PSICOLOGIA CLÍNICA

O cuidado com as palavras que você usa na clínica

Por Bernardo Rodrigues

A interação dentro do setting clínico é majoritariamente verbal vocal. Não é por menos que algumas pessoas dizem que a terapia é a “cura pela fala”. Mas perceba o quanto essa fala é problemática. Em primeiro lugar, é extremamente complicado usar a palavra cura dentro de um processo psicoterápico. E em segundo – na minha opinião – é um termo meio new age de se falar. Este texto irá abordar justamente a importância do terapeuta atentar para as palavras que ele usa dentro do gabinete. Lembre-se que palavras são estímulos que adquirem a sua função ao longo da história de vida de cada um, portanto mesmo que tenhamos dicionários para definir cada uma delas, sempre terá um pouco da história de cada um no vocabulário.

O campo da linguagem é bem complexo. Nele você tem o que há de mais novo nas áreas de comportamento verbal, equivalência, RFT, geratividade, etc. Não é a minha intenção mostrar como adquirimos a fala ou como aprendemos novas palavras. Para os fins deste texto eu preciso apenas que o leitor concorde que uma palavra para mim pode não ter o mesmo significado para outras pessoas, e esta diferença pode ser maior ou menor. O vernáculo de um determinado grupo pode ser mais facilmente entendido por pessoas deste grupo do que por pessoas de um grupo diferente, mas mesmo entre elas pode ser que não haja uma concordância se você olhar com maior cuidado.

Não estou dizendo que não conseguimos nos comunicar uns com os outros. Se não conseguíssemos, você nem estaria lendo este texto. Entretanto, apesar de usarmos as palavras de maneira semelhante o suficiente para sermos compreendidos, em alguns casos o significado de uma palavra pode apresentar diferenças importantes e acabar tendo funções diferentes entre pessoas distintas.

Dentro da clínica isso pode significar desde um simples mal entendido até um dano significativo na relação entre terapeuta e cliente (aqui um ótimo exemplo, eu detesto o termo “cliente” devido ao tom mercantilista, mas após anos de doutrinação na graduação, eu não consigo usar a palavra “paciente” sem achar que vou ser rechaçado por meus pares).

Pausa para uma breve explicação de como a AC entende o que é “significado”. Para de Rose (1993) “dizer que uma palavra tem um significado implica em que esta palavra é um estímulo equivalente a um conjunto de estímulos, que correspondem a objetos, eventos, qualidades ou ações.” (p.249). Realmente, não quero me ater aos detalhes técnicos do que é uma classe de estímulos equivalente, aos interessados eu sugiro a leitura desse texto, a leitura é tranquila mesmo se tratando de um tema cascudo. O importante é saber que um estímulo verbal (a palavra) passa a fazer parte de uma rede de relações com outros estímulos, os quais todos terão algumas propriedades intercambiáveis.

Por exemplo, a palavra “cadeira” após você ter passado por um processo de aprendizagem direcionado para este estímulo, você passa a se relacionar de maneira diferenciada tanto com o objeto físico “cadeira”, quanto com a palavra falada ou mesmo com a palavra escrita. Se alguém falar que está cansado você pode buscar uma cadeira ou simplesmente pedir para ela sentar numa cadeira próxima. Se em uma prova lhe apresentarem uma foto de uma cadeira e pedirem para escrever o nome do objeto, provavelmente você escreverá certo. Você passa a se relacionar com a palavra ou o objeto “cadeira” de uma maneira diferente da qual você se relaciona com o objeto ou palavra “lâmpada”. Portanto algumas propriedades da palavra falada, escrita e do objeto se tornam intercambiáveis entre si. Vale lembrar que não todas, afinal você não pode sentar na palavra falada “cadeira”.

E como são construídas essas redes de relação entre os estímulos de uma classe de equivalência? No decorrer da história ontogenética de cada indivíduo. E ai que começam vários problemas: (1) Não podemos assegurar que cada pessoa é ensinada da mesma maneira. Você até poderia tentar fazer isso com algumas palavras dentro de um laboratório, mas no mundo real isso é inviável. (2) O sentido das palavras ou o uso delas varia de acordo com o tempo e cultura.

