvolvimento humano, Organizadora. 4. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002, p. 114.
[ 8 ] Kubler-Ross E. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes. 7. ed. Menezes P. São Paulo: Martins Fontes; 1996, p. 4 e 26.
[ 9 ] Jung CG. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes; 2000, p. 160-161.
[ 10 ] Siqueira JE. Questões éticas referentes à terminalidade da vida. Oliveira FB, Kasznar IK, Organizadores. Saúde, assistência e previdência social: desafios e propostas estratégicas. Rio de Janeiro: Tribia; 2010, p. 57.
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