Por Catarina Marques Rodrigues
Quer o ato aconteça uma vez, três vezes, quer seja praticado à saída de uma discoteca ou na cama do casal, a dor não se mede. O que pode haver é “níveis de constrangimento” diferentes, por exemplo, entre violação de rua e violação em contexto de intimidade.
A primeira é, de uma forma geral, episódica e pontual. Aconteceu e morreu. Já a segunda está dentro de uma teia mais difícil de cortar, porque “dificilmente a pessoa resolve um casamento de um dia para o outro um casamento e consegue, de facto, um afastamento físico real daquele agregado ou daquela pessoa com quem está a viver”, explica Margarida Martins. Por outras palavras: “O nível de constrangimento a que está sujeita é mais prolongado, o que dá mais poder ao violador porque, apesar do que fez, mantém-se na zona”.
Fora o agressor, a sobrevivente tem de fazer um caminho de recuperação. Seguir com a vida. Pode durar meses ou anos, não há uma fórmula. Regra geral, há uma vontade de virar a vida ao contrário para varrer o/os episódio/os para o lixo.
Se foi uma violação de rua e se aconteceu perto da casa da pessoa, é natural que a vítima tenha uma grande necessidade de mudar de casa. “Mesmo que tenha sido uma coisa com mais probabilidade de ser episódica, a pessoa não se sente em segurança ali”, explica Rita Mira. Há quem venda a casa, o carro, e mude de zona geográfica. Porque o episódio aconteceu perto de casa, ou do trabalho, ou do ginásio onde costumava ir. “Há uma necessidade de fazer mudanças muito grandes na vida porque perdeu o controlo sobre aquelas zonas”, resume a especialista.
Para Teresa, aquela casa já não é um lar. Apesar de o amor já ter um significado diferente. Teresa tem um novo companheiro há quatro meses, o primeiro desde Pedro. “Ele dá-me valor, trata-me muito bem, sai comigo… E dá-me a mão na rua, é muito carinhoso. É honesto, é trabalhador. Ele diz-me ‘eu amo-te’ sem eu pedir. Dá-me um beijo mesmo que eu não esteja à espera… Eu nunca senti o amor que estou a sentir agora”, conta.
Teresa optou por contar ao parceiro o que tinha sofrido. Queria ultrapassar por si, mas as memórias não a deixavam sentir-se tranquila com o namorado. Por isso, abriu o jogo. Ele ficou “em estado de choque”, diz. “Às vezes, quando estamos juntos, lembro-me e vêm-me as lágrimas aos olhos. E às vezes ele também chora comigo”.
Teresa mantém a mesma casa, a mesma sala, o mesmo sofá. Evita dormir lá, prefere dormir agora na casa do namorado, mas de vez em quando tem de regressar, até porque continua a pagar a renda. “É horrível ficar lá. Já tentei mudar o estilo da casa, a ordem das coisas, até já mudei a posição da cama e os objetos da sala… Mas a sala vai estar sempre ali”.
Teresa está entusiasmada com o novo amor, mas acautela-se a si própria: “Medo vou ter sempre. O que está cá dentro fica cá dentro. É o orgulho de mulher, é uma ferida de dentro”.
Carolina e Sara nunca mais tiveram nenhum companheiro. No caso de Carolina, já passaram cinco anos desde o fim da relação. Não o suficiente para acreditar noutra pessoa: “É muito cedo. Ainda não deixo ninguém aproximar-se de mim. É muito complicado. Já me convidaram para jantares ou para cafés, mas nego sempre. Tenho medo que essas pessoas possam ter ideias e recuso sempre. Só saio em família, ou em grupo, sinto-me mais protegida. Vai ser muito difícil acreditar… Não sei… Acho que não vai acontecer. A pessoa que estivesse comigo agora ia pagar a fatura daquilo que eu passei”.
Para Sara, as grandes vitórias estão a chegar agora. Quando chegou a Lisboa, trazia uma fatura quase impossível de carregar. “Tinha ódio aos homens. No dia em que cheguei, não conseguia dirigir a palavra a um homem. Mesmo para comprar um bilhete de metro, de autocarro, eu não conseguia. Teve de ser a minha filha a ajudar-me. Para mim, os homens eram todos iguais a ele”.
O maior desafio aconteceu quando começou a trabalhar. Aí, tinha mesmo de lidar com toda a gente. “Foi uma grande adaptação. Foi muito difícil ter de falar com um homem, mas hoje em dia falo. Tenho vários colegas no meu trabalho”, nota.
Vitória a vitória, caso a caso. Recuperar a vida sexual é só uma (pequena) parte do processo. Há uma “perda de identidade”, uma “despersonalização do ‘eu’”, explica Rita Mira, como se o interior ficasse em pedaços. Mais do que o corpo, é a ‘vontade’ da pessoa que é violada, como se ela tivesse perdido o controlo da sua liberdade. “No fundo, o que é violado é a integridade da pessoa: física, psicológica, emocional, moral, sexual. Há um todo de união que é interrompido por aquele assalto. O apoio técnico permite que as sobreviventes recuperem o controlo da sua própria vida”, sublinha a presidente da associação.
É preciso insistir para que as vítimas se sintam seguras a cumprir a sua rotina normal. Porque os desafios estão nas pequenas coisas. “A sobrevivente pode entrar em crise por fatores imprevisíveis. Por exemplo, está no escritório a trabalhar e de repente passa uma pessoa com o mesmo perfume que tinha o violador. Aquela pessoa está no local de trabalho, aparentemente seguro, mas entra em pânico com aquilo. Porque o episódio vem à memória. Aquela pessoa que passou não tem nada a ver com o que aconteceu, mas ela entra em crise”, ilustra.
Agora é extrapolar isto para a multiplicidade de hipóteses. Um som ou uma voz que ela associe ao episódio, um cheiro relacionado com o sítio onde aconteceu o ato. E isso afeta todas as áreas da vida, desde a saúde, ao trabalho, até ao amor. “Por exemplo, se o episódio aconteceu em casa, ela passa o dia no trabalho aterrorizada por ter de ir para casa ao fim do dia. Isso compromete a sua carreira profissional, as suas possibilidades de crescer na empresa”, ilustra Margarida. A vítima empurra o episódio para fora da memória, mas ele está em todo o lado.
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