COMPORTAMENTO

‘O prazer do desapego’: minimalistas defendem que ter menos coisas cria mais liberdade

Por Laís Modelli

O minimalismo apareceu na vida da comunicadora social Fernanda Marinho, 36 anos, para resolver um problema: em 2012, ela precisou voltar a morar com a mãe e, por questão de espaço, teve de se desfazer de muitas coisas que havia comprado ou ganhado nos dez anos em que morou fora.

“Eu precisava acomodar todos os meus objetos em um quarto bem pequeno”, conta.

Com a mudança, a comunicadora percebeu que, mesmo que não fosse uma pessoa de comprar em grande quantidade, guardava muita coisa e por muito tempo. “Eu não sabia que tinha acumulado tanto porque todas as minhas coisas ficavam espalhadas em um espaço maior, dentro de vários armários e gavetas que eu nunca via.” Foi aí que Fernanda começou a pesquisar sobre o minimalismo como estilo de vida.

“Meu maior choque foi me dar conta que não sabia as coisas que eu tinha exatamente.”

Maquiagens vencidas, bijuterias que não usava mais porque tem alergia, jogos de tabuleiro faltando peças, roupas de pelo menos dez anos atrás e que não serviam mais. No “estoque”, a moça encontrou coisas até que emprestou de outras pessoas há anos e nunca devolveu.

“Comecei um longo processo de avaliar cada coisa que tinha, doando e jogando fora, aos poucos, as que não tinham mais utilidade para mim. Assim estou até hoje. O minimalismo é um processo que nunca acaba”, explica.

Ao perceber que, com menos coisas acumuladas à sua volta, seu dia a dia se tornava mais fácil, Fernanda foi adaptando o minimalismo que aplicava à casa para todas as áreas da vida.

“Fui percebendo que ter a liberdade de sair de um emprego que não me faça bem, por exemplo, é mais importante que ter um salário fixo para gastar com objetos e coisas”, conta. “A faxina também se estendeu à minha vida digital: saí de grupos de whatsapp e não fico mais conectada o dia todo”.

‘Pessoas mais importantes que coisas’

De acordo com os escritores Joshua Fields Millburn e Ryan Nicodemus, autores do documentário Minimalism: A Documentary About the Important Things (“Minimalismo: um documentário sobre as coisas que importam”, em tradução livre), que retrata a vida de pessoas que vivem apenas com o essencial, o minimalismo é um comportamento que torna pessoas mais importantes que as coisas que elas têm.

“Com menos importância para o material, podemos abrir espaço nas nossas vidas para o que realmente importa”, comenta Ryan, um ex-publicitário bem-sucedido, mas que chegou ao limite de estresse quando foi escalado para vender celulares para crianças de cinco anos.

O americano então vendeu 80% das coisas que tinha acumulado – carros de luxo, roupas de marca, um apartamento espaçoso -, demitiu-se e criou o blog The Minimalists com o amigo Joshua, ex-empresário que mudou de vida depois da morte da mãe.

Ryan explica que o minimalismo não é uma “competição” sobre quem tem menos coisas. “Ao contrário, queremos mais: mais tempo, mais espaço, mais paixão, mais experiências. Limpamos a bagunça do caminho da vida para sermos mais livres.”

O mínimo essencial

A palavra “minimalismo” surgiu de movimentos artísticos do século 20 que seguiam como preceito o uso de poucos elementos visuais, e, aos poucos, foi migrando para o campo do social.

“Enquanto expressão comportamental da sociedade, o minimalismo é um reflexo de movimentos contraculturais anteriores, como o punk e o hippie, que questionaram a sociedade de consumo e seus excessos”, explica o pesquisador em cultura e comunicação Marcelo Vinagre Mocarzel, professor da Universidade Federal Fluminense.

Diferente dos contraculturais, contudo, os minimalistas não buscam construir uma sociedade alternativa. “Os minimalistas têm buscado combater o consumismo por dentro do sistema. Isso quer dizer que eles trabalham, se vestem normalmente e até consomem.”

“Em certa medida, os minimalistas se aproximam mais dos capitalistas clássicos descritos por Max Weber: capitalismo não é o problema para eles, mas sim esse capitalismo selvagem ancorado na ostentação e no desperdício”, aponta.

De acordo com a escritora americana Francine Jay, autora de Menos é mais: Um guia minimalista para organizar e simplificar sua vida, livro considerado a “bíblia” do minimalismo atual, o minimalista valoriza as experiências e dá menos importância às posses materiais.

“Quando não somos dependentes das coisas ou não somos mais definidos pelo o que possuímos, nossos potenciais e possibilidades são ilimitados”, afirma a escritora.

Como definição, Jay explica que o minimalismo é um estilo de vida em que se vive com menos coisas para se ter mais espaço, mais tempo livre e mais energia vital.

Assim, para os minimalistas, não há como ter estas duas coisas em abundância: “ou se tem tempo livre, ou se tem coisas sobrando”, explica a escritora.

“Quase tudo o que trazemos em nossas vidas – bens materiais, ideias, hábitos – devemos estar preparados a nos afastar a qualquer momento”, propõe Joshua. “Muitos podem discordar por parecer insensível, mas é exatamente o contrário: nossa preparação para se afastar é a forma mais avançada de cuidar.”
Ter coisas versus ter tempo

Coisas sobrando – e transbordando – era como a modista Isabel Alves, 23 anos, definia sua vida até dois anos atrás. “Eu gastava muito, principalmente com roupas e maquiagens”, conta. “Nunca cheguei a formar dívidas, mas todo o dinheiro que tinha ia direto para meu consumismo.”

