Sabemos bem, contemporâneos da era da virtualidade, que a internet, grande avanço para a informação, possui inúmeras utilidades para diferentes demandas no dia-a-dia. Uma delas, é a transposição da interação humana para o abstrato de uma rede social. O avanço das mesmas foi sempre espantoso no Brasil desde a virada do século, e com a popularização dos modernos smartphones, hoje, o facebook é considerado a rede social com mais usuários no mundo, com os brasileiros presentes cada vez mais presentes (AFP apud UOL, 2014).
Poderíamos pensar na virtualidade como algo além da desrealização – alteração da sensação a respeito de si próprio -, ela é muito mais uma mutação da identidade. Se a virtualidade é a externalização dos conteúdos mentais para uma plataforma cibernética interacional, ela emite não só imagens, mas uma paradoxal presença na ausência de um espaço material (LÉVY, 1996). A virtualidade ao passo que é uma mutação da identidade, permite que exploremos traços de nossa personalidade, assim como a criação de traços que são inexistentes na realidade offline. Nesse campo que podemos metaforizar com um hipotético campo onírico estruturado como a consciência, as limitações impostas pela sociedade parecem não ter efeito.
As fantasias podem ser satisfeitas com pouca culpa ou ausência da mesma, ou ainda: o supereu – instância moral subjetiva que supervisiona o eu para que esteja sempre de acordo com o que a sociedade e os ideais de eu requerem – diminui sua eficácia. Nesse ponto, podemos citar os sintomáticos fenômenos sociais transportados para o virtual, como o discurso de ódio, as perversões, a violência entre outros, que na realidade offline, por vezes a sociedade não permite que o sujeito expresse ou permite de forma velada e não tão satisfatória.
O interpessoal nesse espaço, conforme é intermediado pela virtualidade e não pelo face-a-face, cria uma enorme quantidade de amigos, mas um distanciamento de relações reais; Inúmeros benefícios: criação de eventos, ativismos virtuais de impacto social, transmissão de conhecimento, interação com pessoas de diferentes culturas e estilos, debates, ofertas, mas também prejuízos, como vínculos efêmeros não permanentes, exibicionismo, os já citados sintomas sociais graves e o narcisismo patológico que surge através de atividades compulsivas, como o postar frequente de fotos, atualizações de status, músicas, textos e até check-in da localização atual (DORNELLES, 2004), em outras palavras, é a altíssima exposição de si, que já não é o mesmo “si”, mas um outro si, pela transformação própria da identidade na virtualidade, causada pela compulsividade que perverte o botão compartilhar.
O famoso mito de Narciso da origem ao termo narcisista. Narciso era uma criança linda, onde a mãe nutria muito amor e admiração. A beleza excessiva do filho levou a mãe, preocupada, ir até um sábio – oráculo em algumas versões -. A revelação foi que Narciso só teria uma vida longa se nunca enxergasse a sua própria imagem. Por muito tempo foi o que aconteceu, pois os pais esconderam todos os espelhos da redondeza. Narciso cresceu sem jamais enxergar seu reflexo no espelho.
Até que, certa vez, se aproximou do rio e no reflexo da água viu sua imagem: estava apaixonado por si mesmo. Dos vários finais da versões, em alguns ele fica petrificado, em outras, ele se afoga ao não saber que o reflexo é ele mesmo, num delírio de que a imagem era outra pessoa e que era possível agarrá-la (GREENE; SHARMAN-BURKE, 2001).
De acordo com as leituras de textos psicanalíticos, podemos ver desde já, como de costume, Freud (1914) preocupado com as banalizações do uso da palavra e da associação com está às degenerações. Narcisismo se torna um conceito complexo na teorização psicanalítica, possui dois tempos, um primário e um secundário. A libido narcísica ou do eu, proposta por Freud seria a energia psíquica que sustenta o Eu permitindo o funcionamento do mesmo.
