Por Jarid Arraes
Mais de meio século não foi suficiente para garantir direitos trabalhistas básicos para a categoria de psicólogos, tampouco para resolver questões mais complexas que envolvem a atuação profissional no Brasil.
No Ocidente, a Psicologia pode ser considerada uma ciência relativamente nova; por isso, sua trajetória é marcada por uma multiplicidade de perspectivas e vozes, que lhe dão um caráter de constante embate filosófico e político. Se por um lado há diversas vertentes surgindo e tomando corpo, há carência de uma formação identitária consistente e unificada, que seja capaz de representar os profissionais da Psicologia de forma satisfatória. Tal consistência seria necessária para assegurar à categoria empoderamento e coerência para lutarem por seus direitos, mas a realidade é outra: a categoria vive um contexto de desrespeito e invasão de fronteiras, onde não há delimitação no campo das políticas públicas. Acontece que a criação de limites entre as funções dos psicólogos, ou mesmo de profissionais de outras áreas, é bastante controversa, como se evidencia pelo debate em torno do Ato Médico.
Se essa já é uma questão delicada, o panorama dos direitos trabalhistas é ainda pior. Atualmente, estão em curso as reivindicações pela redução da carga horária dos psicólogos para 30 horas semanais. O PL 3338/2008 está há cinco anos tramitando no Congresso Nacional; enquanto isso, milhares de psicólogas e psicólogos que trabalham no SUAS têm feito queixas incisivas por se sentirem sobrecarregados e prejudicados diante de outros profissionais, como os assistentes sociais. A remuneração é baixa e muitas vezes causa estranhamento imediato, pois a categoria também não conseguiu estabelecer ainda o seu piso salarial. Por esses fatores, os profissionais muitas vezes se sentem desmotivados e só permanecem em seus empregos no campo das políticas públicas enquanto não conseguem um trabalho melhor e que pague mais. As consequências disso são impactantes, pois a população é a primeira a sentir os aspectos negativos dessas mudanças.
É irônico o quanto esses fatos podem gerar violações de Direitos Humanos, premissa de defesa prioritária para a Psicologia: por causa da rotatividade e das mudanças constantes de profissionais, os usuários precisam contar e recontar suas histórias diversas vezes. O que já é incômodo para muita gente pode se tornar um quadro de terror, como é o caso de crianças que sofreram abuso sexual e são obrigadas a repetirem suas histórias traumáticas várias vezes, passando por um processo de revitimização doloroso. Em outros casos, os pacientes ficam à mercê de laudos psicológicos que nunca chegam, pois certos psicólogos se sentem incapacitados ou explorados pelo sistema judiciário e se recusam ou têm dificuldade para produzir laudos. Além de diversos casos e situações similares, há também a impossibilidade de aprofundamento na área de atuação da Psicologia, havendo pouco investimento na própria capacitação e, como resultado, um enfraquecimento das políticas públicas e das demandas éticas mais urgentes.
Para Marcus Cézar de Borba, coordenador da sub-sede do CRP 11, essa é uma demanda que não se caracteriza como pura procura por dinheiro: “A busca de melhora nas condições de trabalho e dos salários em nada tem a ver com um corporativismo. Tem sim uma preocupação com a qualidade de vida dos profissionais de psicologia, mas tem também o reconhecimento de que isso vai atingir diretamente a população, que vai poder usufruir de serviços cada vez melhores e profissionais mais capacitados para a atuação”. Sob esse ótica, os sindicatos precisam ser reintegrados e reconhecidos pela categoria como instituições fundamentais para a sociedade.
Além das questões trabalhistas, há muito o que ser discutido sobre Direitos Humanos, minorias políticas e representatividade na Psicologia. Até 2009, o Brasil havia registrado mais de 230 mil psicólogos, sendo a maioria das regiões sudeste e sul do país. A classe é delimitada a um grupo específico em características políticas e a ideia de “neutralidade”, nesse caso, serve apenas para afirmar e manter o status quo – ou seja, a incapacidade de ultrapassar os limites de classe, gênero, cor e outras possíveis vulnerabilidades sociais. Entidades como a Anpsinep reclamam do racismo institucional existente na Psicologia, enquanto estudantes e profissionais questionam os métodos e a eficiência das investigações realizadas pelos Conselhos. Há muitas cobranças de indivíduos insatisfeitos para que o CFP demonstre mais assertividade na hora de coibir e prevenir deslizes éticos.
