Por Erane Paladino
Depois de Anticristo e Melancolia, o diretor dinamarquês Lars Von Trier apresenta Ninfomaníaca, o terceiro filme com enfoque na depressão. Com “estrutura literária”, tem dois volumes (só o primeiro foi lançado) e oito capítulos. A atriz Charlotte Gainsbourg interpreta Joe, uma mulher que assume não conseguir controlar seus impulsos sexuais. Num dia escuro e chuvoso, caída na rua e ferida, é encontrada por Seligman, vivido por Stellan Skarsgard. O homem de meia-idade, paciente e compreensivo, leva-a para casa e, ao perguntar a ela sobre o que havia acontecido, Joe o adverte de que vai contar uma história longa, que poderá chocá-lo. Num discurso carregado de autorrecriminações, afirma por ser obcecada por sexo desde a infância e descreve experiências como a perda da virgindade aos 15 anos e a competição com uma amiga para conquistar homens. Chega a ter mais de dez relações sexuais por dia com pessoas desconhecidas, o que exige dela uma “organização de horários” para atender aos próprios ímpetos. Nas cenas com poucas cores, predominam tons escuros e destaca-se o olhar triste da protagonista, repleto do desencanto de quem tenta encontrar, na quantidade, algum conteúdo significativo para a vida.
Ao tratar da pulsão de morte em Além do princípio do prazer, em 1920, Sigmund Freud discute essa força associada a uma tendência psíquica à regressão para um estágio anorgânico como retorno a um nível mínimo de excitação. Quando a angústia é intensa, sintomas compulsivos podem surgir numa incansável tentativa de alívio. Esse movimento mental tende a ser repetitivo e pouco criativo, pois tenta abrandar dores profundas de forma desgastante. Sintomas como a adição às drogas, ao trabalho, à comida ou ao sexo seriam exemplos dessas manifestações. É como se as fontes de prazer fossem apenas armadilhas por carecerem dos recursos necessários à satisfação e ao desenvolvimento.
O psiquiatra e psicanalista Glenn-Gabbard associa a origem desses sintomas a questões ligadas ao abandono ou ao sentimento de desvalorização pelas figuras parentais nos primeiros anos de vida. A insegurança e o sentimento de não ser suficiente provocam a defesa contra os afetos mais íntimos e a necessidade de controle sobre o outro. Os atos compulsivos seriam, assim, tentativas rudimentares de autoproteção no intuito de abrandar intensos sentimentos de desamparo. Em certos momentos do filme algumas cenas da infância indicam dificuldades com a mãe e especial admiração pelo pai, talvez a única pessoa capaz de acolher os sentimentos de Joe.
Durante toda a trama, o vazio interior e o distanciamento afetivo provocam a sensação de que falta sentido às atitudes da personagem. Em cada relação sexual há um mergulho na busca de reencontro com algo perdido e inatingível, e Joe se torna refém de um processo repetitivo e circular. Os rituais compulsivos parecem ter a função de impedir o acesso a conteúdos ameaçadores, mas também comprometem o espaço psíquico e a possibilidade de novas significações das experiências dolorosas marcadas em sua história.
É possível recorrer a uma imagem simbólica: o uroboro ou ouroboros, representação gráfica primitiva, presente nas culturas grega e egípcia há mais de 3 mil anos. Trata-se da imagem de uma cobra ou dragão que morde o próprio rabo. São múltiplas as interpretações sobre seu significado. Os psicólogos analíticos Carl Jung e Erich Neumann, pesquisadores de símbolos e arquétipos, acreditam que a imagem pode ser associada metaforicamente à manifestação de estados psíquicos indiferenciados. Neste caso, alimentador e alimento se confundem, num movimento que pode ser interpretado como autodestrutivo e sem saída. Essa analogia pode contribuir para uma reflexão a respeito do fenômeno das compulsões, uma tendência imperativa que impele o indivíduo a determinadas ações por vezes contra a própria vontade consciente.
Fonte indicada: Mente e Cérebro
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