O diretor Roberto Berliner conheceu a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) na década de 80. Esse encontro definitivamente afetou a vida dele. Na próxima quinta-feira (21), um recorte da história dela chegará às telas pelo olhar afetuoso do cineasta, com a estreia do longa-metragem de ficção Nise – O Coração da Loucura, estrelado por Gloria Pires.
A abordagem cinematográfica deu a Berliner o prêmio de melhor filme no Festival de Tóquio, em 2015, e de melhor filme de ficção pelo júri popular no Festival do Rio. Gloria Pires recebeu o prêmio de melhor atriz na premiação japonesa.
Berliner define Nise como uma mulher inspiradora. “Ela é dessas pessoas que fazem o mundo dar um pulo para frente”, ele afirma em entrevista exclusiva ao HuffPost Brasil.
Falar de Nise é falar de um tratamento humanitário da loucura. Na década de 40, ela revolucionou a psiquiatria ao contestar as práticas violentas da época e substituí-las pela arte.
A importância de Nise como alguém que inspira mudanças e revoluções se atualiza a cada dia, especialmente com a urgência de se compreender o diferente sem isolá-lo.
“Podemos dizer que uma pessoa que enlouquece deixa de dar respostas adequadas às solicitações do mundo (…) Ninguém suporta pessoas que dão respostas inadequadas para as solicitações da vida. Queremos elas o mais longe possível”, ele constata.
Leia a seguir a íntegra da entrevista:
HuffPost Brasil: Quando e como a Nise da Silveira entrou na sua vida?
Roberto Berliner: A primeira vez que eu vi a Nise foi no Circo Voador [no Rio de Janeiro], nos anos 80. Ela aparecia lá uma vez por mês, no “O chá da doutora”. O projeto do filme começou muito depois, com os escritos do jornalista Bernardo Horta, colaborador da Nise e irmão do André Horta, que é o fotógrafo do filme e grande parceiro meu e da TvZero. Bernardo acompanhou a Dra. Nise de perto por anos. Ele fez parte do grupo de estudos C. G. Jung, que acontecia na casa da Nise. O Bernardo gostava de observá-la e anotava não só o que ela dizia sobre diversos assuntos, mas a maneira como se comportava, seus trejeitos, sua relação com as pessoas e com os animais. Foi por meio dessas anotações que eu conheci melhor a intimidade da Dra. Nise.
Nise é dessas pessoas que fazem o mundo dar um pulo para frente. É uma pessoa especial, uma rebelde, e quanto mais eu pesquisava sobre sua vida e conversava com seus colaboradores, mais eu sabia que esse filme tinha que ser feito.
Nise considerava o hospício um dos piores lugares da terra.
No filme, a violência e o sexo aparecem como parte natural da narrativa de vida daquelas pessoas, e é comum vermos essas duas expressões omitidas, diluídas ou caricaturadas na hora de se retratar personagens com problemas de saúde mental. Isso foi um desafio para você?
É sempre um desafio falar de sexo e violência, ainda mais quando associados à loucura. A violência era muito comum no hospital. Em nossas pesquisas esbarramos em relatos que falavam sobre brigas de loucos promovidas por médicos e enfermeiros. E também não era incomum a prática de sexo entre médicos e enfermeiros com os pacientes em troca de balas e cigarros. Nise considerava o hospício um dos piores lugares da terra.
Na cena de sexo, era a primeira vez que Adelina estava se relacionando com um homem depois de muitos anos. Ela surtou porque sua mãe a impediu de se relacionar com o homem amado. O momento mais grave desse surto, que a fez ser internada, foi quando ela estrangulou seu gato e se transformou numa mulher muito violenta. Com o tempo, Adelina passou a se identificar com a flor, e em suas obras, Nise percebeu que ela reviveu o mito de Dafne, onde a mulher se transformava em flor para fugir do seu amor.