“No CRP 11, uma grande preocupação da presidência, e de nós também na sub-sede, é o de ampliar as práticas de fiscalização e orientação. De fato, vemos que existe uma grande necessidade de ampliar essa atividade, dado a grande demanda que encontramos no estado. Porém, é fundamental reconhecer que um dos principais papéis do conselho é orientar os profissionais para que tenham uma prática ética e coerente com a profissão. Por isso, um dos nossos compromissos é estar presente em ambientes de atuação: clínicas, escolas, empresas, CAPS, PSF, CRAS e afins para ajudar os psicólogos a melhorar suas práticas, muitas vezes, falhas são produzidas por falta de informação e orientação. Quando alguém produz uma falta ética, isso atinge a classe e a população, e isso deve ser reconhecido e dado as devidas repreensões. Existe um protocolo do conselho que deve ser seguido, e é papel da Comissão de Fiscalização e da Comissão de Ética apurar esses casos. Acredito que ainda temos muitas burocracias que atrapalham o processo, e acabam retardando a atuação mais efetivas, porém, estamos estudando todas essas questões para tornar o processo cada vez mais rápido”, afirma Marcus Cézar.
A fala do coordenador faz sentido e, embora faltem estatísticas oficiais a respeito de números de profissionais com práticas antiéticas, o consenso é que as atividades devem ser investigadas e que precisa haver, no mínimo, algum questionamento. Jonathas Salathiel, conselheiro do CRP de São Paulo, relatou a inexistência de processos éticos sobre crimes como racismo. Em sua fala no evento “Relações Raciais: Referências Técnicas para a prática da(o) Psicóloga(o)”, que aconteceu no dia 15 de fevereiro de 2014, Jonathas questionou essa ausência de processos que, para ele, certamente não acontece por ausência de racismo na profissão.
Apesar de ser possível delegar responsabilidade tanto aos Conselhos quanto aos psicólogos, o que prejudica os clientes, pacientes e usuários é, em primeiro lugar, fruto das agruras enfrentadas pela Psicologia brasileira. A Psicologia demonstra ter sido severamente preterida na história e a mobilização da categoria simplesmente não acontece. Se é difícil reunir profissionais para lutar por questões de interesse direto, como salários justos, o que dizer de demandas sociais mais abrangentes, mas que encontram grande resistência na população brasileira? Segundo o coordenador Marcus Cézar, esses fatos são sintomáticos: “Infelizmente, como já foi muito debatido por grandes historiadores da psicologia, como, por exemplo, Antonio Gomes Penna e Luis Claudio Figueiredo, um dos grandes problemas epistemológicos e, por conseguinte, políticos da psicologia brasileira são as posições diversas e às vezes até mesmo antagônicas que o discurso psicológico produz. Porém, mais do que reconhecer diferenças de posições teóricas – que outras áreas das ciências humanas também têm, como é o caso da sociologia, da filosofia ou da antropologia -, a integração dos psicólogos de diversas abordagens em prol da profissão é fundamental para a ampliação da psicologia e sua repercussão para a sociedade”.
Há quem esteja disposto a trabalhar pela transformação da realidade, apesar da carência de engajamento político e unificação. Marcus Cézar propõe alternativas: “Eu acredito muito na proposta das micropolíticas. Nesse aspecto, me interesso mais pelas construções comunitárias anarquistas do que nos discursos de direita ou esquerda. Por isso, sou a favor da organização de micro-comunidades, pequenas associações e grupos que possam reconhecer suas demandas e criar ações conjuntas para melhorar sua atuação. Ainda somos uma classe muito solitária e, ao se formarem, os profissionais acabam se isolando muito. Acho os psicólogos muito pouco unidos em relação a todas as formas de práticas e não só quanto à questão dos direitos humanos. Acredito que precisamos nos integrar mais, em pequenos grupos e construir metodologias interessantes e lutas que estejam coerentes com nossas questões mais integradas ao cotidiano”. O coordenador propõe não só mais encontros e congressos, mas também reuniões e debates onde todos tenham liberdade para falar e ouvir.
A chamada parte por um ajuntamento politizado e, quem sabe, com o devido reconhecimento comunitário, possa abranger também os Direitos Humanos em suas nuances diversas, tais como o combate ao racismo, à homofobia e ao sexismo. Todas essas pautas merecem prioridade muito além de discursos e eventos acadêmicos.
TEXTO ORIGINAL DE REVISTA FÓRUM
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