Por Diego Iraheta
Eliza, Sara, Shirlei, Mércia.
Elas foram vítimas de homens que usaram sua posição de ex-marido, amante ou ex-namorado para ameaçar, agredir e matar. É contra crimes assim, com orientação de gênero, que o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) está empreendendo uma campanha lançada nesta semana: Senado: Inclua o Feminicídio no Código Penal.
O objetivo é coletar assinaturas favoráveis à Lei do Feminicídio. O projeto de lei 292/2013, de origem no próprio Senado, já foi apreciado pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa. Agora, cabe aos senadores colocarem a matéria na ordem do dia e votar no plenário.
Em entrevista ao Brasil Post, a promotora Nathalie Kiste Malveiro, do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica do MP-SP, explicou a necessidade de um rigor específico na lei para tratar de crimes contra mulheres.
“Não é que a vida da mulher valha mais que a vida dos outros. É que, do ponto de vista social, é mais questionável, é mais negativa a ação daquele que mata a esposa na frente dos filhos do que aquele que mata em briga de bar”, argumentou.
A promotora relatou como a cultura machista da sociedade brasileira afeta julgamentos de homens que mataram namoradas ou esposas. Defendeu por que elas estão sempre em uma situação vulnerável ante eles, em um relacionamento. E destacou que a violência doméstica é um problema que atinge todas as classes sociais.
Brasil Post: Por que incluir no Código Penal a questão do feminicídio? O que justifica tratar de homicídios por recorte de gênero?
Nathalie Kiste Malveiro: Antes de lançarmos essa campanha, encontramos estatísticas mostrando que muitas mulheres sofrem assassinato em razão do gênero. Sete em cada 10 mulheres assassinadas são mortas por marido, ex-marido, namorado, companheiro ou ex. A maioria dessas mortes é dentro da residência. Além de violência doméstica, mulheres sofrem deles violência sexual, mutilação genital e no rosto. Isso demonstra que não é um homicídio simples.
A senhora quer dizer que só houve o assassinato ou esse tipo de lesão porque a vítima era mulher?
Sim, em mutilação no rosto ou genital, é óbvia a intenção [do agressor] de denegrir a imagem daquela mulher ou de comprometer o órgão genital dela. É uma questão de gênero. Como são mulheres de 15 a 29 anos, mortas por companheiros na grande maioria dos casos, dentro de casa, a situação é muito grave. Por isso, o legislador deve olhar para esses casos de forma especial.
Então, o assassinato de mulheres passa a ser tratado como crime hediondo – o fato de a vítima ser mulher se torna um agravante…
Isso. Na legislação, temos atualmente diferentes tratamentos de homicídios. Tem homicídio com meio cruel, com arma de fogo ou veneno, que já é considerado mais grave que o simples. Tem homicídio sem que a vítima tenha possibilidade de defesa. Com essa proposta, o homicídio de mulheres em razão de gênero passa a ser tratado como homicídio qualificado. Os casos válidos para esse entendimento são: violência doméstica, violência sexual, mutilação ou emprego de tortura.
O feminicídio é então mais grave que o assassinato de um homem?
A situação de uma mulher que é agredida até a morte por um marido não é mais grave que a morte em uma briga na mesa de bar? Não é que a vida da mulher valha mais que a vida dos outros. É que, do ponto de vista social, é mais questionável, é mais negativa a ação daquele que mata a esposa na frente dos filhos do que aquele que mata em briga de bar, por exemplo.
Sabemos que é questionável a redução da criminalidade com base apenas no aumento da pena. Mas quando o crime tem uma pena mais grave ou é equiparado a hediondo, alguns dispositivos jurídicos tornam a punição mais rigorosa. As progressões são mais difíceis. O autor do homicídio não terá direito a sair da prisão até cumprir parte significativa da pena.
O próprio julgamento do réu, se acusado por homicídio, pode ser mais rigoroso – no caso de feminicídio ser incluído no Código Penal?
Quando ocorre um homicídio hoje, o crime é julgado pelo júri popular. Quando um caso de morte por violência contra a mulher chega ao Tribunal do Júri, o advogado ainda fala ou sugere legítima defesa da honra. Ele denigre a imagem da vítima de forma a quase torná-la culpada pelo crime que ela sofreu. A vítima é assassinada duas vezes: fisicamente e na memória, na hora do julgamento.
