Por Renata Gomes
Tem um texto do professor Hélio Guilhardi que considero chave para a prática clínica tanto pelo conteúdo acessível quanto por sua aplicabilidade, é o texto “Autoestima, autoconfiança e responsabilidade” [1]. Recomendo a leitura por psicoterapeutas e por todos que queiram ter uma visão mais pragmática do que comumente (e metaforicamente [2]) assim denominamos. Endereçado prioritariamente a pais, o texto propõe-se a mostrar como os mesmos podem favorecer o desenvolvimento de comportamentos e sentimentos associados à tríade de temas citados no título.
Em resumo, o texto mostra como as relações estabelecidas na interação do indivíduo com seu ambiente (o que os analistas do comportamento chamam de “contingências de reforçamento”) contribuem ou não para que determinados padrões de comportamento se desenvolvam. Enquanto aquilo que chamamos “responsabilidade”, por exemplo, derivaria comumente de uma história na qual o indivíduo aprende a se comportar para evitar consequências desagradáveis (paga-se a conta de energia em dia para evitar multas ou que a luz seja cortada), a “autoconfiança”, por sua vez, seria produto de uma história bem sucedida de desempenho (faço coisas e tenho bons resultados fazendo-as: acerto a bola na cesta de basquete, o sabor e a aparência daquilo que cozinho são agradáveis e etc). A autoestima, por sua vez, seria construída na relação com o outro, em interações necessariamente sociais – mas não apenas isso: é preciso que o indivíduo se sinta valorizado “por quem ele é” em tais relações, interações.
O que observo na prática clínica é que de fato alguns pais parecem ficar sensibilizados ao entrarem em contato com o conteúdo do texto e já tive a oportunidade de atender famílias que reviram suas práticas a partir de reflexões por ele evocadas. Fica clara a importância de também valorizar e acolher o filho quando este se comporta em função de coisas que lhe são importantes, que o fazem feliz, mesmo quando tais comportamentos nem sempre são especialmente do interesse dos pais (analistas do comportamento chamam isso de “apresentação de reforço não contingente a desempenho específico”).
Mas costumo indicar também a leitura desse texto (ou discutir resumidamente seu conteúdo) com clientes adultos em processo de psicoterapia. E frequentemente, no que concerne a autoestima, a reação envolve uma variação do que se segue: “Agora compreendo melhor porque me comporto assim ou porque me sinto tão pouco estimado. Parece-me que minha família de origem e outras pessoas relevantes de minha convivência não conseguiram ou ainda não conseguem me valorizar independentemente de suas próprias expectativas a meu respeito ou não consigam me valorizar de qualquer forma. Mas me angustia pensar: como mudar isso? Ou, mais especificamente, o que EU posso fazer para mudar isso?”.
Essa é uma questão pertinente. Partindo da premissa que a autoestima é construída na relação com o outro, como fazer quando o outro não oferece consequências aos meus comportamentos de forma que eu me sinta estimado? Felizmente, existem caminhos. Vou começar com uma simples esquematização da contingência de reforçamento que deveria produzir a chamada autoestima, para então descrever alternativas viáveis para quando não é bem assim que as coisas estão funcionando na prática.
O esquema acima mostra o tipo de interação que faz com que o indivíduo sinta-se reconhecido pelo outro independentemente de fazer apenas o que o outro espera dele. Não é preciso “pagar” pelo afeto, ele é disponibilizado mesmo quando não se é o aluno exemplar, a boa menina, ou o funcionário do mês. É aquilo que as pessoas experienciam quando são acolhidas ou valorizadas por suas características únicas, suas falhas, suas preferências, peculiaridades.
Nas relações nas quais as pessoas se sentem genuinamente amadas, dizem poder “ser elas mesmas”. Isso em alguma medida equivale a dizer que podem se comportar em função daquilo que lhes é importante sem que se sintam tolhidas ou rejeitadas e que, ao contrário, sentem-se queridas ou apoiadas ainda que “pisem na bola” ou “sejam péssimas” em alguma coisa. Mas e quando isso não ocorre? E quando o indivíduo sente que basta um passo fora da linha para que seu valor seja questionado ou o interesse em se relacionar com ele acabe?
Sugiro, nesse caso, considerar quatro hipóteses e quatro planos de ação delas derivados (os quais podem ser colocados em prática com auxílio valioso de um psicoterapeuta, mas podem ser conduzidos pela própria pessoa que se sente pouco estimada). A primeira hipótese é a que está mais diretamente relacionada ao próprio comportamento da pessoa que teria baixa autoestima. Se para sentir-se amado pelos demais é necessário que o indivíduo eventualmente se comporte em função daquilo que lhe é especialmente reforçador (pois o excesso caracterizaria egoísmo e insensibilidade ao outro), uma primeira pergunta a ser feita seria: esses comportamentos já ocorrem? O ambiente social não tem como reforçar e selecionar respostas que não são emitidas: não é possível valorizar alguém de maneira independente de um desempenho específico se em geral essa pessoa só apresentar o desempenho que acredita que a comunidade espera. Se esse for o caso, segue-se naturalmente uma possível solução: aumentar a ocorrência desses comportamentos. É preciso “ter um gosto na vida”.