Aos poucos, com a terapia, uma mulher vai surgindo de dentro da flor. Adelina volta a se ver como mulher e se aproxima de Fernando. Também tem o lado do Fernando, que tinha um amor reprimido pela filha da patroa. Ele surta no dia do casamento dela. Na cena de sexo, era muito forte para ambos. Uma longa repressão, um desconhecimento dos limites de cada um e do próprio sexo. Tivemos a preocupação de não caricaturar, mas sabíamos que não era um sexo qualquer. Era importante falar do sexo e que toda essa ansiedade dos dois estivesse presente, mas não queria isso fosse simplesmente selvagem como o senso comum talvez impusesse. Queria que tivesse delicadeza também, por isso a câmera sempre se manteve a uma certa distância, procurando retratar aquelas pessoas como seres humanos repletos de desejo, enfim, o mais natural possível, porém sem perder as características de seus personagens.
Ninguém suporta pessoas que dão respostas inadequadas para as solicitações da vida. Queremos elas o mais longe possível.
A saúde mental costuma ser um assunto estigmatizado ou colocado em segundo plano. No filme, vemos situações críticas e muito mais complexas, mas fico pensando o que deixou de ser feito para aquelas pessoas chegarem àquele estado…
Nise fala que estudar a mente humana é o mais importante que podemos fazer hoje em dia. A primeira coisa que fazemos com os loucos é isolá-los, sem tentar entender o que está acontecendo em suas cabeças. O mundo prefere investir em outras coisas, que não a mente humana e a compreensão do diferente. Por isso estamos nessa situação.
Grosso modo podemos dizer que uma pessoa que enlouquece deixa de dar respostas adequadas às solicitações do mundo. Imagina uma pessoa que quando é chamada a tomar uma atitude diante de um sentimento amoroso por alguém, em vez de uma atitude de carinho, se corta. Ninguém suporta pessoas que dão respostas inadequadas para as solicitações da vida. Queremos elas o mais longe possível. As aprisionamos em lugares distantes (hospícios) e sonhamos com a ideia de que talvez elas tenham um defeito qualquer (uma impureza qualquer) que possa ser tratado por uma tecnologia rápida e eficaz: elétrica (choque) ou química (remédios) que higienize o paciente e o traga de volta ao nosso mundo normal. Enquanto essa tecnologia eficaz não chega, o louco fica esquecido em insanos asilos até perder a sua humanidade. Essa visão reducionista do sofrimento é a visão da medicina psiquiátrica científica tradicional.
Mas se de perto ninguém é normal (como diz Caetano), de perto ninguém é totalmente louco ou louco todo instante (como diz o Lula Wanderlei). E de perto descobrimos que essas respostas inadequadas às solicitações da vida são fruto da perda de unidade do ser (a palavra esquizofrenia quer dizer “alma partida”) e que essa perda pode ser um dos limites da própria vida, portanto possível a qualquer pessoa quando é colocada em situações limites. E, mais ainda, essa perda de unidade é muito mais de natureza afetiva das relações humanas/sociais (por exemplo: pessoas que sofreram abandono na infância, estão sempre perto de terem quadro psicótico após a adolescência) do que uma “impureza” orgânica.
Pensando assim, temos que nos aproximar dessas pessoas, e descobrir, novamente, sua humanidade. Foi preciso a revolução contracultural da década de 60/70 para acordarmos para o genocídio a que estavam sendo submetidos os loucos. Foi preciso o “maio de 68” para que fosse reavaliado o gesto de Nise nessa direção no Brasil dos anos 40.
Nise não se entusiasmou com a medicação da psiquiatria e apontou a criatividade como um instrumento poderoso no cuidado do sofrimento psíquico.
O filme traz uma crítica direta aos procedimentos convencionais da psiquiatria na época, ao mesmo tempo em que aponta a necessidade de um diálogo com a arte e com as psicoterapias. Qual seu parecer sobre isso, considerando que o cinema exerce um papel inspirador? A crítica é válida para os dias de hoje? Acredita que vivamos em uma sociedade medicalizada?
