Vez ou outra se faz necessário relembrar que a paternidade não é exclusiva dos seres que podem gerar um filho. Há muito considerado uma desordem da instituição familiar, a comunidade científica deve esclarecer o desafio que a família apresenta na contemporaneidade com a dissolução de sua constituição normatizadora, isto é, consistida de pai e mãe genitores, e dizer unissonante que o pai real é prescindível, tanto quanto a família tradicional. A psicanálise, desde o início, figura como um discurso que problematiza a cultura e a considera patologicamente atravessada pelo moralismo. Este artigo manifesta que “a ordem da família humana possui fundamentos que escapam à força do macho” (LACAN, 1985/2008), o que é preciso numa sociedade que ainda demonstra centelhas do pensamento patriarcal e conservador dos séculos passados.
Para entender a família como um agrupamento simbólico, é necessário percorrer minimamente seu enredo desde o início. Em referência a Totem e tabu, Freud (1930/2012) coloca a família calcada no amor e na compulsão para o trabalho a partir do momento em que a necessidade de satisfação genital se torna constante, e não mais condicionada a um ciclo de reprodução. O resultado dessa junção auxiliou o homem primevo em seu trabalho de sobrevivência à medida que “o outro indivíduo adquiriu a seus olhos o valor de colaborador, com o qual era útil viver” (p. 61). Para isso, Roudinesco (2003) afirma que os casamentos passam a ligar grupos e famílias entre si com base em sua função simbólica, podendo por isso “ser considerada uma instituição humana duplamente universal uma vez que associa um fato de cultura a um fato da natureza referente a reprodução biológica” (p. 13).
Para abandonar essa dependência exclusivamente biológica, a família adquiriu características de interdição entre seus membros, e a maior interdição no âmbito familiar é o incesto. Sendo assim, diz Roudinesco (2003, p. 11) que a “proibição do incesto é, portanto, tão necessária à criação de uma família quanto a união de um macho com uma fêmea”, sendo, por isso, “ligada a uma função simbólica”. Assim, a família vai além da redução ao fato biológico e instintivo, visto que seu modo de organização depende das leis de transmissão, tornando a família humana uma instituição cultural, e este é o âmago de seu valor simbólico.
É certo que esses dois parágrafos demandam uma interpretação peculiar para que o leitor consiga atingir a lógica psicanalítica para a questão do pai real enquanto figura prescindível. E essa é a missão de todo pesquisador: tornar parágrafos técnicos como esse não só de conhecimento público, mas de entendimento público. É isso que tentaremos.
A função simbólica de uma família vai além da característica do incesto, e é nesse ponto que ingressamos com a prescindível figura dos pais enquanto (a) seres genitores, e (b) seres com diferença de sexo. Adquirir um simbolismo significa que as funções familiares também são simbólicas, fazendo com que tudo o que envolva a família seja uma escolha. Isso está presente na escolha por um(a) parceiro(a), ao invés de casamentos arranjados; na escolha por ter ou não um filho, ao invés da obrigatoriedade de tê-lo como um ticket para a proclamação de uma família; e, tão importante quanto, na escolha pela adoção. É o que a autora Sônia Alberti diz sobre o pai:
Não é somente aquele que gerou, que tem ou não um carro, quer dizer, um falo, mas sobretudo aquele que garante uma relação com o desejo pelo fato de garantir o sujeito simbolicamente. Então, o pai que sustenta o adolescente na cultura lhe atribui um lugar na comunidade dos homens (ALBERTI, 2010, p. 27).
Com isso ela deseja dizer que a função do pai não é ser o portador do sêmen, mas o portador do passe para garantir o filho simbolicamente na cultura. Essa é a figura do pai constantemente negligenciada nos artigos científicos que vinculam paternidade ao sexo, isto é, ao pênis. Um equívoco que produz inúmeros outros portadores de discursos excludentes, que restringe o exercício da paternidade à genitores que, diversas vezes, não desejam ser pais. Obviamente não podemos reduzir uma teoria que levou décadas para se lapidar a um texto como esse, então abaixo constará as principais referências que devem ser lidas para o aprofundamento de seus conhecimentos.
FREUD, S. (1912-1914). Totem e Tabu e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza, Obras completas, São Paulo: Companhia das Letras, 2015. v. 11, p. 13-244.
LACAN, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
ROUDINESCO, E. A família em desordem. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
Extra:
ALBERTI, S. O adolescente e o Outro. 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.