Este ano não foi diferente. Alguns dias antes da avaliação as páginas de humor começaram sua contagem regressiva para os memes de atrasados no ENEM 2017.
Vi algumas pessoas (diga-se de passagem, que nem estudam. Acredito que sequer prestaram o Exame) publicando em seus perfis pessoais que estavam ansiosas para ver imagens dos atrasados. Isto me causou uma inquietação muito grande e desconfortável.
Refleti sobre o tema. Existem muitas coisas envolvidas aí. Li artigo científico, analisei uma série de possibilidades para compreender este incômodo que me causou e cheguei à conclusão de que estamos emocionalmente falidos. O humor sádico que toma conta das redes denuncia a falta de empatia, ou seja, a falta de identificação humana com o a dor e sofrimento do outro.
Não sou uma pessoa séria. Quem me conhece sabe que (quase) sempre tenho um sorriso no rosto e admiro o humor já que ele torna a vida mais leve e nos permite conservar a saúde mental. Mas, como em tudo na vida, também no humor existe um limite entre o saudável e o patológico. É sobre isso que quero lhe convidar a refletir.
O humor nos salva das nossas tragédias pessoais, dos nossos dramas existenciais e das dores que vivenciamos. Quando a dor se torna insuportável o ego busca no humor um recurso para assimilar e enfrentar a vida apesar dos pesares. Isso fica muito evidente quando nos deparamos com catástrofes, crimes e situações onde a morte ou a falta e ética (como em casos de corrupção) nos colocam diante da fragilidade da vida ou da vulnerabilidade da moral tão cultuada, mas tão sensível às oportunidades que a testam. Nestes casos as piadas começam a rolar nos grupos, sejam eles virtuais ou em encontros pessoais. De forma mais simples, quando nossa psique não dá conta de suportar a dor transformamos em piada para tornar mais possível a assimilação.
Tem também aquelas pessoas que fazem piada com tudo, tornando quase impossível o diálogo com elas. Conhece alguém assim? São pessoas divertidas, engraçadas e até agradáveis. Mas, em alguns momentos seu humor excessivo as torna inconvenientes. A transformação de tudo em piada e gracejos demonstra uma instabilidade emocional e grande insegurança. O humor, neste caso, tem como fim a aprovação do outro através do riso ou da gargalhada. O sujeito que se enquadra neste perfil, o piadista, usa o humor como máscara para disfarçar a sua própria fragilidade e, assim, não precisar entrar em contato com ela. Sua necessidade de reconhecimento e sua instabilidade emocional o tornam dependente do reconhecimento e do prazer do outro, o que consegue através do riso.
Quanto ao grupo que aguardava ansiosamente pelos “atrasados do ENEM”, estamos lidando com uma modalidade sádica de humor. Há, neste caso questões ainda mais profundas sobre a este tema para observar. Questões que ultrapassam a fronteira do psíquico e se espalham no campo político e social.
Há uma perda da humanização. O sujeito não se reconhece como pessoa que atravessa as intempéries da vida. Não reconhece que o outro ali exposto e humilhado por seu humor sádico tem uma história que seu atraso e seu choro denunciam, mas não explicitam.
Aquela era uma oportunidade esperada há muito tempo, a promessa da realização de um sonho, ou de um futuro melhor. Mas algo saiu errado, algo não correu como o planejado. Talvez o transporte, ou o horário no trabalho, ou a dor de barriga que se tem em dias de ansiedade, ou sabe-se lá o que! Algo saiu diferente. Ninguém conta essa história. O que dá ibope mesmo é o sofrimento daqueles que estão separados de seus sonhos por um portão, por alguns minutos, por algum motivo que nunca saberemos.
Os memes são viralizados. Passamos o ano rindo do sofrimento desses estudantes sem lhes dar nome, sua história e subjetividade. Eles viram gifs, vídeos e imagens que divertem a geral e seu sofrimento é lúdico aos que se escondem atrás e seus smartphones ou do alto de seus confortáveis sofás. Alguns desses nunca se prestaram a fazer o ENEM, outros nunca precisaram lidar com estas dificuldades porque já tinham tudo bem preparado quando enfrentaram o vestibular. Outros, até passaram por este processo, mas ainda assim se divertem em ver o sofrimento alheio por não se reconhecer como ele, como igual.
No final, em todos os casos, em todos os aspectos, estamos falando da falta de identidade humana. Quando a dor do outro é esperada coletivamente para divertir é sinal que há algo tremendamente assustador e que o mal está muito mais alimentado que o bem.
Todos os anos vemos publicações sobre os atrasados e sobre as supostas redações do ENEM. Este conteúdo viraliza e diverte o país nos fazendo esquecer das nossas misérias pessoais e coletivas.
Falhamos terrivelmente com nossos jovens e com nossos estudantes, em lhes dar apoio e dignidade para alcançarem o sonho de uma vida melhor através dos estudos. As boas redações, as boas notas, as histórias por trás de cada atraso são ignoradas em nome do humor sádico e patológico que rende curtidas e desumaniza quem chora e quem ri.
Aplaudimos o sofrimento e não incentivamos a educação. Reclamamos da falta de interesse e comprometimento dos jovens brasileiros, mas falhamos em reconhece-los e incentivá-los. Os “atrasados do ENEM” são pessoas com sonhos e, em sua maioria, com poucas possibilidades de realiza-los. Muitas delas estão ali anos, e até décadas, depois da idade convencional a ingressar na universidade. São estudantes sem rosto, sem nome e que só são reconhecidos nacionalmente através de seu sofrimento ao se deparar com um portão fechado para sua chance de ingressar em um curso universitário.
É lamentável que tenhamos chegado a este ponto. Só o amor nos salvará desse humor patológico.
Bibliografia: RIBEIRO, Maria Mazzarello Cotta. Do trágico ao drama, salve-se pelo humor!. Estud. psicanal. [online]. 2008, n.31 [citado 2017-11-05], pp. 104-113 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372008000100013&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0100-3437.
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