O eu sem limites: “stalking” ou um caso de perseguição

Por Morgana Rech

Logo nas primeiras sessões, a paciente começa a se vestir como a terapeuta estava vestida na última sessão. Enquanto fala sobre a insatisfação que sente em ser quem é, demonstra a raiva que tem de si, na forma de inveja que nutre por outras mulheres. Tem apenas uma ideia fixa: encontrar um marido rico, na ânsia de ter o poder de se transformar em outra pessoa, vestir-se de um outro eu, comprável nos melhores shoppings da cidade.

Pouco tempo depois, a paciente matricula-se na mesma academia que a terapeuta frequenta. Solicita ser atendida pelo mesmo personal trainer. Passa a provocar encontros indesejados e constrangedores, faz questão de mostrar o quanto aquela situação também é estranha para ela.

Nos encontros em consultório, já não são somente as roupas idênticas às da terapeuta, mas os acessórios e posturas, que instalam o clima de tensão entre ambas. A cada sessão, fica mais clara a tentativa da paciente de se fundir com a terapeuta, de se apropriar da sua vida, possivelmente enxergando nela as idealizações que projeta em outras pessoas como a “salvação” para si. Esse é um relato verídico vivido pela terapeuta Isadora Campagna Torres, integrante do corpo clínico da Clínica Belinazo, que foi apresentado como trabalho de conclusão de curso de especialização, em forma de um estudo de um típico caso “stalking”.

A palavra “stalking” é traduzida para o português como uma “conduta de perseguição”, que envolve uma situação de coerção e ameaça sobre alguém. Os dados demonstram que cerca de 8% das mulheres e 2% dos homens foram, em algum momento da sua vida, alvo de comportamentos de stalking e, em 90% dos casos, as vítimas identificadas foram perseguidas por alguém durante a sua vida.

Do ponto de vista psicológico, a perseguição pode ser interna ou externa, subjetiva ou objetiva. Pode ser uma sensação de estar sendo perseguido (podendo chegar a uma paranoia) ou uma perseguição efetiva, deslocada totalmente a um foco muito específico, como no caso relatado. De uma maneira ou de outra, o que está em causa é uma situação limítrofe, em que a pessoa sente-se fora do controle em relação ao seu próprio eu, como se ela não pudesse enxergar os seus próprios contornos, o ponto onde ela termina e o outro começa.

Em seu estudo, a terapeuta concluiu que um trabalho muito intenso precisava ser feito em relação ao estabelecimento de um limite, não só entre ela e a paciente, mas da paciente com tudo o que estava ao seu redor, para que ela pudesse começar a enxergar quem realmente é. Para isso, precisou lidar, inicialmente, com os seus próprios sentimentos de estranheza em relação à paciente, assim como perder o medo e a tensão para onde a relação terapêutica estava sendo direcionada. Em suas palavras, “estava instaurada uma relação de transferência e contratransferência que para ela, significava uma aproximação fusional, em função de sua estrutura de personalidade. Por outro lado, minha ansiedade e repulsa a esta fusão me fizeram recorrer à metáfora da invasão de um espaço além do consultório, mas este além do consultório não é pra fora das paredes da sala e em direção a outros espaços públicos, é em direção à pessoa que sou, pois esta pessoa parecia estar de fora ou suficientemente escondida pela minha atitude psiquiátrica ou até, materialmente, pelo jaleco” (Dr.ª Isadora Campagna).

A linha que separa um eu de outro nem sempre é precisamente definida. É comum, na instabilidade da vida, o “sentimento de si” misturar-se mais ou menos com os desejos e expectativas de outros “eus”, identificados e projetados em outras pessoas. Diante de afetos muito fortes, como num relacionamento amoroso ou, justamente, em uma relação terapêutica, essa imprecisão se torna ainda mais indefinível e acentuada, o que pode ser saudável e construtivo por um lado, mas patológico e demoníaco por outro. Quando esta imprecisão é muito intensa e chega a um nível patológico, o sofrimento pode ser insuportável e trazer consigo um sentimento de solidão insustentável, uma vez que o sujeito vê-se afastado dele próprio e essa é, senão a pior, uma das piores agruras que o ser humano pode enfrentar.

Texto original de Clínica Belinazo

 






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