É este dom que herdamos e do qual precisamos apropriar-nos, o que nos humaniza, o que nos civiliza, o que nos possibilita ser cidadãos pelos laços de discurso que estabelecemos com os outros. Isto é o que está capenga, o que está mancando cada vez mais nos dias de hoje, onde a queixa que escutamos de pais e de filhos, de professores e alunos é a incapacidade de conversar entre eles. Um filho não só está feito de carne, também de palavras e de letras, nesse sentido a criança é primeiramente um objeto caído do corpo materno, é também um sujeito por vir. Proliferam os objetos com os quais as pessoas se ocupam e se satisfazem em detrimento das relações com amigos, colegas de profissão, parentes, e outros.
Não podemos negar que este é um processo que vemos acelerar-se, nas grandes cidades principalmente, fomentando o individualismo próprio de nossa época. As famílias hoje estão constituídas com diferentes personagens em relação às famílias de 50 anos atrás, porém, há algo estrutural que se mantém, lugares e funções que a língua que falamos cria. Pai, mãe, filhos, irmãos, continuam a ser os lugares nos quais os humanos nos alocamos segundo seja o nosso dizer. Este grupo reduzido que compõe a família moderna mostra uma estrutura profundamente complexa condicionada por fatores culturais. O caráter que especifica a ordem humana é a subversão do instinto a partir da qual surgem as formas fundamentais da cultura que são plenas de infinitas variantes.
Hoje a ciência tem multiplicado as mães e os pais. Temos a mãe que aporta o ventre, a mãe gestante, uterina, ginecológica ou portadora. A mulher que aporta os óvulos será a mãe genética ou biológica. Temos também a mãe social ou de criação ou do amor em casos de adoção, mais nada disto diz do desejo de um filho. Nós humanos nascemos numa família – quando desejados – que nos transmite a língua que falamos, chamada de língua materna, quer dizer que em primeiro lugar herdamos a língua que nos acolhe no mundo. Portanto, nascemos à grande família humana quando falamos, sendo, então, a língua a morada do homem, parafraseando ao poeta Hölderling. Para o discurso da psicanálise que inaugura Lacan, o inconsciente está estruturado como uma linguagem.
Ou seja que os sintomas que produzimos são a manifestação do nosso dizer, da nossa maneira de inserir-nos na língua que falamos, são a conseqüência do discurso que praticamos sem saber, o discurso do inconsciente. E quando digo discurso quero assinalar que o discurso do inconsciente é o discurso do Amo que Lacan toma em relação à dialética do Amo (1) e do Escravo que Hegel desenvolve no capítulo 4 (A certeza de si mesmo) da “Fenomenologia do Espírito”. Este discurso situa ao homem numa luta a morte pelo reconhecimento do Outro. Nesta luta por puro prestigio quem se submete para não morrer é o Escravo reconhecendo no Outro um Amo. Isto o anula em seu desejo e o transforma num objeto, numa coisa a serviço do Amo, o “cosifica”. Porém, o Amo se encontra num paradoxo: é reconhecido como Amo por alguém a quem ele não considera. O Amo, por não poder reconhecer ao Outro que o reconhece (o Escravo), encontra-se num beco sem saída.
O Escravo, pelo contrário, reconhece desde o príncipio ao Outro (o Amo). Será suficiente impor-se a ele, fazer-se reconhecer por ele para que se estabeleça o reconhecimento mútuo e recíproco, que só pode realizar e satisfazer ao homem plena e definitivamente, segundo Hegel. Com este discurso Hegel lhe atribui ao Amo antigo o usufruto ou gozo do trabalho do Escravo o que em Marx será chamado de mais-valia. O que Lacan modifica tem a ver com as conseqüências do gozo que lhe atribui ao Escravo que ocupa esse lugar dialético onde se “cosifica”. Nesse processo dialético o saber lhe corresponde ao Escravo e está articulado (o saber) com o gozo do Outro. Este Outro, que não existe, é o produto da articulação lógica entre os significantes que lhe dão existência como campo da linguagem. Nesse campo do Outro, campo da linguagem no qual nos inscrevemos os humanos mostramos a nossa debilidade que é proporcional à sede de sentido. Temos necessidade de sentido.
O que nos mostra a filosofia desde os diálogos de Platão é o roubo, o rapto, a subtração do saber da escravidão pela operação do Amo que consistia em fazer um saber transmissível do escravo ao amo, até chegar a uma empresa maior em beneficio do amo, como pretendia Hegel com o que ele chamava de Saber Absoluto. A este respeito, a idéia do absoluto ou imaginária do todo, tal qual é proporcionada pelo corpo, é algo que se sustém na boa forma da satisfação e constitui no limite uma forma esférica. Esta mesma forma esférica nos dá a idéia do encerro e da clausura da satisfação procurada no absoluto ou no todo. A totalidade paralisante onde nada mais se ambiciona. É contra isto que nós psicanalistas lutamos, contra a paralisia que produz a falta de um desejo. Por este repasse de saber do escravo o amo moderno não tem mais a estrutura do antigo. O amo moderno não é nada mais que saber, ou seja burocracia.