Quando Isabel percebeu que nunca tinha dinheiro para fazer com mais frequência o que realmente gosta – viajar -, começou a repensar sua vida. A faculdade de moda também ajudou a moça a refletir sobre a maneira como gastava o seu dinheiro.

Antes de entrar na faculdade, admirava esse mundo da moda, até descobrir que não só o meio ambiente, mas várias pessoas pagavam (um alto preço) por esse tipo de consumo”, lembra. “Mas durante uma aula, fiquei chocada com a indústria têxtil e percebi o quanto consumia uma moda de roupas baratas, porém descartáveis”.

Pesquisando maneiras de consumir de forma consciente, a modista conheceu o conceito de vida minimalista e fez uma espécie de inventário de tudo o que possuía.

Com as coisas que não queria ou que não servia mais – de livros, a roupas e até móveis – Isabel criou um brechó online em 2016. Desde então, a moça já faturou cerca de R$ 5 mil vendendo suas coisas e percebeu que poderia, e gostaria de, trabalhar com garimpo de roupas usadas.

“No começo deste ano, saí da empresa em que trabalhava por não aceitar mais o pensamento comum na indústria da moda: ‘vamos incentivar as pessoas a comprar o máximo’.” Outra mudança que o minimalismo trouxe para a vida de Isabel foi uma mudança na percepção de espaço: a modista, que morava com o marido em um apartamento de 68 metros quadrados, percebeu que imóvel tinha se tornado grande demais para os dois.

“Desapegar de várias coisas não foi fácil no começo”, lembra. “Mas quando fui vendo o espaço mais limpo e fácil de cuidar, a facilidade para se vestir, o dinheiro que deixava de gastar, criei prazer no desapego”.

Com espaço sobrando, o casal decidiu dar mais um passo rumo ao minimalismo: se mudaram para um apartamento de 42 metros quadrados. O guarda-roupa de Isabel hoje se resume a 30 peças de roupa e cinco pares de sapatos. “Temos uma vida bem simples, mas isto nos permite trabalhar com o que gostamos e de casa e gastar dinheiro com o que nos faz feliz”.

Assim como Isabel, Fernanda também avalia que o maior aprendizado que o minimalismo trouxe para sua vida foi perceber que mais importante que ganhar muito, é aprender a viver com pouco. “Com gastos baixos, consigo guardar dinheiro e não fico escrava de um salário”, explica. “Ter tempo livre para praticar meus hobbies, encontrar meus amigos e família e até descansar é fundamental para mim dede então”, comenta Fernanda.
Mais antigo que Cristo

Joshua explica que as atuais ideias que guiam comportamentos minimalistas são, na realidade, muito antigas.

“Se considerarmos a Revolução Industrial e a sociedade de consumo formada por ela, o minimalismo pode parecer novo. Mas conceito de reduzir acessos, em si, remonta aos estóicos e ao princípio das religiões”, explica Joshua.

O Estoicismo foi uma escola filosófica da Grécia Antiga, surgida no século 4º a.C., que definia a felicidade como objetivo central da vida, sendo a felicidade um conceito relacionado a uma vida simples e em harmonia com a natureza.

De acordo com os estoicos, o sábio é, por definição, feliz. Por isso, segundo Joshua, a felicidade na vida é algo tão importante para os minimalistas.

Mas desde a sua concepção – o minimalismo seria mais antigo que a ideia de Jesus Cristo, portanto – o conceito de uma vida minimalista tem sido adaptado para a realidade social e econômica de cada época.

“Acumulamos tantas coisas em imóveis cada vez mais caros e menores; temos tantas roupas e só usamos as mesmas; armazenamos tanta comida, e grande parte vai para o lixo. Isso mostra como a sociedade de consumo criou gargalos que precisam ser resolvidos”.

Os minimalistas estão preocupados com esses gargalos, mas dizem que o minimalismo não se resume apenas a redução de consumo.

“Há diversos motivos que levam a reduzir o consumo. Um deles é a falta de dinheiro, tão comum em tempos de crise”, aponta Mocarzel, explicando que, nesses casos, o consumo pode voltar a subir quando os tempos de crise melhoram, pois não há um motivador social por trás da mudança de comportamento, somente um motivador econômico.

“O minimalismo alia alguns preceitos na redução, como a sustentabilidade, a questão da saúde (viver com o mínimo para fugir das doenças alimentadas pelo excesso – ansiedade, pânico, distúrbios alimentares etc) e até um certo aspecto espiritual”.

Para o pesquisador, independente da motivação, “a ideia do menos é mais nunca foi tão necessária”, defende.

Joshua e Ryan citam o filme O Clube da Luta como um exemplo de onde encontrar uma boa referência minimalista. “Não é um filme sobre luta, é uma narrativa sobre vida, sobre como livrar-se das influências corporativas e culturais que controlam nossas vidas”, argumenta Ryan.

Ele lembra as falas do personagem Tyler Durden (interpretado por Brad Pitt) como as ideias minimalistas centrais da sociedade do século 21: “Somente quando perdemos tudo é que estamos livres para fazermos qualquer coisa” e “as coisas que você possui acabam por possuí-lo”.

Imagem de capa: Shutterstock/alexmat46

TEXTO ORIGINAL DE BBC

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