Nietzsche, alguns temas e das três metamorfoses do espírito.

Nietzsche faz uma provocação com o seu enunciado “A morte de Deus”, pois se Deus, existe, ele não pode morrer. Nietzsche quer dar um fim a essa forma de estruturar o vivente em dualidades, questionando, afinal de contas, o que é o bem, o que é o mal, céu e inferno. As dualidades de certo e errado, normal e patológico, sadio e doente, puro e impuro. O filósofo pretende se afastar dessas formas tradicionais dicotômicas de moldar valores. Para Nietzsche só há referencial: Sentir-se vivo! Confiar nos seus instintos é não pensar é estar pronto. Os dias se passam e o futuro não é o agora, viver no aqui e agora é conhecer o sagrado valor da vida. Afirmar a vida é ser pleno.

Para se aproximar desse filósofo, é preciso tato, pois Nietzsche é bastante crítico aos valores vigentes da sua época. Investe contra, principalmente, os valores do racionalismo iluminista e até mesmo, a maneira de pensar a filosofia. O seu objetivo é o de criar novos valores, mas não a partir dos já criados, e sim a partir da queda destes valores por outros, sempre no âmbito da criação, da inovação, e, portanto, estes se fazem no processo, no devir, ou seja, o devir é o processo de transformação, de mudança. Isso significa que o tempo necessário, para as coisas acontecerem na vida é sempre na intenção do “tornar-se”. No sentido de vem a ser o que tu és, uma compreensão existencial.

Nietzsche, não pensava o homem como personalidade como centrado num eu que como o centro da vida do conhecimento e do mundo, ele pensava a existência, mas não encerrada, ou determinada em si tendo uma essência estável e definitiva e sendo definida metafisicamente por uma instância que fosse a sua causa substancial, como a Ideia, o Ser ou Deus, ele era tomado por um sentimento de totalidade homem-natureza, a ponto de considerar que o homem moderno científico natural era um decadente, ou seja, um niilista.

Não caberá a pensar a existência de outra forma, por que Nietzsche em nenhum momento garante nada como verdade absoluta e definitiva. Mesmo que tudo esteja garantido pela interpretação de mundo feita pelo próprio homem moderno, com o seu desconhecido apreço pela racionalidade, conhecimento e técnica.

Essas ideias terão um novo olhar sobre as sensações, o corpo, a religião, o mundo, a vida, com inúmeras possibilidades a serem ainda experenciadas, mas, nada que se torne estático, ou um dogma, e sempre em constante mudança.  Para Nietzsche, foi necessário aceitar o mundo em sua totalidade, onde uma nova ordem se estabeleceria novas regras, acima do Bem e do Mal, pois para ele essa dualidade se tratava de uma concepção humanitária, cristã, com isso o homem desprezaria a vida, a terra, a natureza. Para ele, a virtude do homem seria o resultado da luta contra si mesmo e que essa busca mantinha e garantia a própria existência, na procura da expansão da vida.

Nietzsche faz uma provocação ao se intitular como psicólogo, buscando, ao mesmo tempo, o saber filosófico e certamente concordaria, o homem como existência, ou seja, ser-no-mundo, e, como tal, responsável por si mesmo.

Lembrando-se que em sua obra Ecce Homo, na sessão intitulada “Por que escrevo livros tão bons”, Nietzsche dirá: “(…) que, nos meus escritos, fala um psicólogo sem igual, é talvez a primeira constatação a que chega um bom leitor…” (NIESTSCHE,

Ao se pensar em uma psicologia voltada para a filosofia de Nietzsche, mergulhamos na sua história, onde Nietzsche, na segunda metade do século XIX, em sua obra “O Nascimento da Tragédia” pensa uma nova forma de “se pensar a vida”, contrária às tendências predominantes nas religiões, da filosofia, da moral, da ciência, da própria cultura em geral e nos remete ao valor incondicional do corpo, dos sentidos e do vivido e da vivência humana, e como tais formas se manifestam em toda sua espontaneidade.

Por isso a sua crítica à chamada tradição metafísica (filosofia socrático-platônica e filosofia medieval), da cultura ocidental, de desvalorização do corpo e da vida. Dessa forma certas noções no mundo moderno como justiça, deus, bem, mal, verdade, virtude, teria uma relação entre elas, assim constata o progresso científico. O objetivo fundamental em sua obra a Genealogia da moral é a de realizar uma crítica radical dos valores morais dominantes na sociedade moderna.

