Por Raul Vaz Manzione

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.
– Ferreira Gullar, Aprendizado (1987)

Este ano eu falhei.

Falhei em uma área que eu me importo e valorizo muito, pra não dizer que sou apaixonado, que é ser terapeuta. E ser um terapeuta, para mim, é muito mais do que a formação em Psicologia e o atendimento em consultório; ser um terapeuta é se relacionar profundamente com nossos clientes e demais pessoas que estão envolvidas com nós, como nossos supervisores e nossos próprios terapeutas. É uma vida intensa. Dificilmente chegamos em casa após um dia de trabalho e saímos do “modo de trabalho”; quando nosso material de trabalho é o próprio comportamento humano não há como “deixar de canto” pois estamos sempre em contato com ele (Skinner, 1953/2003).

Um cliente meu desistiu da terapia este ano e os desdobramentos dessa desistência me afligiram por um período de tempo considerável. Afligiram, também, pessoas muito queridas e próximas de mim que puderam me dar o carinho, acolhimento e suporte que eu precisava. Mas isso não quer dizer que o sofrimento se foi.

Também não quer dizer que focar nos erros e nos defeitos, pensando nos “e ses” da vida, é muito útil. É útil no sentido de que aquilo serve à alguma função. No caso, foi uma esquiva de entrar em contato com aquela dor que eu estava sentindo e também esquiva de ações significativas em minha vida.

Foi então, nesse momento de dor intensa, que enxerguei a possibilidade de ação. Robyn Walser, uma das principais autoras da ACT, diz que um terapeuta que trabalha com ACT têm de aplicar a ACT em sua vida para ser um terapeuta eficaz. Afinal, de que maneira podemos modelar nossos clientes a fazerem Desfusão, praticar Aceitação da própria história e viverem de acordo com seus Valores se nós mesmos não desenvolvermos esse repertório?

E essa possibilidade de ação foi a de abraçar a dor e de não negá-la. Por que uma situação nos dói tanto? Porque ela machuca aonde nos importa. Pense em quantas vezes você sofreu por algo que não tinha importância. Agora pense em quantas vezes você sofreu por algo que lhe é importante.

Um de meus Valores mais importantes, que me guia não só como terapeuta, mas como ser humano, é o de ser apaixonado pelo que faço (e isso não se limita apenas à vida de Psicólogo). Camões (1595) falava muito bem sobre a ambiguidade em se amar algo. Há os momentos de puro prazer proporcionados por amar, mas há, também, os de intenso sofrimento.

Quanto mais eu evitava este sofrimento, mais forte ele ficava, de forma que eu me vi por vezes cego às alternativas. Levei um tempo para compreender que o sofrimento que eu evitava era por medo de atingir meus valores. Foi então que percebi que este sofrimento arraigava de meus próprios valores! Quem diria que um “Terapeuta ACT” iria demorar a chegar a esta reflexão, não é mesmo?

E foi a partir desta reflexão, que levou certo tempo, que pude caminhar junto com minha própria dor a fim de ir em direção a um propósito maior: ser um terapeuta apaixonado. Os japoneses possuem uma técnica para consertar cerâmica que se chama Kintsukuroi, a arte de reparar cerâmica com ouro e laca e compreender que a peça é mais bela por ter sido quebrada, e acredito ser uma das melhores metáforas para a terapia.

Não significa que a dor é apagada, mas que a própria dor é o caminho para a cura. Steven Hayes mesmo diz que quando nos deparamos com uma situação difícil, a vida está nos fazendo uma pergunta sobre como iremos agir diante disso.