Ter situações e atividades na agenda que despertem ânimo ao acordar. É ser capaz de dizer para as pessoas próximas do que gosta ou não, recusar-se a fazer coisas que parecem abusivas ou enfadonhas. É colocar o dedo no bolo! [3] É admitir dificuldades, erros. Reconhecer e expressar que suas necessidades são tão importantes quanto as dos demais. Eu estabeleço aqui um paralelo com o que Brené Brown discute em sua conhecida TED Talk [4] (mais de 27 milhões de visualizações até a presente data): do ponto de vista comportamental, parece-me que o que ela defende quando fala sobre vulnerabilidade ou sobre “a coragem de ser imperfeito” é justamente que as pessoas possam aumentar a frequência com que se comportam em função daquilo que lhes é reforçador ou não. Em certa altura ela diz explicitamente que “conexão” é o resultado de autenticidade: dispor-se a abandonar quem pensamos que devemos ser e ser quem somos.
Entretanto, muitas vezes o indivíduo já faz isso. As respostas são emitidas, mas não parecem estar sendo reforçadas pelas pessoas relevantes. Levanto então outras duas hipóteses para explicar a não ocorrência do reforço: tais pessoas não reconhecem a importância de fazê-lo (estão alheios ao impacto que isso tem sobre o outro) ou não sabem como fazê-lo (falta-lhes repertório comportamental ou este é tão incipiente que dificulta a discriminação do outro). No primeiro caso, o caminho seria tornar a comunidade consciente do que ocorre, basicamente descrevendo e apontando o que ocorre. Para o segundo caso, o psicoterapeuta (ou qualquer outra pessoa habilitada) focaria no desenvolvimento de repertório dos envolvidos ou ajudaria o próprio cliente a reconhecer nos comportamentos das pessoas com as quais convive sinais de que é amado. Sinais que hoje não assumem tal função. Nem todos sabem explicitar sentimentos e por vezes as manifestações de amor são sutis (e não inexistentes!).
As três primeiras hipóteses não são excludentes. Mas, por fim, ocorrem infelizmente situações nas quais o indivíduo convive de fato com pessoas que não o amam ou que são incapazes de amar [5] (o que chamamos “amar” envolve a aprendizagem de vários comportamentos e nem todos desenvolvem a capacidade de assim comportar-se [6]). Nesses casos, resta identificar a limitação da comunidade social de origem (“você é merecedor de amor, mas não vai recebê-lo dessas pessoas”), reconhecer o sofrimento que essa limitação implica (pois é difícil se ver com uma mãe pouco afetiva, por exemplo, quando tantas mães são “coruja”, ou lidar com o fato de que um interesse amoroso não é correspondido) e buscar novos ambientes, novas relações e novos contextos.
TEXTO ORIGINAL DE COMPORTE-SE
[1] Guilhardi, H. J. (2002). Auto-estima, autoconfiança e responsabilidade. Disponível em http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/helio/Autoestima_conf_respons.pdf
[2] Guilhardi, H. J. (2007). Auto-estima e autoconfiança são metáforas, não causas. Disponível em http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/helio/Auto_estima_e_autoconfianca_sao_metaforas2007.pdf
[3] Esse texto é um excelente exemplo do eu pretendia defender: http://vejasp.abril.com.br/blogs/terapia/2014/04/01/a-menina-que-sempre-ganhava-elogios/
[4] Agradeço à colega psicóloga Marisa Richartz pela indicação do vídeo da palestra de Brené Brown, o qual igualmente recomendo: https://www.ted.com/talks/brene_brown_on_vulnerability?language=pt-br
[5] Só para citar uma situação, segue sugestão de excelente texto: Zortea, T. (2012) A questionável concepção do “Incondicional Amor Materno” sob um viés evolucionista. Diálogos – Comporte-se, 06/09/2012. Disponível em: http://www.comportese.com/2012/09/a-questionavel-concepcao-do-incondicional-amor-materno-sob-um-vies-evolucionista
[6] Guilhardi, H. J. (2008). Amar se aprende? Como isso acontece? Jornal Sinal Verde, volume 23, 25/11/2008. Disponível em http://www.itcrcampinas.com.br/jornal/dialogo_edicao23.html
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