A proposta de Nietzsche era que novos valores fossem criados, porém, sem o peso da tradição metafísica grega e da metafísica judaico-cristã, que prescreviam uma série de valores calçados em supostas essências eternas, suporte para fundamentar tudo o que é o ser, como o Belo, o Bem, o Justo, o divino[1], assim o homem ele passa a ser ele mesmo o centro das valorações, com isso os valores sofrem transformações no plano da vida.

Como exemplo desse pensamento, podemos citar Roberto Machado: “A morte de Deus é, portanto, um acontecimento da modernidade e ao anuncia-lo, Nietzsche não quer provar que Deus não existe como faziam os ateus, mas mostrar por que surgiu e como desapareceu esta crença na existência de Deus.” (MACHADO, op.cit., p.47).

Nietzsche faz uma provocação com o seu enunciado “A morte de Deus”, pois se Deus, existe, ele não pode morrer. Nietzsche quer dar um fim a essa forma de estruturar o vivente em dualidades, questionando, afinal de contas, o que é o bem, o que é o mal, céu e inferno. O filósofo pretende se afastar dessas formas tradicionais dicotômicas de moldar valores.

Colocando essa questão do valor, a genealogia da moral, avalia sua força. Considerando os valores morais, como valores vitais, afirma uma incompatibilidade entre o que é a moral e a vida e proclama que é preciso destruir a moral para libertar a vida Mas que valores são esses? Supomos que não se baseiam no ser e na sua natureza, não constituem algo “em si e para si”, mas são pontos de vista de um indivíduo. De acordo com Roberto Machado (1999): “Uma criação não são os fatos, são interpretações introduzidas pelo homem no mundo“.

Em sua obra, Nietzsche, nos leva a compreensão, como alguns intérpretes nos esclarecem, que a “vontade” em Nietzsche deve ser entendida como uma autoimposição e uma ordem e, precisamente, como uma imposição para um aumento de si mesma. Vontade, nossa mais íntima condição, necessita criar novos valores, a partir das quais “a vida se torna possível e digna de ser vivida.” Diante da alegre necessidade da beleza reparadora, assim como o é o sono e o sonho, cuja “verdade superior”, a “perfeição”, se contrapõe à realidade cotidiana tão fácil de ser vista, percebida e sentida.

Mas a ideia de mundo, de estar no mundo, nos aponta um constante conflito entre o indivíduo que deseja ser e o mundo com suas prescrições e normas morais, sociais, religiosas, científicas. Entre o desejo de ser, a afirmação de criar novos valores e se realizar como potência criativa é um conflito para o vivente e conviver com esses conflitos não é nada fácil. Sofrimento e prazer, tragédia e comédia, vivências de vida e de morte (perda, lutos, doenças) o constituem como um eterno devir de si mesmo e nesse devir ele constrói e desconstrói valores.

O devir de si mesmo nos remete a outro tema importante na obra de Nietzsche, o eterno retorno, esse tema consiste numa repetição, num retorno de todas as coisas, na natureza cíclica do real, e na natureza de nossos comportamentos repetitivos.  No entanto, em cada repetição, há um espaço também para um criar-se, para, como diríamos na linguagem da Gestalt-terapia-Terapia, um ajustamento criativo de si mesmo.  Dessa forma, o eterno retorno torna-se condição essencial para que o homem realize a redenção do passado, eliminando o modo ressentido, reativo e niilista de viver, torna-se capaz de criar o seu próprio futuro e assim dando sentido a sua existência.

Nietzsche concebe a vida como vontade, desejo, força cega que escapa à razão humana. Enquanto processo constante de construção e desconstrução, o mundo não é mais que um jogo, brincadeira de um Deus criança que “assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los”, conforme a misteriosa imagem de Heráclito, pintada pelo renascentista Rafael, em seu quadro A Escola de Atenas (em torno de 1510). Heráclito conta entre os chamados filósofos pré-socráticos.  Viveu, entre 540 a.C. e 470 a.C. Concebia a realidade do mundo como algo dinâmico, ou seja, em constante mudança. Segundo a sua frase mais célebre, “no universo tudo flui”, tudo está em constante movimento e transformação.

Finalizando a interpretação e a compreensão acerca do niilismo, na visão nietzschiana, se trata de uma ideia de um “mundo verdadeiro”, inalcançável pelo homem, onde esse mesmo homem se sente vazio, pois o futuro, ou melhor, dizendo, aquilo que para ele irá um dia alcançar, que está além, mas não agora, não dá a ideia de presente, do aqui e agora, então o vivente se sente incapaz de fazer escolhas tomadas por uma angústia, pois não há fundamento nas suas escolhas, não tem um sentido, ele fica esperando que algo aconteça, assim perdendo o interesse pela vida, passando a agir mecanicamente.