Uma das virtudes maiores de Nise é acreditar na pessoa humana, mesmo quando ela está aparentemente em ruínas. A medicação psiquiátrica aparece em 1950 criando uma euforia entre os psiquiatras: uma pequena substância que seria capaz de dissolver delírios e alucinações. Nise não se entusiasmou com a medicação da psiquiatria (e ela estava certa: a medicação não se mostrou tão eficaz – elimina alguns sintomas apenas) e apontou a criatividade como um instrumento poderoso no cuidado do sofrimento psíquico. A criatividade toca e transforma vivências do sofrimento em fortes mecanismos de defesa contra a fragmentação psicótica, além de se tornar instrumento mediador das relações entre os que sofrem e os que vivem em contato com ele. A criatividade apaga as diferenças e cria território livre para acolher os corpos, afetos e linguagens.
Muita coisa melhorou desde o tempo da Nise, muito por causa do trabalho dela, mas hoje retrocedemos assustadoramente. O atual ministro da Saúde nomeou para a coordenação de Saúde Mental no Brasil o Dr. Valencius Wurch, que foi diretor de um dos piores manicômios do Brasil, conhecido e denunciado por maus tratos aos pacientes. É nessas horas que temos a dimensão do quão radical foi o trabalho da Nise. Sessenta anos depois e ainda existem pessoas dispostas a fazer o debate retroceder.
O Mario Pedrosa [crítico de arte] descreveu, em 1951, como que a nossa sociedade trata os doentes mentais; com isolamento, esmagando-os pela camisa de força e o confinamento, causando sua destruição moral, espiritual e física. Ele conclui “é o reino do utilitarismo burguês em uma de suas expressões mais baixas e vulgares”. É impressionante que em 2016 o debate tenha evoluído tão pouco.
Como foi construir, na ficção, personagens reais mas que muitas vezes não têm a possibilidade de ter uma voz própria? Quem te ajudou a obter detalhes sobre as características pessoais de cada um, e quanto você inseriu de ficção?
Construímos uma rede com vários colaboradores de Nise. Conversamos com muitas pessoas que trabalharam com ela no Engenho de Dentro, desde Martha Pires Ferreira e Almir Malvignier, que trabalharam diretamente com artistas como Fernando, Emygdio e Raphael, como também com a atual equipe do Museu de Imagens do Inconsciente, Luiz Carlos Mello, Gladys Schincariol, além do Lula Wanderley e da Gina Ferreira, entre outros.
Lemos também os prontuários dos pacientes e todas as anotações que conseguimos encontrar. Os atores leram todas essas pesquisas, e foram conhecendo mais por meio de pesquisas no Museu de Imagens do Inconsciente. Luiz Carlos Mello deu aulas para os atores que interpretaram os clientes sobre cada um dos personagens reais.
Além disso, eles tiveram contato com todas as obras originais. Então, sabendo intimamente a biografia dos personagens, os atores foram preparados no Engenho de Dentro, entrando naquela rotina e sentindo a energia daquele lugar, tanto dentro de uma sala com o preparador de elenco Tomás Rezende, quanto andando pelo espaço do centro psiquiátrico, pelas enfermarias.
Cada um deles foi preparado fisicamente de uma forma específica. Era como se os autores daquelas obras voltassem para revisitar suas próprias obras. Eu queria trabalhar com grandes atores, mas não queria caras conhecidas. Eu estava atrás de atores que tivessem trabalhos fortes, mas que não fossem atores globais. Eu não queria que o espectador olhasse e de cara achasse quem ia se destacar. Queria que eles tivessem totalmente integrados no meio dos outros pacientes, até que as histórias começassem a surgir naturalmente dentro do filme.
Assista a uma cena e ao trailer de Nise – O Coração da Loucura:
TEXTO ORIGINAL DE BRASIL POST