Por Amanda Mont’Alvão Veloso
Consequência do incômodo: LEVE
– Oi, tudo bem? Eu quero o número 5, batata média e refrigerante. Mas moça, o sanduíche é sem a carne, tá?
– Sem o queijo?
– Não, moça, sem a carne.
– Você quis dizer sem O MOLHO??
– Nãooo, moça, sem a CARNE.
– Mas… (expressão de horror de quem acaba de furar uma meia Vivarina) Sério????? Você não come carne?
Como assim você não tem celular e não usa Facebook ou Whatsapp? Em que mundo você vive?
Consequência do incômodo: PREOCUPANTE
Ataques pessoais no Facebook entre usuários com opiniões diferentes sobre o impeachment de Dilma Rousseff:
Uma mãe deu um depoimento em uma rede social sobre a maternidade e a descreveu como dolorosa e cansativa. “Quero deixar bem claro que amo meu filho, mas odeio ser mãe”, ela diz em um trecho. Ela recebeu milhares de comentários de reprovação e seu perfil foi denunciado para o Facebook e, em seguida, bloqueado.
Uma campanha d’ O Boticário para o Dia dos Namorados que mostrava casais gays liderou o ranking de queixas em 2015. Segundo o Conar, o comercial foi o que mais incomodou o público naquele ano.
Crianças e adolescentes são hostilizados por causa das cores de suas camisetas.
Consequência do incômodo: GRAVE
Um pastor que crê na “cura gay” ataca a comunidade LGBT na Câmara.
Um ciclista é hostilizado e ameaçado por simplesmente escolher a bicicleta como meio de transporte.
Consequência do incômodo: GRAVÍSSIMA
De um lado, torcedores da Mancha Verde, do Palmeiras. De outro, da Gaviões da Fiel, do Corinthians. Um confronto entre as torcidas organizadas na estação de trem de São Miguel Paulista terminou com um homem morto a bala, três pessoas presas, cabos de madeira, pedaços de ferras, pedras e rojões. O senhor de 60 anos que foi atingido com uma bala no coração sequer participava da briga.
Um universitário transexual foi vítima de um “estupro corretivo” por um taxista. “Eu vou te ensinar a ser mulherzinha”, disse, antes de partir para cima do estudante.
Duas jovens lésbicas foram agredidas por seis homens em Florianópolis (SC). “Se você quer ser homem, vai apanhar como um”, disse um deles.
Uma menina de 11 anos foi apedrejada na cabeça ao deixar um culto de candomblé no Rio de Janeiro. Segundo testemunhas, ela foi vítima de intolerância religiosa por supostos evangélicos. A avó disse que os agressores subiram em um ônibus e fugiram após acertarem a criança. Com a pedrada, ela chegou a desmaiar e perder momentaneamente a memória.
Os episódios citados acima têm em comum uma escolha feita por alguém que não somos nós e uma reação de incômodo diante dela. E tais reações estão ultrapassando quaisquer limites de sensatez e vida em sociedade.
Por que alguém se incomodaria com aquilo que não é da sua vida e que, portanto, não o(a) representa? Qual o motivo de se incomodar com uma escolha individual, subjetiva e que, supostamente, não afeta as demais pessoas?
“Porque afeta nossa própria certeza sobre nossas escolhas”, sentencia ao HuffPost Brasil o psicanalista João Angelo Fantini, organizador e autor do livro Raízes da Intolerância (EdUfscar, 2014) e professor do Departamento de Psicologia da Ufscar.
“Fizemos a escolha certa? Será que o outro não está levando alguma vantagem? Será que ele se esforçou como eu para conseguir o que escolheu?”, completa.
Segundo Fantini, a psicanálise oferece, além das razões históricas, uma fórmula inversa para pensar a intolerância sobre a escolha do outro.
