É interessante observar o que ocorre com a conduta de certas crianças ao lidar com o medo quando em situações que surgem durante uma determinada forma de jogo ou brincadeira. O confrontar-se com situações desconhecidas pode desestabilizá-las emocionalmente e produzir sentimentos significativamente desfavoráveis à apreensão de informações ou de atuarem em determinadas situações, por mais simples que elas possam parecer. Certos indivíduos tornam-se simplesmente incapazes de aprender quando o desconforto pelo medo se instaura.

O “jogar” para Piaget (1975) é a forma diversificada com que o indivíduo em fase de formação desempenha os seus movimentos em seu período neo-natal, de maneira que produz uma internalização psíquica dos movimentos realizados.

O jogar, portanto, é a forma com que o indivíduo mantém-se em comunicação com o universo que o cerca. A captação das condições fenomênicas do mundo ocorre através dos seus órgãos dos sentidos. As informações advindas do exterior são conduzidas pelas vias neuronais aferentes aos centros nervosos superiores. Tais informações são percebidas e decodificadas através de suas atividades mentais que podem estabelecer ações corporais diretas ou internalizar os conhecimentos e habilidades através de uma complexa rede neuronal. As manobras gestuais que se sucedem fazem, na verdade, parte integral desta rede neuronal constituída que é responsável pela manutenção de todo o conhecimento e habilidades dos seres humanos (Kandel, 1999).

O ato de “jogar” permite ao indivíduo vivenciar novas experiências a cada instante e apreciá-las segundo suas próprias experiências. Estas implicações com as situações vivenciadas e a sua experiência anterior  fortalecem as suas relações neuronais, ou seja, sedimentam-se, segundo Donald Hebb (1949), as relações interneurais. Em  The Human Behavior, Hebb afirma  que “a eficácia de uma sinapse excitatória aumenta se a atividade de input desta sinapse correlacionar-se consistentemente com a atividade do neurônio pós-sináptico”, facilitando deste modo uma resposta mais adequada e estabelecendo uma plasticidade neurológica que capacita o indivíduo a passar para um nível de desenvolvimento mais complexo.

Arnold Gesell (1992), por sua vez, apostando nos princípios estabelecidos pela Lei Bioenergética Fundamental, constrói tabelas normativas que servem para avaliar a precocidade ou a maturidade dos indivíduos em desenvolvimento. Por conseguinte, a sua premissa básica é a de que o indivíduo ao longo de sua maturação corporal, estabelece também, paralelamente, uma configuração psíquica. De acordo com esta condição, o aprendizado passa a ser secundário em relação  ao seu desenvolvimento que segue uma condição maturacional que acompanha a sua linha genético-evolutiva.

Por outro lado, Piaget (1973; 1989), afirma que a inteligência é um órgão de adaptação. Não um órgão biológico, mas um órgão psicológico. O ponto culminante da inteligência é para ele o pensar científico. Como epistemólogo, ele se preocupa em saber como se constrói os conceitos e princípios do ser humano, que, segundo ele, depende  de uma condição psicológica.

Nos processos simbólicos existem dois tipos de esquemas simbólicos: um tipo, não-verbal e mais ou menos incomunicável, é interno, idiossincrático; o outro é verbal e comunicável, sendo este eminentemente adaptativo no processo de relação (a adaptação aos costumes e às regras sociais).

Deste modo, Baldwin (1973) afirma que :

“A diferença, entre os dois, depende do fato de alguns esquemas serem verbais e usarem as palavras como símbolos. Em grande parte, as palavras são arbitrárias; raramente têm qualquer semelhança intrínseca com aquilo que significam, e seu sentido depende de convenção social. Além disso, a linguagem é o meio de comunicação social; sempre que para duas pessoas é importante chegar a um acordo em sua compreensão, precisam pôr isso em palavras. Portanto, os esquemas verbais estão sujeitos a interpretação, correção e modificação pelos esquemas verbais de outras pessoas, em resumo, tornam-se socializados” (p. 214).

