Por Juliana Baeta
O Conselho Federal de Psicologia entende a homossexualidade como uma variação normal e positiva da orientação sexual humana. Desde 1974, a Associação Americana de Psicologia já se opunha ao estigma e a discriminação com base na orientação sexual. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde tirou a homossexualidade de seu rol de doenças ou transtornos. É por isso, também, que o termo “homossexualismo” foi extinto – já que a terminação ‘ismo’ sugere doença – para dar lugar ao termo “homossexualidade”.
No Brasil, desde 1984, a Associação Brasileira de Psiquiatria considera a homossexualidade como algo não prejudicial à sociedade. No ano seguinte, o Conselho Federal de Psicologia assinou embaixo e deixou de considerar a homossexualidade um desvio sexual e, em 1999, declarou que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio, nem perversão, e que os psicólogos não poderiam colaborar com eventos e serviços que proponham tratamento ou cura da homossexualidade.
Mas por que, anos depois, algumas pessoas ainda pregam que é possível se realizar a chamada “cura gay”? A psicóloga e psicanalista Paula de Paula (PP), que também já atuou como conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, explica, em entrevista ao portal O TEMPO
OT: É possível realizar a chamada “cura gay”?
PP: Ainda existem psicólogos que são pautados não pela ciência, mas por crenças religiosas. Há uma heteronormatividade de que o homem se constitui e se realiza pela biologia, mas o ser humano não se constitui só por isso.
A anatomia não é o destino do homem como sendo normal. E além do ponto de vista dessa crença biológica, há também a crença religiosa que fala que a mulher e o homem se completam. São mitos que ainda estão muito arraigados na cabeça das pessoas.
Mas a ciência já mostrou que o ser humano é muito mais do que biologia, e que a sexualidade não está pautada por essas questões da natureza, mas por questões de identificação, de constituição de cultura.
Há pessoas que desviam dessa curva normal da média, da estatística, e isso nos liberta um pouco de ficar patrulhando as pessoas, de querer curá-las a partir de um padrão particular. Porque quando eu analiso o outro como anormal ou doente, eu estou tomando um padrão de saúde e de normalidade que é meu, e isso é pretensão.
É pretensão dizer para o outro o que é bom pra ele, ou o que o faz feliz. Todo choque vem de um certo preconceito a partir de crenças que não são científicas.
OT: Para além do mito da “cura gay”, como é feito o tratamento psicológico para homossexuais?
PP: Se uma pessoa sofre por que tem uma sexualidade que desvia da heteronormatividade e se ela quer tratar isso, nenhum psicólogo deixará de atender essa pessoa. Não para transformá-la em outra pessoa, mas para ajudá-la a conhecer a pessoa que ela é.
O ser humano não nasce e morre do mesmo jeito. Ele é mutável a medida que está perseguindo o conhecimento.
Não é função de um profissional de saúde mental pré-conceber o que é bom para o outro. O que ele faz é oferecer o seu serviço para quem quiser encontrar uma maneira singular de se adaptar ao mundo, de lidar com o sofrimento.
Todo psicólogo deveria se recolher à humildade de não apontar o que é bom ou saudável para o outro e ajudá-lo a se entender. Para isso ele tem que abrir mão de suas crenças e convicções pessoais, porque se não será um tratamento tendencioso.
A pessoa que está fazendo isso ainda se dá ao direito de dizer que está fazendo pelo bem do outro, quando na verdade, é para o seu próprio bem. Isso é o que chamamos de narcisismo. Ela acha que tem a cura para o outro, mas tem que se recolher a sua insignificância como ser humano e não ser prepotente a ponto de achar que sabe o que o bom para outra pessoa.
No tratamento, é preciso analisar como o paciente se organizou no mundo a partir de suas influências. Por que não ser feliz descobrindo os motivos pelos quais ele se constituiu dessa forma? Se for uma questão de aceitar, se a pessoa sofre por estar em uma condição diferente, ela sofre porque ela mesma está julgando aquilo como um crime, uma doença, um pecado. Talvez ela mesma tenha que abrir mão desses preconceitos para ser feliz.
OT: E a homofobia, tem cura?
PP: Na psicologia há uma limitação na ciência profissional que é o desejo do outro. Se o outro está firmemente convicto de que ele tem a verdade, nada pode ser feito. A pessoa, para mudar, tem que vacilar em uma crença a partir de um sofrimento. A partir daí é que ela vai procurar ajuda. Se ela tem a convicção de que precisa mudar para deixar de sofrer, já é um começo.
OT: É verdade que homofóbicos convictos são inseguros a respeito da própria sexualidade?
PP: O problema é que as pessoas, às vezes, estão pautadas por uma educação moral e religiosa, mas não conseguem viver dentro desses padrões, então elas sofrem.
Às vezes, elas mesmas não esperavam que elas pudessem ser um desviante. Você precisa descobrir porque se tornou assim e saber que as várias maneiras de se viver a sexualidade não implicam em ser um doente. Você não precisa ser igual ao outro para ser feliz.
Estamos em uma luta por direitos adquiridos que, agora, algumas pessoas querem revogá-los, desrespeitando o ser diferente, e isso é um absurdo. As pessoas que querem mudar isso estão absolutamente convictas, mas a gente precisa escutar as duas partes para dar o direito das pessoas escolherem o caminho da felicidade a partir do conhecimento.
Os seres humanos não têm garantida a sua orientação sexual. Para ter essa garantia é preciso que você tenha crenças, mas quando um ser humano está custando para segurar a sua crença de que a heteronormatividade, a heterossexualidade é o correto, e quando ela vê outras formas de sexualidade se espalhando, ela fica abalada. Mas quem está convicto em ser hétero não se incomoda em ver as outras pessoas serem felizes de outra forma.
As pessoas homofóbicas morrem de medo dos outros estarem gozando mais do que elas, elas tem inveja. Mas se você está certo de sua orientação sexual, pra quê se incomodar com o outro que escolhe diferente?
Você pode até ter dó do outro, dentro de suas convicções, mas você não vai querer lutar por uma lei que impeça ele de viver aquilo, você não vai ficar patrulhando as publicidades, você não vai perder o seu tempo com isso.
É a mesma coisa de terroristas do estado islâmico quererem matar ocidentais porque não têm as mesmas crenças. Mas os budistas que vivem ali, estão lá tão ou mais convictos de suas crenças e não querem matar ninguém que pensa diferente, nem impôr a eles as suas crenças. Eles apenas as vivem.
E se algumas pessoas ainda usam o nome de Deus para justificar essas atitudes, é porque cada um interpreta a bíblia do jeito que quer, ou Freud do jeito que quer, ou o Alcorão. Mas o Alcorão não fala para matar ocidentais. Da mesma forma que a Bíblia, pelo contrário, mostra Jesus vivendo ao lado de prostitutas e de homossexuais, sem julgamentos.
TEXTO ORIGINAL DE O TEMPO
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