Por Amanda Mont’Alvão Veloso
Certa vez, fui preparar um almoço e pensei ter adquirido uma inusitada lição de vida e de perspectiva plácido-otimista ao despejar umas batatas sorridentes e redondas numa frigideira com óleo. Veja bem, aquela gordura estava hiperbolicamente quente, mas isso não impedia aqueles pedaços de amido amarelado de sorrirem e dançarem em volta do próprio destino trágico. Você até pode se queimar e sofrer as esturricadas da vida, mas é preciso ter força, raça, grana e, acima de tudo, sorriso. Joga peteca? Então, não a deixe cair. Porque desânimo é coisa de fracote, e a felicidade é um dever de casa cotidiano resolvido com dificuldade por toda a população global.
Não basta o parabéns pra você desejar UMA felicidade: ele desperta em você a expectativa de MUITAS felicidades. Assim, várias, coletivas, plurais, para quando uma acabar, você ter condições de repô-la com outra e jamais ficar sem. A felicidade, já discutida pela filosofia antes mesmo de Cristo, tornou-se direito do homem em 1787, com a Constituição dos Estados Unidos, e caminha, no século 21, de mãos dadas com a OBRIGAÇÃO, especialmente propagada após a Revolução Francesa. A gota de orvalho, quem diria, se tornou uma penosa imposição que classifica os seres humanos em vencedores e fracassados, ignorando as nuances dessa estrada altamente customizável e imprevisível chamada VIDA. “No século 21, parece que há um empuxo radical para que sempre, e em todo o momento, o sujeito tenha que se mostrar feliz”, denuncia Claudio César Montoto, psicanalista e professor do Curso de Especialização em Semiótica Psicanalítica da PUC-SP.
Mostrar-se feliz, de fato, é imperativo tanto presencialmente quanto nas fotos do Instagram ou nos posts nas redes, fazendo com que real e virtual se embaralhem. Esbanjar felicidade online e off-line é uma lei. “A característica desta contemporaneidade pode ser estudada a partir das redes sociais, como por exemplo o Facebook, onde fica claro que o imaginário que é a rede é tomado como o real, como a vida. Até a pornografia está funcionando, para o sujeito contemporâneo, como um modelo a ser atingido”, completa Montoto.
“A obrigação vem de quase todo o mundo. A sua família e seus amigos querem te ver sorrindo e cheia de vida 24 horas por dia. Isso porque as pessoas que se importam conosco ficam aliviadas em ver alguém que ama feliz. A questão é que elas não percebem que essa cobrança pode te deixar ainda mais infeliz”, lamenta a jornalista Fabiana Schiavon, 36 anos.
A psicanalista e diretora Geral da CLIPP (Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise) Carmen Silvia Cervelatti lembra que esse imperativo de felicidade é determinado pelo discurso capitalista, na medida em que incessantemente oferece objetos e a satisfação que seu consumo gera é mais fugaz a cada dia. “Isso favorece a ilusão de que ter aquilo que, supostamente, todos poderiam ter, é sinônimo de felicidade. Porém, constata-se que o ‘todos iguais’ no gozo conduz a um consumo desenfreado e a patologias bastante específicas, como as compulsões.”
Essa pressão pela felicidade automaticamente exclui o sofrimento, a decepção, a limitação e o conflito, condições inseparáveis do ser humano. Onde, nesse pacote de bondades, entraria a tristeza? Simplesmente não entra, é reprimida, já que ela é tratada como depressão e, portanto, para ser medicada, basta um passo.
É grande a tentação para culparmos o Voltaire e seu paraíso terrestre, o supermercado de gente feliz, a batata que sorri, a gelatina com bocona, as propagandas de perfume, o décimo terceiro salário, as pastas de dente tão revolucionárias que até fazem canal. Tomem aqui essa pílula de felicidade, acessível e fácil. Porém, com choro ou não, o papo real é que não vamos atingi-la. Simplesmente não vamos. “O mal-estar é inerente à civilização”, Carmen recorda, citando Freud.
Aí está o problema: essa pressão pela felicidade automaticamente exclui o sofrimento, a decepção, a limitação e o conflito, condições inseparáveis do ser humano. Onde, nesse pacote de bondades, entraria a tristeza? Simplesmente não entra, é reprimida, já que ela é tratada como depressão e, portanto, para ser medicada, basta um passo. “A obrigação de simular uma felicidade constante é uma lei dos nossos dias. Mas esse fazer de conta não soluciona nada; pelo contrário, piora, porque retorna, como nas doenças somáticas e nos acidentes cotidianos”, alerta Montoto. Não à toa, ansiedade, depressão, fobias e compulsões aparecem, fazendo com que a busca mandatória pela tal felicidade seja, perversamente, um caminho para a infelicidade. E não podemos esquecer a toxicomania, utilizada para se chegar ao êxtase.
Quis fazer e ser tantas coisas ao mesmo tempo que acabei dando uma travada total, o que acabou me levando para o hospital.
E o que nos levaria a cair nesse discurso? Possivelmente, a crença de que ser feliz seja uma conquista plenamente acessível – só depende de você fazer tudo certinho. Esse discurso, tão presente no capitalismo, gera uma infinidade de “receitas”, o que nos leva a renunciar ao nosso próprio desejo e, perguntar, ao outro, o que devemos fazer. Se esse outro tem a resposta, essa tal felicidade fica ainda mais próxima. “O mercado, em termos gerais, nos aponta que tipo de alimentos devemos ingerir, que corpo devemos ter, a lista de requisitos para enlouquecer nosso parceiro na cama etc”, exemplifica Montoto.