O amo moderno para Lacan é o capitalista que frustra de seu saber ao escravo voltando-o inútil. Mais o que se dá ao escravo em troca, numa espécie de subversão, é outra coisa, um saber de amo. Por isto é que historicamente não temos feito outra coisa mais que mudar de amo. Porém o que fica no amo moderno é a essência do amo, ou seja, não sabe o que quer. É isto o que constitui a verdadeira essência do discurso do Amo pelo qual para Lacan este é o discurso do inconsciente onde o sujeito se perde, não sabe o que quer, não sabe de seu desejo. O escravo sabe de muitas coisas, porém o que sabe mais ainda é que ele quer ao amo, mesmo que este não o saiba – o que costuma acontecer – de outro modo não seria amo. O escravo o sabe e esta é sua função como escravo. Por isso é que a coisa funciona faz muito tempo. Na relação entre o amo moderno e o escravo moderno o que substitui agora ao escravo antigo é ele mesmo como produto, tão consumível como os outros; como se diz agora temos o material humano formando parte da sociedade de consumo. Estamos alienados agora e antigamente por sermos falantes. Alienados num discurso que nos condiciona sem que o saibamos.
Este discurso que herdamos da família humana é o que praticamos no dia a dia, com o qual vemos o mundo e dele fazemos imagens plenas de sentidos. Uma ficção rígida onde, com as pretendidas revoluções sociais, só conseguimos trocar os nomes dos amos para manter um goze obscuro, um caminho à morte que não é outra coisa mais que o que chamamos de “gozo”, tendência a voltar ao inanimado que se faz presente numa experiência de discurso como a prática analítica. É nesta experiência onde podemos tomar em conta o estatuto do discurso. Estatuto também no sentido jurídico do termo, posto que é no direito onde nos apercebemos de que modo o discurso estrutura o mundo real. Num certo momento da humanidade a medicina nasce quando alguém assumiu a dor do outro e se ofereceu para aliviá-la. Nesta época a medicina opera cada vez mais de forma veterinária tratando somente as doenças e os corpos, sem escutar aos doentes.
Com a psicanálise se abre outro campo de tratamento onde os remédios cedem seu lugar à palavra. Uma análise é uma prática onde propomos aos pacientes uma revisão do discurso do inconsciente, da revisão do discurso que nos faz seres falantes, para encontrar-nos com outro discurso que nos permita colocar em curso o desejo de saber. É esta prática que se constitui no miolo da experiência analítica quando se pede ao paciente que abandone toda referencia mais além das quatro paredes que lhe rodeiam e produza palavras, significantes, que constituem a associação livre mediante o qual outorgamos um saber não sabido por esse que nos fala e colocamos em jogo que esse saber não sabido é o que trabalha verdadeiramente. Mais esta via pode levar-nos ainda a uma acumulação de saber e construirmos com ela uma pequena enciclopédia sobre o que nos afeta. É aqui o momento no qual uma vez mais o analista é convocado para com seu ato recolocar agora um outro tipo de saber articulado à verdade como enígma. Um saber em tanto verdade é propriamente o que deve ser a estrutura do que chamamos a interpretação.
Um saber complexo, um saber do nosso complexo de Édipo, um saber construído sobre a forma singular de inserir-nos na língua, lugar onde praticamos o incesto e o desejo de morte inconscientes, um saber sobre a nossa verdade singular que nos permita orientar-nos nos trilhos do nosso desejo. O que eu disse no começo sobre a criança – que era um objeto caído do corpo materno e de sua condição de sujeito por vir -, e o que estive desenvolvendo nestes breves minutos me permite situar agora à criatura humana como alguém que morando primeiramente na moradia do desejo do outro, precisa alojar-se em seu desejo o qual implica: passar de ser habitada pela linguagem a habitar nela fazendo laços de discurso. Como disse Lacan: …o inconsciente é o discurso do outro. Este discurso do outro não é o discurso do outro em abstrato, do meu correspondente, nem sequer simplesmente do meu escravo: é o discurso do circuito no qual estou integrado. Sou um entre seus elos. É o discurso do meu pai, por exemplo, em tanto que meu pai há cometido faltas que estou absolutamente condenado a reproduzir: o que chamam super eu.
Estou condenado a reproduzi-las porque é preciso que retome o discurso que ele me legou, não simplesmente porque sou seu filho, senão porque a corrente do discurso não é coisa que alguém possa deter, e eu estou precisamente encarregado de transmiti-lo na sua forma aberrante a algum outro. Tenho que colocar a algum outro o problema de uma situação vital com a qual muito possivelmente ele vai bater de frente, de sorte tal que este discurso forma um pequeno circuito no qual ficam presos toda uma família, toda uma camarilha, todo um bando, toda uma nação ou a metade do globo. Forma circular de uma palavra que está justo no limite do sentido e do sem sentido, que é problemática.
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