Pense em gírias, arcadismo, regionalismo, etc. isso tudo dificulta um “significado absoluto” das palavras. (3) algumas palavras referentes à subjetividade humana, e.g., emoções e sentimentos, não são passíveis de um reforçamento direto (Para uma descrição mais detalhada ver Skinner, 1945). Tente chegar em consenso com seus amigos sobre o uso de certas palavras como “nostalgia”; “execrável”; “preguiça”, em um primeiro momento todos achamos que falamos a mesma coisa, mas quando olhamos com detalhes sempre há discordâncias sobre o que realmente esse tipo de palavra quer dizer ou em que contexto pode ser usado.

Até aqui eu acho que já temos problemas o suficiente para nos preocuparmos com o que falar dentro do gabinete. Infelizmente as coisas não param por ai, e considero que existe um problema ainda mais complicado de se lidar. Se as palavras enquanto estímulos são construídas ao longo da história de vida de cada um, certas histórias mais coercitivas podem selecionar propriedades extremamente complicadas para um dado estímulo.

Roche e Barnes-Holmes (2002) discutem como a cultura acaba atribuindo certas características distintas aos homens e mulheres. Às mulheres são atribuídas características frágeis e submissas, já aos homens um papel de dominância e força. A partir desta diferença entre forte-fraco, dominador-submissa, eles refletem sobre como o estupro, um ato sexual forçado e não consensual, segue junto a estes valores. Claro que os autores deixam claro que essa não é a causa única (afinal não existe uma causa “única”), eles debatem como a noção de um homem forte e dominante não está longe da noção de um homem que tem que subjugar sexualmente uma mulher.

Continuando no tema da sexualidade Bass e Thornton (1985), no seu livro “Nunca contei a ninguém”, organizam diversos relatos de mulheres vitimas de abuso sexual nas mais diversas situações. Logo na introdução as autoras discutem a forma como as pessoas se referem ao ato sexual e os órgãos genitais, e vão demonstrando que certas palavras colocam o órgão genital masculino como algo forte, potente, diferentemente do feminino. Elas chegam até a discutir como uma simples pergunta “o seu marido já fez você gozar?” trás consigo toda uma ideia de que a mulher tem um papel inferior ao do homem no ato sexual.

É claro que o terapeuta não deve ver as palavras como “bombas-relógio” que podem explodir a qualquer momento, as vezes elas fazem justamente o oposto. Pense no atendimento infantil quando você entra no universo lúdico da criança e você começa a usar gírias ou palavras que fazem parte do seu repertório, ao invés de usar as palavras que você usa com seus clientes adultos. Ou mesmo quando em uma prova ímpar de empatia você usa um belo palavrão para demonstrar que você entende que a situação eu o seu cliente está passando é realmente difícil.

Como conclusão, eu diria: eu não mandei você ser terapeuta, você veio por este caminho por que quis. E tem um monte de coisa no pacote. Prestar atenção no que você diz, em como você diz e para quem você está dizendo, são algumas dessas coisas, e algumas das importantes. Durante toda a sua vida de terapeuta, você será confrontado com isso e outras tantas dificuldades. Tenha paciência e se prepare para errar. E se você tem algum problema com errar, seria legal você parar para pensar o que diabos significa “errar” para você.

Imagem de capa: Shutterstock/sakkmesterke

TEXTO ORIGINAL DE COMPORTE-SE

Referências

Bass, E. & Thornton, L. (1985). Nunca contei a ninguém. São Paulo: Harbra.

De Rose, J. (1993). Classes de estímulos: implicações para uma análise comportamental da cognição. Psicologia teoria e pesquisa, 1993, 9(2), pp. 283-303.

Roche, B. & Barnes-Holmes, D. (2002). Human Sexual Arousal: A Modern Behavioral Approach. The behavior analyst today, 3(2), pp. 145-154.

Skinner, B. F. (1945). The operational analysis of psychological terms. Psychological Review, 52, 270-277.

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