Por Guilherme Spaldini
Há alguns anos, eu estava dirigindo em uma estrada quando percebi que meu pneu furou. Parei o carro no acostamento, coloquei o triângulo, procurei pelo macaco, lembrei que meu estepe é daqueles que parece roda de bicicleta e fiquei pensando em quanto ainda teria de rodar para chegar a alguma borracharia no meio do nada.
Mas, entre todos esses pensamentos, percebi outra coisa que me chamou ainda mais atenção: eu estava, automaticamente, ao pensar sobre os eventos, formatando-os como posts do Facebook.
“Nada como furar o pneu no meio do mato”, “Quem inventou esse estepe do I30 devia ir para cadeia”, “Só falta agora chover” eram exemplos de frases que me vinham à mente, acompanhadas de fotos que eu nunca tirei, mas imaginei.
Depois de perceber esse fenômeno, notei que ele é ubíquo. Se estou no cinema, adorando um filme, sem querer já começo a formular uma resenha curta, em formato de rede social. Em domingo de Game of Thrones, ou de final de campeonato, o pensamento já vem em pacotes de menos de 140 caracteres.
Há mais de dois meses que não faço um post neste blog. E um dos principais motivos foi esse. Desde que comecei a publicar aqui, passo boa parte da vida transformando experiências; ideias; livros; séries; filmes; reflexões, insights em textos de até 1.000 palavras, que tenham um apelo mais universal, que contem com um título chamativo, que sejam adequados a essa plataforma, já acompanhados da chamadinha que usarei para divulgá-los no Face.
Esse fenômeno não é uma exclusividade das redes sociais. Antes eu já ficava transformando filmes em resenhas. Mas, então, aquilo servia para dizer algo capaz de impressionar a garota que estivesse comigo no cinema. O formato e o objetivo do texto que eu produzia eram completamente diferentes do que são hoje.
Mas o fenômeno era o mesmo: diferentes formas de linguagem determinam diferentes formas de experiência e consciência.
Na verdade, a consciência não é muito mais do que linguagem. Somos conscientes porque nos comunicamos com nós mesmos o tempo todo. Essa ideia pode não ser tão intuitiva quanto eu faço parecer ao apresentá-la, assim, como óbvia. Mas, pense bem. E note que, ao pensar bem, nada mais acontece além de você utilizar alguma linguagem com a qual está muito confortável, para contar uma história que faça sentido.
(Mas não acredite só em mim. Daniel Dennett, em Consciousness Explained, traça uma interessante história sobre como a habilidade de conversar silenciosamente consigo mesmo pode ter sido evolutivamente selecionada para se transformar na misteriosa autoconsciência).
A premissa de que a linguagem molda a experiência do mundo é levada às últimas consequências no filme A Chegada, uma das melhores produções de ficção científica (e um dos melhores filmes) do ano passado. Ao aprender a linguagem de uma espécie alienígena, a personagem de Amy Adams aprende a experimentar o tempo de uma forma diferente, fazendo que a linearidade com que vivenciamos passado – presente – futuro perdesse o sentido.
A linguagem dos aliens de A Chegada tem uma estrutura circular, transmitindo mensagens de forma instantânea. Esse contraste contém a sugestão de que nossa linguagem, estruturada de forma linear, dependendo de relações de causalidade para ser compreendida, é que molda a nossa noção de tempo como algo espacialmente enfileirado em um caminho de sentido único.
Esse mesmo tema também aparece na obra de Vilém Flusser. O filósofo tcheco, que morou no Brasil boa parte de sua vida, é um dos mais injustamente desconhecidos pensadores do mundo contemporâneo, por seus insights perturbadores e atualíssimos sobre o design e a era da informática.
Flusser propunha que nossa noção de História como uma sucessão linear de acontecimentos ao longo do tempo é fundamentalmente dependente da estrutura da linguagem escrita. Conforme passamos da era do texto para a era da imagem, porém, a consciência histórica seria transformada.
E isso Flusser disse observando o efeito do vídeo e da fotografia. Imagine o que ele diria ao ver hipertexto, Twitter, Instagram, Snapchat, youtubers, Reddit, enfim, toda a loucura de mídia, big data, economia compartilhada, literatura emergente, e-sports etc, que a internet vem proporcionando.
Eu diria que não estamos chegando perto de ter o superpoder de manipular o tempo como a protagonista de A Chegada. Porém, os reais efeitos dessa transformação ainda nos são desconhecidos. Saberemos quando as novas gerações, já completamente imersas no novo paradigma, começarem a produzir um novo mundo.
Como sempre acontece, os primeiros efeitos dessas transformações que nós sentimos, em geral, desprezamos. Tendemos a ver mais claramente os defeitos, ou, ao menos, a sentir melhor as diferenças que causam incômodos.
Como eu, quando me senti incomodado ao perceber que estava pensando em formato de posts. Ou quando passei a transformar cada acontecimento em texto de blog (desde meu último texto, entrei em contato com fatos como massacres em prisões, posse de Trump, comentários detestáveis sobre a morte de Marisa Letícia, e tudo foi transformado em texto de opinião no mesmo momento em que eu me tornava consciente deles – mesmo sem querer publicar nada).
Isso incomoda, cansa. Parece que eu estou sendo invadido, tomado, apropriado pelos fatos, ao invés de eu me apropriar deles.
Não. Não pelos fatos, pelos meios.
Vilém Flusser falou disso também, sobre a era da informática. A era em que a forma impera, e os conteúdos são apenas aquelas coisas que estão “in forma”, preenchendo as formas. Os fatos continuam tão externos quanto antes. Mas as formas como eu os percebo, e os manipulo, já não me pertencem mais. São mais reais do que eu.
As formas é que me manipulam.
Textos de até mil palavras, formatados para o Huffington Post, com parágrafos curtos, muitas quebras, ideias sucintas e diretas, para virar um título na coluna de blogs e um post no Facebook, para ser compartilhado e comentado, para competir por espaço e visibilidade.
Seja lá o que for que vier a acontecer, qualquer que seja o fato, é assim que será transformado pela minha consciência. Se ela ainda for minha, de fato.
Ainda assim, aqui estou, de novo, escrevendo. Isso porque, no fundo, sou um otimista.
Não sabemos onde isso vai dar. Mas, apesar da desconfiança, do incômodo, do cansaço, ainda prefiro esse movimento rumo a um novo mundo desconhecido.
A outra opção envolve muita recusa, muita abstenção, e muita certeza de que é melhor como está. Repudiar isso, ao menos, ainda me parece eu, consciente, de fato.
Imagem de capa: Shutterstock/Sergey Nivens
TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST
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