Tentar seguir modelos de felicidade acabou detonando um surto na estudante paulistana M.M., de 21 anos. Ela ficou 11 dias internada e foi diagnosticada com depressão, que hoje trata com homeopatia, atendimento psiquiátrico e duas sessões semanais de análise. “Eu tentei fazer tantas coisas ao mesmo tempo, seguir tantos exemplos. Tenho uma tia que é um grande exemplo pra mim de pessoa feliz. Ela faz teatro, fez Ciências Sociais, assim como eu tava fazendo, e eu tentei trazer isso pra mim. Era um ritmo que eu não aguentava. Quis fazer e ser tantas coisas ao mesmo tempo que acabei dando uma travada total, o que acabou me levando para o hospital.”
Após o surto, M. trancou o curso de Ciências Sociais na USP (Universidade de São Paulo) e foi trabalhar em um shopping da zona oeste da capital. A decisão foi criticada, e ela mais uma vez se sentiu pressionada a ser feliz a qualquer custo. “Eu consegui me reerguer com muita ajuda da terapia, e só consegui essa reviravolta na minha vida com coisas que não foram muito bem aceitas. Eu trancar a melhor faculdade do Brasil e virar operadora de caixa fez com que dissessem ‘você está fazendo tudo errado’.”
Se a felicidade é uma obrigação, ela é uma ordem do superego, então perde qualquer possibilidade de ser espontânea.
Paradoxalmente, o deprimido é aquele que recusa e não se deixa enganar por essa promessa de felicidade. A designer M.B., 29 anos, de São Paulo, precisou se enxergar deprimida para perceber as cobranças que fazia de si mesma para ser feliz, especialmente depois de ter um sonho realizado: ser pedida em casamento. Como assim, ela, que vivia sorrindo para tudo, deprimida? O alerta só chegou quando buscou ajuda com um psiquiatra ortomolecular.
“Eu vivo dando risada, mas no fundo, eu não estou. Eu não sei explicar se é porque eu quero agradar aos outros. A tristeza vem quando eu estou sozinha, que aí não tem a obrigação moral de me mostrar bem. Isso começa a agravar outros lados da vida, como eu ficar muito doente. Eu vivo em médico, sou extremamente hipocondríaca. Sinto que é um reflexo dessa cobrança gigantesca. Eu quero o meio termo, não a euforia extrema e a tristeza extrema”, afirma.
Desencana que é melhor
O francês Jacques Lacan certa vez deu uma dica polêmica: não procure a felicidade, essa busca vai te trazer mal. Calma, tem um motivo, aqui explicado pelo psicanalista Montoto: a procura pela dita-cuja como se ela fosse um lugar de chegada sempre será fadada ao fracasso porque se trata de momentos de prazer, e não de um estado permanente. “Se realmente pudesse ser um estado permanente seria, simplesmente, um tédio insuportável. O que dá tempero à vida são a flutuação, os conflitos e os desafios”, ele frisa.
Ainda assim, as pessoas que procuram os psicanalistas querem ser mais felizes, observa Carmen. “Seria uma impostura prometer a felicidade, já que uma análise deve conduzir um sujeito a ficar mais livre do peso dos ideais, a reinventar sua vida e a se arranjar de uma nova maneira com o mal-estar.”
A jornalista Fabiana foi buscar ajuda para lidar com o mal-estar. “Uma vez senti que a tristeza tinha saído do controle. Procurei uma psicóloga, com quem me consulto até hoje, e na época também tomei remédios com a orientação de um psiquiatra. É importante ter ajuda de fora. É fácil acreditar que não é preciso ser feliz, ter outras convicções, mas nem todos somos fortes para nos manter em equilíbrio o tempo todo, e isso não deve ser um problema. Sou feliz por ter aprendido muito com essa fase. Quem não sofre, também não sabe o que é não sofrer ou estar em paz. A ideia é entender que a vida é uma grande experiência.”
M., que trancou a faculdade, está respeitando o próprio tempo e a própria noção de felicidade, tentando não dar ouvidos à pressão para que ela se reerga logo e seja feliz. “Você se sente mal por estar mal. É uma sensação muito ruim. As pessoas encaram como ‘é muito fácil você sair daí e se reerguer’ num momento em que realmente não é, porque não depende tanto de você querer. Os seus quereres estão muito confusos”, ela conclui.
Seja nos tempos anteriores a Cristo, seja no século 21, não há nada de errado em desejar ser feliz. Desde que isso não seja uma imposição, como frisa a psicanalista Maria Rita Kehl. “Se a felicidade é uma obrigação, ela é uma ordem do superego, então perde qualquer possibilidade de ser espontânea.”
Eu já vinha questionando a legitimidade da lição de vida aprendida com a batata que sorri na gordura quente, e a rotina prática – adoro cozinhar – acabou ajudando a derrubar essa auto-ajuda-carboidrática. Percebi que cortar e fritar minhas próprias batatas, tortinhas mesmo, imperfeitas com seus pedaços de casca e sem reações de sorriso, tava me rendendo uma baita experiência gastronômica e de alegria subjetiva. Vai ver, essas foram preciosas horinhas de descuido.
TEXTO ORIGINAL DE VICE
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