Por Cileide Alves
A sociedade contemporânea vive a “era do gozo”, na qual predomina o excesso. O consumo desenfreado de bens materiais, a busca permanente pelo corpo perfeito, o abuso de drogas denunciam essa era do excesso, diz a psicanalista Luciene Godoy. “A era do gozo é o momento histórico onde todos estamos, o tempo todo, compelidos a ter prazer sem cessar. Se você não está bem, há um problema com você porque o mundo lhe convida a gozar”, diz. Psicanalista lacaniana, com especialização em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Luciene Godoy atualmente estuda a Clínica da Psicanálise para o Século 21 com o psicanalista Jorge Forbes no Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA), em São Paulo. Confira a seguir trechos de sua entrevista ao POPULAR.
Reportagem do POPULAR de 4 de setembro mostrou que o crack já piorou a sociedade goiana: o tráfico e consumo da pedra repercutiram no aumento de homicídios em geral, e em particular de mulheres e jovens; no aumento de roubos de carros e motos e no abandono de crianças por pais que se envolvem no consumo. Por que essa droga se popularizou tanto?
Estamos vivendo não mais na pós-modernidade, mas na hipermodernidade, que também pode ser chamada de a era do gozo, com características de uma hipercomunicação e um hiperconsumismo. Em seu livro A Felicidade Parodoxal , Gilles Lipovetsky, filósofo francês estudioso do tema afirma que: “A sociedade do hiperconsumismo funciona como uma sociedade de desorganização psicológica na qual, como nunca antes, se acelera a sucessão de altos e baixos da vida: movimentos de vaivém que autorizam o pessimismo tanto quanto certo otimismo.” É muito paradoxal, estamos, ao mesmo tempo vivendo as grandes promessas acalentadas desde o renascimento de um mundo melhor dominado pela ciência, a capacidade do homem de melhorar o mundo para nele viver, ao invés de sonhar com um mundo melhor no futuro. Estamos, em alguns aspectos, nesse mundo melhor do futuro, mas, o que pesquisadores como Lipovetsky denunciam é o excesso. Estamos em um mundo de excessos, desenfreado. Onde ancorar-nos?
A sra. escreveu um artigo no POPULAR (1º/9) e afirmou que vivemos hoje na “era do gozo”. O que isso significa e como pode estar relacionado ao consumo de drogas?
As grandes causas, os ideais não mais ocupam o desejo de transcendência das pessoas. Para a grande maioria das pessoas não há uma ideia pela qual lutar, mas objetos para se gozar, agora, sem demora. É do conhecimento de muitos que, no Natal, o índice de suicídios no mundo todo aumenta muito. É porque os “tristes e sós” se sentem ainda mais desafortunados diante da felicidade geral de todos celebrando na “harmonia fraterna de todos os lares felizes”. Aí se matam por se sentiram pior do que nunca porque não estão participando da festança geral, do amor, dos brindes, dos sorrisos, da união. Coitados, se soubessem o quão pouco desta lista de fato acontece, talvez vivessem melhor com o fato de não terem o que “todo mundo tem” e até conseguissem viver melhor consigo mesmos. A mim, me parece que é algo semelhante o que está acontecendo na nossa aldeia global, só que 365 dias por ano. Os “infelizes” que não estão gozando das ofertas, dos objetos, das possibilidades, das viagens, das descobertas, das diversões, são pobres diabos fora do parque de diversões mundial. A era do gozo é o momento histórico onde todos estamos, o tempo todo, compelidos a ter prazer sem cessar. Se você não está bem, há um problema com você porque o mundo lhe convida a gozar.
E quem não pode? E quem não tem?
Aí, muitas vezes, entra o uso das drogas, que também podemos qualificar de um hiperconsumo de drogas, como a endemia de crack, e não só, verificada na atualidade. E veja bem, numa sociedade de desorganização psicológica, as pessoas se encontram muito mais perdidas, justamente pelos caminhos não estarem tão bem marcados, de uma oferta descomunal de escolhas quando muitos não as têm. É uma sociedade em movimento acelerado, dá medo, não temos muito dos amparos psíquicos de antes. Deixamos de acreditar em muita coisa. Aí a droga vem como um anestésico para a dor de viver que é grande, paradoxalmente, numa sociedade do gozo. Precisamos erigir proteções contra o gozar sem limites.
Como?
Existe uma frase na psicanálise que é forte e intrigante e, penso, traz uma resposta possível. A frase é: “O que nos salva do gozo é o prazer.” Não estranhe, é porque para psicanálise gozo é a falta de corte, de interrupção, de limite. A criança é aquela que não quer ir para a cama quando a festa acaba. Acaba, mas ela quer continuar a brincar. Todos já se foram e ela não aceita que “the party is over”, acabou, acabou a brincadeira. Vem o sono. Vem o novo dia. Coisas para se fazer, sofrimentos também, são parte… O prazer seria não ser comandado pelo objeto. Vá até onde realmente quer ir. Compre somente o que quer comprar. Beba, não seja bebido. Isso é prazer, não gozo. Não é porque estamos num mundo onde, é verdade, muito mais nos é permitido, que “temos que” o tempo todo. Podemos, se pensarmos no corte, no oposto, no não é possível agora ter prazer, nos desviar do imperativo de gozo que provoca a violência externa como os roubos por objetos de consumo, a droga, as relações em série. Mas também nos leva a violências contra nós mesmos como a exigência da imagem perfeita, “botocada”, plastificada, que conduz ao vazio da falta de valores não materiais e à depressão. Num mundo com excesso de ofertas, para nos proteger, é preciso dizer não.
Entrevista originalmente publicada no jornal O Popular em 11 de setembro de 2011.
Fonte indicada Lisandro Nogueira
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