O narcisismo primário importante para a construção do sujeito, da sua auto-imagem, dos limites do self, um auto-investimento. O narcisismo secundário, mais elaborado e contemporâneo da construção completa da personalidade que vive ao lado do amor objetal. O investimento em um objeto que faz retornar a libido para o eu. As relações mais elaboradas então comportam sempre um amor objetal e ao mesmo tempo um amor narcísico.
No que diz respeito ao auto-investimento, seria o investimento deslocado para um eu idealizado, remanescente da lembrança de quando se era bebê numa fantasia de onipotência, que tudo possuía e nunca era desamparado – sempre amado – (FREUD, 1914). Lacan(1998), na tese do Estádio do Espelho, com sua complexidade que abrange não só a importância do narcisismo, mas toda a constituição do imaginário da realidade psíquica, reafirma a importância do narcisismo como formação do eu. A partir do outro que o eu se constitui. A relação da criança com sua imagem no espelho, a partir da constituição da imagem corporal, estabelece uma diferença entre seu corpo e o mundo externo.
Podemos ver o discurso psicanalítico elaborando num primeiro tempo, toda a desconstrução do caráter patológico do narcisismo. É num segundo momento, na intensificação, no excesso do mesmo, na transposição para um caráter, na paixão intensa por si mesmo, paixão vista nos comportamentos obsessivos e compulsivos, é que um prejuízo pode surgir, ainda que não causando sofrimento numa primeira análise como todo transtorno de caráter ou personalidade indica.
Narcisismo é algo inerente de todas as personalidades pois sustenta o eu, mas o forte traço no caráter, quando patológico, deve ser visto como alguma ruptura vivenciada ou fantasiada, ou alguma pré-disposição genética ativada por vivência. Normalmente, essa ruptura, ocorrendo na infância, se localiza na relação do bebê com a função materna ou paterna. Na chamada patologia do vazio, a mãe desampara o bebê. A mãe não oferece a palavra ao bebê nem manipula o corpo do mesmo.
Não há investimento no mesmo. O cuidado pelo olhar de ternura são ausentes. (WINNICOTT, 2000). Se o olhar falta, se a criança não se sente amada, podemos ver que o narcisismo que surge como patologia do caráter, deve ser compreendida sobretudo, também como uma defesa. Por trás da imagem forçada de onipotência, por vezes megalomaniaca, o comportamento de exposição e exibição é a busca por esse olhar da mãe. O desejo de ser olhado é o que move o comportamento exibicionista. Por isso há a necessidade da aprovação de sua imagem pelo outro, o desejo de ser especial. Essa necessidade pode se expressar de diversas formas, e aqui chegamos nas redes sociais como facilitadora de exposição e portanto, de satisfação para o narcisista.
No entanto, devemos situar que o narcisismo patológico não é só um problema na história do individuo, mas um problema social da atualidade, fomentado pela cultura que reforça o narcisismo inato de cada um para que seja preponderante na personalidade. A pós-modernidade, entre seu bônus e ônus, ao fomentar a centralidade do eu sobre todas as coisas, comercializando ideais de eu a partir de padrões de beleza e consumismo, cria imperativos que obrigam o individuo a se identificar com os valores da sociedade de consumo.
Sociedade que estimula a aparência perfeita e a exibição da boa forma. A busca do prazer pelo consumismo, do hedonismo permitido como filosofia de vida desde que se consuma. Um narcisismo militante segundo Pinto (2009). Baudrillard (1970[1995]; 1983) adiciona nesse argumento que o imediatismo da cultura tecnocêntrica do consumo transportado para a ilusão da virtualidade permite ao sujeito perder sua essência e do que é Real. O mundo fitness pode ser um exemplo que demonstra acima de tudo o enamoramento com o espelho. Espelho que pode ser transportado para as redes sociais.
As compulsões narcísicas nas redes sociais através das constantes atualizações de status, fotos, etc. são reflexos dessa cultura. Primeiro, a vaidade supervalorizada pelo interesse do outro pela vida do sujeito fazem o narcisista ter orgulho de mostrar constantemente suas qualidades pessoais e posses. Segundo, o ambiente de competição, próprio da sociedade consumo, onde um deve querer mostrar ser mais que o outro.