Existem diversas “técnicas” e metáforas para trabalhar valores; você pode perguntar a um cliente quais são os seus heróis e extrair daí as qualidades admiráveis, ou perguntar a seu cliente o que imagina escrito em seu epitáfio ou o que pessoas diriam a seu respeito em seu funeral (Hayes, Luoma e Walser, 2007; Hayes, Strosahl e Wilson, 2012), mas, um que eu gosto possivelmente mais do que esses exercícios “clássicos”, foi um que fiz comigo mesmo e gostaria de convidar a quem estiver lendo a fazê-lo também. Tente fazer:

1) Pegue uma folha de papel em branco e tente se lembrar de um sentimento difícil, familiar, que de vez em quando surge para dar um “alô” não muito agradável.

2) Escreva, agora, com poucas palavras, qual (ou como) é esse sofrimento. Reserve agora um momento para observar o que você escreveu e notar como isso te impacta.

3) Vire a folha.

4) Neste novo lado, escreva qual Valor seu você quer proteger deste sofrimento ou o que ele pode ameaçar de qualidade sua (se você não souber com precisão algum valor, tente imaginar como você vê a melhor versão de si mesmo e escreva isso).

5) Observe o que você acabou de escrever e note se não é possível que, por vezes, na tentativa de evitar o sofrimento do outro lado, você chegou a negar este acesso à essa parte sua.

6) Sem virar a folha, escreva agora como você gostaria de agir diante do sofrimento do outro lado do papel.

7) Agora, se imagine o mais jovem que você puder (antes de seus 18 anos se não conseguir ir muito longe) onde essa dor, ou algo muito próximo a ela, esteja presente. Pode não ser exatamente igual a hoje, mas é certamente uma sensação familiar. O que você diria a si mesmo, mais jovem, passando por este momento de dor, de maneira que você pudesse empoderar a si mesmo para conectar com os mesmos propósitos escritos nessa folha?

8) Escreva essas frases.

9) Existe algo que você possa fazer a si mesmo, agora, de acordo com o que você escreveu? O que seria? Algo que você deixou de fazer ou quer começar a fazer? Escreva isso, também.

10) Perceba agora o que está escrito dos dois lados da folha e como as coisas se conectam, ao invés de serem opostas.

Na ACT nós não queremos passar a noção de “bom” x “ruim” para nossos clientes, ou qualquer lógica binária, preto-no-branco, que seja, mas sim a noção de funcionalidade: os nossos comportamentos agem a serviço de que, ou seja, qual a função deles em nosso repertório? Sentimentos não são ruins; são desconfortáveis, sim. Ruins, porém, são as estratégias que adotamos em lidar com ele. Ao colocar o sofrimento em uma classe de hierarquia que esteja em coordenação com nossos valores podemos reconhecer o sofrimento como normal, como parte da vida, e como sinalizador de algo importante, maior; como contexto para ação em compromisso com os nossos valores.

Quando que começou a ser “normal” rejeitar ou negar acesso a quem você realmente é e ao que você valoriza? Como você pode se (re)conectar à seus propósitos de vida, sem se afastar do sofrimento? Como você pode caminhar junto ao sofrimento em direção à uma vida valorosa?

Boa pergunta.

Imagem de capa: Shutterstock/Hunna

TEXTO ORIGINAL DE COMPORTE-SE

_____________________

Espero ter sido útil. Agradeço pela leitura.

(Agradeço aos meus clientes pelas trocas intensas e às minhas queridas supervisoras, M. e R. pelos ensinamentos e, também, pelas trocas intensas).

REFERÊNCIAS
Camões, L. (1595) Soneto 005. In: SONETOS (2000). Portugal: Assirio & Alvim.

Gullar, F. (1987) Aprendizado. In: Barulhos (2013). Rio de Janeiro: José Olympio Editora .

Luoma, J., Hayes, S., Walser, R. (2007) Learning ACT: An Acceptance and Commitment Therapy Skills-Training Manual for Therapists (1a edição). Estados Unidos: New Harbinger Publications, Inc.

Hayes,S., Strosahl, K., Wilson, K. (2012). Acceptance and Commitment Therapy: the process and practice of mindful change. Estados Unidos: The Guilford Press

Skinner, B. F. (1953/2003) Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes

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