Nosso ódio ao outro não é fruto do fato deste outro ser ‘menos’. Pelo contrário, é sustentado pela crença que este outro possui algum algo a mais. O que afeta é que o outro está nos ‘roubando’ algo que seria nosso por ‘direito’.
Pensando em uma perspectiva social, entre eu e o mundo existem sempre os outros. E nosso convívio em sociedade exige algumas restrições e renúncias, de modo que a coexistência de todos seja possível. E renunciar em um mundo que cultua apenas as experiências prazerosas e rejeita o sofrimento definitivamente não é fácil.
“Viver em sociedade é uma negociação permanente e essa negociação é dura. É árdua em vários sentidos”, afirma o historiador Leandro Karnal na palestra Tolerância Ativa.
A globalização enfraqueceu ou apagou fronteiras e nos vendeu um discurso de igualdade ao mesmo tempo em que impôs convivências. Essa imposição acaba por colocar as diferenças em destaque. E diferenças sempre existiram.
O problema é quando elas são consideradas uma ameaça, e com essa narrativa, temos o motivo para reunirmos nós, os iguais, e segregarmos o outro. É um ideal de vida murado.
“Há uma espécie de modelo de segregação do outro”, explica Fantini. E esse modelo, que espera apenas “pequenos sinais que vão construindo uma forma de estranheza dirigida ao outro”, não se aplica só aos estranhos, como também aos mais próximos.
A animosidade que vemos nas redes sociais é um reflexo dessa estranheza em prática. O mundo virtual é palco de contendas sobre política, vegetarianismo, orientação sexual, vestimentas, meios de transporte, religião, cortes de cabelo, cachorros abandonados ou não… Uma infinidade de temas. Basta escolher em qual briga entrar.
A intolerância é exposta, endossada e fomentada explícita e publicamente, agora com mais canais por onde sair.
Nesse sentido, os linchamentos virtuais representam um duro golpe, pois assinalam a perda “da coisa mais cara ao ser humano: ser reconhecido”, esclarece Fantini.
“Ser um pária, um sujeito malvisto socialmente, equivale a uma forma de morte simbólica muito difícil de superar.”
Um aspecto bastante comum em nossa sociedade é a nossa tendência à polarização, que implica escolher entre um e outro… É uma obrigação implícita de marcamos posição alinhada com o certo de um, ou com o errado do outro.
Fantini explica:
Nossas escolhas são narcísicas e, como todo narcisismo, nos agarramos a ele até o fim: admitir que estava errado, que não avaliou bem uma questão, que confiou em um político que se mostrou desonesto, que se enganou na escolha amorosa… São escolhas muito arraigadas.
“A saída mais fácil é dizer que o outro está errado e não está vendo a realidade. Isso preserva nosso narcisismo e, de quebra, nos associa a outras pessoas – em grupo, o que é uma demanda demasiado humana.”
A tolerância parece simples quando discutida em um grupo formado por semelhantes. Difícil é discutir as prioridades de cada um na reunião de condomínio.
“É fácil ser tolerante com a ideia parecida com a minha. O difícil é ser tolerante com a ideia oposta à minha. É o choque entre polos que não conseguem entender que o outro possa estar correto. E aí, as próprias religiões dão a solução: o primeiro princípio é uma regra áurea, comum a quase todas as religiões, não fazer ao outro o que não quer que seja feito a si”, explica Karnal.
O contraponto à intolerância seria a compaixão, palavra que nos soa familiar enquanto vocabulário, mas definitivamente praticada com menos assiduidade do que deveria.
“Essa regra áurea de Norman Rockwell, que fez um pôster que está na ONU, é a norma básica: colocar-se no lugar do outro e, segundo os budistas e cristãos, ter compaixão. O que significa isso? Compassione, em latim: eu sinto junto. E sentindo junto eu penso o que perturba o outro. Esse é um exercício fascinante. A compaixão a todo momento”, completa o historiador.
TEXTO ORIGINAL DE BRASIL POST
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