Nietzsche dirá: “Os homens inventam o ideal para negar o real“.

Em outras palavras, é como se dissesse que a vida precisa ser aceita pelo vivente, não como se essa mesma vida fosse algo fora dele. A sua proposta filosófica seria então uma desconstrução da metafisica, pois a dor e o sofrimento fazem parte da vida. Nietzsche nos convida a refletir e a aceitar um amor às situações e constar que o amor às situações que se apresentam o amor a si próprio e ao mundo como ele é e não como gostaríamos que fosse a aceitação da vida como ela realmente se manifesta, no aqui e agora, e não em um presente oprimido e em ilusões de futuro.

E para finalizarmos, apontamos o tema central do discurso da primeira parte do Zaratustra onde mostra às três metamorfoses do espirito, que o homem sofre após o a anúncio da “morte de deus”, ou seja, as vitórias do homem sobre si mesmo, sendo assim narradas por Nietzsche como o espírito vive a auto superação.

Inicialmente o espírito torna-se camelo em seguida, torna-se Leão e posteriormente criança. O camelo, espírito heroico de suportação de toda a carga existencial herdada das tradições culturais da humanidade, supera a si mesmo e torna-se leão. O leão, espírito libertário que se rebela contra a opressão dos deveres impostos através de uma heteronomia, torna-se criança, espírito criador. O camelo é capaz de suportar o fardo de pesadas tarefas assumidas na busca do conhecimento e todo sofrimento que advém no caminho da realização, mas chega um momento em que ele se liberta. O heroico camelo simboliza um espírito realista que quer ser capaz de ver o que a realidade se torna a cada momento. Seu valor é determinado do modo como Nietzsche expressou em Ecce Homo, quando diz: “Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito? Cada vez mais tornou-se isto para mim a verdadeira medida de valor”.

O Leão simboliza um espírito ativista revolucionário que o camelo se torna quando não aceita mais submeter-se passivamente à realidade como ela se mostra, e se rebela: quer conhecer a realidade – com a fome de um leão – para transformá-la. O libertário livra-se dos deveres heterônomos e cria para si a liberdade de novas criações.

De repente, num momento oportuno – seu kairós, um instante singular – quando o libertário, que era um espírito rebelde – e, portanto reativo – supera sua reatividade, torna-se puramente afirmativo, espontâneo, o leão torna-se criança, o espírito lúdico inocente que começa a jogar com a vida o jogo da criação: como criança, sente-se corpo e alma, e quer viver ludicamente a existência. A criança é esquecimento, não sofre do passado. É inocência não tem culpa. Conquista à autonomia, não se baseia em ideais. É o retorno da potência de criar ao se tornar criador!

Só é possível afirmar a vida sem reatividade.

Nietzsche na obra Genealogia da Moral: “há em si um excesso de forças plásticas, modeladoras, regeneradoras que propiciam o esquecimento” (GM I,§ 10).

Maria Fernanda Carvalho

Psicóloga Clínica. CRP: 05/49129 Ênfase: Existencialismo. Participou de seminários, congressos, apresentou projeto de cunho científico sobre a relação terapêutica e apresentou a clínica como obra de arte uma metáfora baseada nos temas da filosofia de Nietzsche, uma contribuição para a clínica.

Recent Posts

Veja esta série na Netflix e ela não sairá mais da sua mente

Esta série que acumula mais de 30 indicações em premiações como Emmy e Globo de…

2 dias ago

Filme premiado em Cannes que fez público deixar as salas de cinema aos prantos estreia na Netflix

Vencedor do Grande Prêmio na Semana da Crítica do Festival de Cannes 2024 e um…

2 dias ago

Série ousada e provocante da Netflix vai te viciar um pouco mais a cada episódio

É impossível resistir aos encantos dessa série quentíssima que não pára de atrair novos espectadores…

3 dias ago

Influenciadora com doença rara que se tornou símbolo de resistência falece aos 19 anos

A influenciadora digital Beandri Booysen, conhecida por sua coragem e dedicação à conscientização sobre a…

3 dias ago

Tatá precisou de auxílio médico e passou noites sem dormir após acusação de assédio, diz colunista

"Ela ficou apavorada e disse que a dor de ser acusada injustamente é algo inimaginável",…

3 dias ago

Suspense psicológico fenomenal que acaba de estrear na Netflix vai “explodir sua mente”

Será que você é capaz de montar o complexo quebra-cabeça psicológico deste filme?

4 dias ago