E terceiro, numa forma mais inconsciente, a busca por identidade pelo grande vazio existencial causado pelos desamparos ao ver a imagem do outro. O narcisismo se torna compartilhado. Um ajuda o outro nessa dinâmica de exposição, ao mesmo tempo que um deseja que o outro seja menos para que possa se auto-vangloriar ou ser vangloriado. Esse reforço também é feito pelo próprio sistema da rede social, pela comercialização de discursos para se apropriar.
Enunciados de auto-afirmação e grandeza que sempre colocam ênfase no autor, na identidade do mesmo. O sujeito em primeira pessoa em suas variações gramaticais: “aconteceu comigo”, “sou isso”, “estou bem”. O narcisista nesse ambiente, lembremos de sua condição de necessitar da aprovação do outro, portanto, cada amigo adicionado que o elogia nas fotos e postagens, alivia sua insegurança e desamparo. O medo do desamor o deixa hipersensível à criticas e tudo pode ser visto com invasão do espaço pessoal. Paradoxalmente existe um desejo de fusão e contato com o outro.
O ideal de eu nesse caso, vendido pela cultura, ajuda o narcisista a se aproximar, ao se expor, de seu eu ideal. Toda vez que consegue se aproximar de seu ideal, se sente realizado e desfruta da autoestima; autoestima que é profundamente marcada pelo vazio existencial e da angustia de desamparo. Não podemos deixar de citar, rapidamente, só a titulo de menção que o compartilhar desse narcisismo tem aspectos perversos, como já podemos ter notado, exibicionismo e voyeurismo estão lado a lado nas redes sociais.
Esse fenômeno de grande complexidade, disposicional, experiencial, social e cultural e os poucos estudos sobre o assunto, deixam tudo muito nublado e fica difícil correlacionar tantas fatores. As hipóteses são muitas, as evidências também. O que podemos compreender disso tudo, é como tudo que diz respeito ao eu é fomentado na contemporaneidade, e como as compulsões e obsessões nas redes sociais podem estar ligadas a esse fato de um narcisismo patológico cada vez mais presente para aqueles que possuem em sua constituição tal traço marcante, para aqueles que são levados à ser – só assim serão aceitos socialmente – e para adquirir um sentido -falso – à própria existência. Não há uma resposta fácil que soluciona tal dinâmica, pois não há possibilidade de viver na atualidade sem os benefícios que a tecnologia proporciona. Numa práxis talvez possamos realizar algumas mudanças sociais como a mudança do comércio da imagem e da centralidade do eu no consumo. A mudança da sociedade do espetáculo e do narcisismo possibilitará que os vazios existenciais grandes não se tornem maiores ainda, e, que os pequenos, não se alarguem.
REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Rio de Janeiro: Vozes, 1983.
BAUDRILLARD, J. (1970) A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.
DORNELLES, Jonatas. Antropologia e Internet: quando o “campo” é a cidade e o computador é a “rede”. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, n. 21, p. 241-271, 2004.
FREUD, S. Sobre o Narcisismo: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Imago, 1914.
GREENE, Liz; SHARMAN-BURKE, Juliet. Uma viagem através dos mitos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
PINTO, Marcia. Fragmentação da identidade e comportamento narcisista no mundo das novas tecnologias. Fasci-Tech, São Caetano do Sul, v. 1, n. 1, p.63-73, 2009. Disponível em: <http://www.fatecsaocaetano.edu.br/…/fascitech/article/view/7>. Acesso em: 15. jan. 2016.
UOL. Facebook tem 1,23 bilhão de usuários mundiais; 61,2 milhões são do Brasil. 2014. Disponível em: <http://tecnologia.uol.com.br/…/02/03/facebook-em-numeros.htm>. Acesso em: 20 Fev 2016.
WINNICOTT, Donald. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. São Paulo: Imago, 2000.
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