COLABORADORES

O silêncio que se espera das mães

“Mas e se seu filho ler o que você escreve?”. Não sei quantas vezes já ouvi essa pergunta, sempre com o tom de que meus filhos deveriam ter vergonha dos meus textos, relatos, exposição e, é claro, de quem eu sou fora do papel de mãe: uma mulher.

Escrever é uma daquelas artes que nos deixam nuas mesmo que não seja o objetivo. Se tudo o que escrevemos saiu de nós, mesmo que não seja sobre nós estava aqui dentro. E as pessoas não conseguem entender que bem e mal, bom e ruim, certo e errado, amor e ódio, santa e devassa existem dentro de todas nós. Por mais que nós, mulheres, sejamos levadas a esconder as segundas palavras das dualidades acima, é claro.

Dói escrever. Dói e cura. Não importa se escrevo literatura, jornalismo ou um post de Facebook. Ali tem um pouco de mim, da minha dor e do meu sangue, da minha alegria, das minhas motivações. É ali, enquanto escrevo, que entendo quem sou, consigo olhar ao redor do lugar que ocupo no mundo, vejo com clareza a maneira que as pessoas me olham e me sinto capaz de expor, com maestria, as ideias que me habitam.

Se ser mulher já é tido como algo errado, como o ser incompleto, aquele que sente inveja do pênis, imagina só o que é ser uma mulher que fala sobre ser mulher, sobre descobrir-se mulher, que pede respeito não só pra “aquelas que se dão o respeito”, que questiona o mundo e não tem vergonha de apontar sua visão em todos os assuntos que achar pertinente? Não é fácil, nem bonito e não tem glamour.

E o que nossa sociedade mais quer é glamour. E silêncio. É o TV Fama, o Programa do Amaury Jr, Campos do Jordão no inverno e uma praia exclusiva no verão. Ninguém quer ler sobre o vômito na roupa do trabalho, sobre o cocô de cachorro na sala de casa ou a criança que resolveu falar frases em que palavras e palavrões se intercalam. Mãe boa não reclama. Mulher boa não questiona. Sentir não é permitido, falar sobre o que se sente muito menos. A mulher ideal não escreve, não fala, não sente, não chora, apenas cora. No momento certo e direito, é claro.

Somos todos vulneráveis, mas agimos como se essa vulnerabilidade não existisse. Quando se é mãe com acesso à internet e grupos de maternidade isso fica ainda mais evidente. São histórias sem fim de como os filhos são geniais, comem sozinhos, escolhem as próprias roupas, são respeitosos e nunca fizeram xixi na cama. Independentes, prontos para o mundo, generosos ao extremo. Ali você não encontra nenhuma mulher falando sobre como está difícil seguir em frente, das dores de voltar ao trabalho ou da falta de paciência ao ficar em casa.

Ninguém fala do dia em que perdeu a paciência e gritou como se não houvesse amanhã, nem dos dias em que você demora mais do que o necessário no mercado só para curtir seus próprios pensamentos sem ser interrompida. Nos grupos de maternidade, assim como na vida, as mulheres encarnam o papel de heroínas, salvam o mundo enquanto passam batom e o cabelo sem sai do lugar. Eu, por outro lado, nem cabelo tenho mais.

Aprendi que a escrita é melhor de acordo com a vulnerabilidade que a gente coloca nela. A escrita feminina, é claro, para a masculina já existem fórmulas que mesmo sem um pingo de alma as coisas dão certo no mercado. Para a feminina é preciso inventar, criar, falar com a voz de quem vive aquilo, está ali, sente na pele, nos nervos. E mostrar quem somos, o que vemos em outras mulheres, como são as mulheres que imaginamos e sonhamos, tudo isso é de uma vulnerabilidade imensa. Falamos de nós e das nossas iguais porque são elas que queremos tornar eternas, são essas histórias que queremos que sejam ouvidas. Cansamos de calar e agora queremos ouvir nossa própria voz que quase não reconhecemos.

Nos dias ruins tenho medo. “Mas e se meus filhos lerem o que eu escrevo?” Como vai ser o olhar em seus rostos? Quais serão os pensamentos que passarão em suas cabeças? O que eles vão dizer? O que os amigos deles vão dizer? Como tudo o que escrevo pode impactar na vida deles? E aí eu respiro. Porque, por ser mulher, sei que o resultado das coisas nem sempre vem do que eu faço, mas de quem eu sou.

Meus filhos não leem o que escrevo — nem o de 13 anos, nem o de 6, quer ler o tipo de coisa que escrevo -, mas espero que daqui muitos anos eles tenham essa curiosidade. Que eles leiam meus textos, passem pelos destaques das minhas redes sociais, folheiem meus cadernos com pensamentos passageiros e anotações. É ali que eles vão ver de verdade quem sou eu. O que, além do amor por eles, habitava minha mente em cada momento. É ali que eles vão ter certeza do quão humana sou, do quão falha sou, de como sempre precisei de apoio, carinho, compreensão, assim como eles. Pelos meus escritos é que meus filhos vão me ver de alma nua, da forma mais bonita e verdadeira possível. Acho que eles vão gostar.

“Mas e se seu filho ler o que você escreve?” Da próxima vez que ouvir essa pergunta acho que vou responder: “ele vai virar meu fã porque, meu bem, eu sou boa demais”. E então eu vou sorrir o sorriso mais sincero que existe. Imagina como vai incomodar uma mulher que não apenas escreve, mas que gosta de si mesma? Uma mãe que não acha que está errando o tempo todo e transforma os possíveis deslizes em um motivo para se abraçar às crias e mostrar que tudo pode ficar bem? Gostar de quem se é, ter orgulho do que se faz, clichezão imenso, é um ato revolucionário. Ainda mais quando você é uma mulher que escreve.

Este texto de Carol Patrocínio está no Mulheres que escrevem

Carol Patrocínio

Carol Patrocinio é jornalista, feminista, mãe que educa sem gênero e duas vezes (2015 e 2016) indicada como uma das mulheres inspiradoras pelo site Think Olga. É também co-fundadora da Comum. Facebook: https://www.facebook.com/carol.patrocinio Medium: https://medium.com/@carolpatrocinio Newsletter: http://eepurl.com/b1pyhr

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