Através do ato de brincar das crianças em formação torna-se viável observar os esquemas simbólicos, pelo fato do brinquedo ter frequentemente uma característica não-verbal, ou, quando o brinquedo é verbal, as expressões são usadas livremente, sem o intuito de comunicação.

Além disso, o brinquedo é menos acomodado à realidade do que os esquemas verbais socializados e não precisa ser adaptado a ela por encontrar-se liberado de uma exigência de precisão. Nos mecanismos não-verbais existe uma distinção gramatical bastante acentuada entre o sujeito e o predicado, na qual os esquemas relativos aos sentimentos da pessoa e a realidade são menos completos do que nos esquemas verbais.

Por esse motivo, os brinquedos, os sonhos, as associações livres e os devaneios, segundo Piaget (1975),  tornam possíveis um acesso aos esquemas simbólicos interiores do indivíduo, sendo a sua observação inserida nos testes projetivos e de material de análise nas atividades voltadas para o campo psicoterápico.

Referindo-se ao processo de desenvolvimento humano, Baldwin (1973) e Piaget (1989) afirmam que a condição de adaptação do equilíbrio, ocorre quando do ato de jogar ou brincar. No que diz respeito à ação pedagógica, somos partidários de que a atividade desenvolvida deva ser realizada de maneira agradável, sem que haja a todo instante uma demanda de superação do medo.

Segundo Vygotsky (1933; 1976; 1981), tanto o jogo como a fantasia realizam um papel essencial para o desenvolvimento humano. Valsiner e Van der Veer (1993) afirmam que a “ZDP” (Zona de Desenvolvimento Proximal) pessoal é criada através dos jogos das crianças em idade pré-escolar e pela fantasia das crianças com mais idades, pelos adolescentes e adultos.

O mundo diretamente perceptível pode sofrer uma reconstrução semiótica de seu significado no ato de jogar e pela fantasia. Encontram-se presentes, no jogo, diversas fontes do mundo perceptível e do mundo do significado das palavras. O mundo perceptível dos seres humanos é sempre um mundo significado, isto é, sempre mundo interpretado por alguém e é através do jogo e da fantasia que a pessoa pode transcender o mundo imediatamente disponível (diretamente perceptível), pela reconstrução semiótica de seu significado.

Fernanda Villas Boas

Fernanda Luiza Kruse Villas Bôas nasceu em Recife, Pernambuco, no Brasil. Aos cinco anos veio morar no Rio de Janeiro com sua família, partindo para Washington D.C com a família por quatro anos durante sua adolescência. Lá terminou o ensino médio e cursou um ano na Georgetown University. Fernanda tem uma rica vida acadêmica. Professora de Inglês, Português e Literaturas, pela UFRJ, Mestre em Literatura King´s College, University of London. É Mestre em Comunicação pela UFRJ e Psicóloga pela Faculdade de Psicologia na Universidade Santa Úrsula, com especialidade. Em Carl Gustav Jung em 1998. É escritora e psicóloga junguiana e com esta escolha tornou-se uma amante profunda da arte literária e da alma, psique humana. Fernanda Villas Bôas tem vários livros publicados, tais como: No Limiar da Liberdade; Luz Própria; Análise Poética do Discurso de Orfeu; Agora eu era o Herói – Estudo dos Arquétipos junguianos no discurso simbólico de Chico Buarque e A Fração Inatingivel; é um fantasma de sua própria pessoa, buscando sempre suprir o desejo de ser presente diante do sofrimento humano e às almas que a procuram. A literatura e a psicologia analítica, caminham juntas. Preenchendo os espaços abertos da ficção, Fernanda faz o caminho da mente universal e daí reconstrói o caminho de volta, servindo e desenvolvendo à sociedade o reflexo de suas próprias projeções.

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