A gente vive numa sociedade patricarcal e muito machista. A defesa constrói tese levantando questões para os jurados: se a mulher era “vagabunda”, se provocava ciúmes no companheiro, se ele foi tomado por uma violenta emoção, decorrente de uma injusta provocação da vítima.
E o júri acolhe esse tipo de argumento?
[O júri] Muitas vezes acolhe porque é formado por pessoas comuns. Muitos são homens e machistas. Eles se identificam com aquele agressor, que normalmente é homem, de bons antecedentes e primário. É esse o perfil do agressor: trabalhador que no fim de semana bebe e extrapola. Aí, em casa, agride esposa e filhos. Mas, na vida social, tem perfil positivo. E os jurados se identificam com esse agressor e com o palavrório todo.
Com essa identificação, a pena imposta pelo júri é afetada?
Sim, porque os jurados acabam encampando a defesa de que ele [réu] foi provocado e que, de forma abrupta, ela [vítima] terminou o relacionamento, por exemplo. E isso causou uma grande humilhação perante os amigos; assim, a vítima acaba saindo culpada do julgamento.
O que nós pretendemos é justamente fazer que esse tipo de circunstância seja analisado de forma objetiva. A lei tem este pressuposto: a mulher, em um relacionamento, tem uma situação de vulnerabilidade em relação ao homem.
Problematizando esse pressuposto: é possível dizer que toda mulher está mais vulnerável em relação ao homem?
A evolução dos direitos das mulheres é muito recente. O direito vai acompanhando a evolução cultural. A mulher começou a votar há 80 anos e a trabalhar fora de caso, há 50. Antes, era completamente dependente do marido.
Mas esse contexto cultural justifica que todas as mulheres sejam tratadas como mais vulneráveis que os homens?
As questões culturais da sociedade vão permeando nossa atuação, nosso papel e desencadeiam em alguns casos – e não na maioria – uma agressão física ou psicológica. Para essas situações, a mulher precisa de uma maior proteção. O que a Lei do Feminicídio considera é que, quando ocorre a agressão, havia ali uma situação de vulnerabilidade.
Os dados de violência doméstica no Brasil apontam que agressões e assassinatos de mulheres ocorrem mais em algum tipo de classe social? Registram-se mais casos na periferia?
A gente tem essa sensação de que ocorrem em níveis financeiros mais baixos e entre pessoas com níveis de instrução mais baixos. O que a gente tem percebido é que as mulheres desses níveis não têm muito a quem recorrer. Então, elas recorrem à polícia. As de nível financeiro mais alto, em vez de recurso criminal, procuram logo um advogado para se preparar. Porém, no grupo de enfrentamento de violência aqui da capital, já atendemos vítimas de todas as classes. Inclusive promotoras agredidas pelo próprio companheiro. O que acontece é que essas mulheres que têm maior formação procuram outras vias de resolução do conflito, uma ajuda mais especializada. Elas não precisam ir à delegacia fazer BO…
E os agressores também são de todas as classes?
Sim, médicos, advogados, professores universitários…
Qual é a relação dessa nova legislação com a Lei Maria da Penha, sancionada há oito anos para aumentar rigor com homens acusados de violência doméstica?
Se a Lei Maria da Penha atende bem os crimes menos graves, como ameaça e lesão corporal, em relação ao crime mais grave – que é o homicídio, o direito ainda vai dando passos. A Maria da Penha é uma lei que pegou; o agressor é processado, condenado e cumpre pena. Agora é o momento de dar um passo adiante. Assim, mulheres que são mortas não vão ficar na vala do crime comum.
Como o abaixo-assinado online lançado nesta semana pode ajudar na aprovação da Lei do Feminicídio?
A ideia é que a pressão popular acelere o trâmite desse projeto no Senado. Já elaboramos uma moção pública e, quando houver um número considerável de assinaturas, devemos fazer uma entrega formal ao Congresso para que o pleito seja atendido.
Imagem de capa: Shutterstock/Ph_Stephan
TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST
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