Poderíamos pensar no ciúmes como um afeto que participa da construção do sujeito como tal. Freud em seu livro “Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e no Homossexualismo”* (1922) destaca que é “(…) um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais”. A sua ausência, portanto, seria resultado de severa repressão, desempenhando um papel ainda mais importante no inconsciente. Difícil de colocar em palavras, o ciúmes é significado como o medo da perda do objeto ou a raiva daquele que pode roubar o objeto. Estaremos, contudo, focados nas suas expressões patológicas ao decorrer do texto.
No mesmo texto citado, Freud ainda lança em analise três tipos de ciúmes: a) normal ou competitivo; b) projetado; c) delirante. Porém, seria interessante pensar nos três tipos, ocorrendo em maior ou menor grau, no dia-a-dia dos relacionamentos afetivos. Obviamente esse “maior ou menor grau” dependerá das estruturas psíquicas de cada um, onde o tipo “a” será mais comum em pessoas com ausência de uma estrutura patológica e o “b” e o “c”, mais presente nas neuroses. A subjetividade pode fazer uso de quantas combinações convier, sendo determinadas pelas fantasias e vivências primitivas da infância, podendo as modalidades ocorrerem mutuamente ou não.
Devemos nos atentar na posição homossexual ou bissexual – inconsciente – presente no ciúmes. O próprio tipo “a” visto como normal, não é construído numa situação real sob controle do ego consciente, isto é: racional; ao contrario, é construído no inconsciente, derivado de vivências primitivas edípicas – na tríade da relação pai-mãe-bebê – e entre irmãos. Nesse próprio tipo, comumente se acha evidencias bissexuais em certos casos clínicos: ” (…) isto é, um homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará o homem seu rival, mas também sentirá pesar pelo homem, a quem ama inconscientemente, e ódio pela mulher, como sua rival.” (FREUD, 1922).
O tipo “b”, projetivo, por sua vez, tem por característica a projeção da própria infidelidade no parceiro(a). Essa modalidade parecer fazer parte da cultura monogâmica que move a prática da fidelidade. Essa fidelidade obviamente só existe pela existência de uma força contrária extremamente tentadora: a força da pulsão sexual é certamente poligâmica em sua essência. Qualquer desejo infiel causa angustia e move, entre elas, a defesa de projetar essa infidelidade no outro. Apesar dessa modalidade não apresentar em primeira analise a presença de uma posição bissexual ou homossexual, é importante pensar que ela pode ocorrer juntamente com o tipo “a” ou ”c”, na qual falaremos a seguir.
Esse terceiro tipo, delirante, mostra uma posição varias vezes exclusivamente homossexual, sendo que, nesse caso, o ciúmes pode ser visto como a expressão de mecanismos de defesa contra uma homossexualidade reprimida. Sua origem mantém relação com o segundo tipo, estando num impulso de infidelidade, só que homossexual. A homossexualidade desse sujeito, realiza um percurso que desvia para a paranóia. Usando o homem como exemplo: ele se vê constantemente perseguido por um terceiro do mesmo gênero na qual tenta roubar a parceira. Freud diz que essa dinâmica se expressa na formula: “eu não o amo; é ela quem o ama!.”
Em alguns reflexões mais livres, a partir dessa leitura, podemos pensar na ênfase do sujeito capturado pelo outro e construir a cena dessa fantasia: Nas dinâmicas até certo ponto voyeuristas do ciúmes, o sujeito orbita o outro – parceira (o) – e os outros – terceiros -, os observando, desejando ser eles, acreditando na possibilidade de que esse terceiro outro possui algo de muito bom que faz a o segundo outro desejá-lo. Fantasia que está ligada com a inveja, lembrando de Klein abordando a relação entre ciúmes, inveja e voracidade em seu livro Inveja e Gratidão de 1957 .
A observação voyeur dessa relação fantasiosa do parceiro com um outro move-se na formula: acredita-se que o parceiro e o outro estão vivendo um momento de eterno gozo, do gozo do Outro, usando termos lacanianos. Ainda mais complexo pode ser o desejo de ser o parceiro(a) para se relacionar com esse terceiro outro, mostrando a posição homossexual. A inveja se manifesta tanto em querer ser o parceiro(a) e desfrutar de uma cena fantasiosa de gozo extremo, quanto de querer ser o terceiro outro na fantasia, de ter tudo de bom que supostamente ele tem e no lugar do mesmo, desfrutar com a(o) parceira(o) esse gozo extremo, retornando a posição heterossexual. Vemos a homossexualidade e a heterossexualidade presente, portanto a bissexualidade, junto da voracidade de trazer para dentro de si tudo que esse terceiro “invasor” possui, além da inveja dos dois nessa relação imaginaria que se formou. Ciúmes, inveja e voracidade finalmente estão unidas nessa fantasia de aspectos voyeuristas, bissexuais ou homossexuais.
O mais difícil, na clinica, por motivos de estruturas culturais que formam a heteronormatividade e a mononormatividade através do eliciar da fidelidade, é fazer com que o sujeito, engolfado numa dinâmica de ciúmes patológico, elabore essas evidencias de desejos homossexuais/bissexuais e poligâmicos. A heteronormatividade e a mononormatividade são construções sociais que certamente fazem da analise, nesses casos, uma situação desconfortável para o sujeito que afirma constantemente sua heterossexualidade e fidelidade.
No entanto, a analise do ciúmes não foca somente nessas situação. O ciúmes quando surge como situação sintomática, por exemplo, na relação com o analista, não deixa de estabelecer evidencias de uma estrutura neurótica, já que ser capturado pelo outro e demandar sempre algo do mesmo, é uma condição neurótica. A neurose, portanto, surge no ciúme, e o ciúme pode demonstrar, no seu âmago, fantasias homossexuais, bissexuais ou poligâmicas.
*: O titulo deste trabalho de Freud deve ser compreendido pelo contexto da época, portanto, o termo: “homossexualismo” deriva de uma perspectiva histórica. Sua leitura deve ser contextualizada para a atualidade. Foi a partir dessa contextualização que foi possível escrever esse texto e analisar as questões de heteronormatividade e mononormatividade, que na época de Freud ainda não era problematizada como no contemporâneo. Sobretudo, esse texto não se enquadra numa perspectiva freudiana ortodoxa e restringe esses termos, quando em certo momento citados, ao contexto histórico que foram usados.