Por Carla Lemgruber
Falar de raiva é bem difícil. Não gostamos de admitir o que sentimos de menos nobre, por mais que esses sentimentos sejam parte do que nos torna humanos. Perceber que estamos aquém do ideal que imaginamos ou idealizamos sobre nós é admitir nossas imperfeições. É pensar que não somos tão evoluídos como gostaríamos que fossemos.
Passei muito tempo assim, ignorando a raiva que sentia pois queria ser essa pessoa que tudo aguenta, tudo perdoa, afinal é isso que aprendemos que significa ser elevado espiritualmente. Dar a outra face, perdoar sem rancores, amar o próximo, não importa quem seja. Mas o verdadeiro perdão não vem da teoria.
Por mais “não-nobre” que seja o que sentimos, pior é ignorar. Nessa tentativa de sermos espiritualmente soberanos por estarmos “aturando” o outro, corremos o risco de, na verdade, nos colocarmos numa posição de “superioridade espiritual”, sem darmos a chance a raiva de nos ensinar o que ela veio para mostrar. Acabamos criando barreiras invisíveis entre nós e o outro, vendo apenas os defeitos daquela pessoa, e nunca admitindo que talvez nós também tenhamos que nos rever. É possível passar quase uma vida inteira operando dessa forma inconscientemente, mas não sem consequências pesarosas. Pois tudo o que sentimos tem uma forma de se fazer sentir, por mais que tentemos reprimir, racionalizar, esquecer ou ignorar.
A raiva automaticamente nos desperta do campo das ilusões. É quase como um alarme que nos acorda de manhã; tentamos nos manter no sonho com todas as forças, mas no final, o despertador sempre vence. Ela cria rachaduras e janelas no mundo dos sonhos, fazendo-nos ver os pedaços feios da realidade que não queremos ver, sobre nós, sobre o outro, sobre a vida ou o mundo.
É mais fácil viver na ilusão, no sonho, fingindo que a realidade corresponde aos nossos desejos e expectativas. Enquanto nos constituímos como seres humanos, criamos essas ilusões que de alguma forma nos estruturam e constroem a visão que temos das pessoas, da vida e de nós. Faz parte do processo de criar nosso sentido de existência. Criamos “hipóteses” de porque a vida ou as pessoas são como são de acordo com o mundo que sonhamos e queremos. Porém, em um bom estudo científico, a hipótese é apenas o início da busca pelo verdadeiro saber. A hipótese é criada justamente para que depois se faça o exercício de prová-la verdadeira ou não. O problema é que na vida real, testar as hipóteses que construímos sobre nós e sobre os outros é algo que não pode ser feito sem dor e sem mudança, e assim, as tomamos como verdades ultimas. Por isso evitamos tanto esse teste, passando grande parte do tempo criando justificativas e explicações para comportamentos (nossos e dos outros), fazendo a manutenção dessas ilusões.
Criamos um ideal de pai ou mãe, amigo ou parceiro, e de alguma forma insistimos em encaixar as pessoas nesses ideais (nas nossas “hipóteses”), dando medalhas para os valores que achamos que eles tem ou correspondem ao nosso quadro de méritos, muitas vezes ignorando outras reais e não tão agradáveis características. Aumentamos dali, diminuímos daqui, colorimos e justificamos tudo aquilo que não encaixa no “ideal de pessoa” com alguma desculpa que é geralmente quase um elogio. Achamos razões “nobres” para suas imperfeições, e assim vamos levando as relações em frente, amando essa composição por nós criada.
É como se nossa concepção de realidade fosse sempre uma mistura daquilo que vemos com aquilo que queremos ver. Nossas expectativas e desejos facilmente se confundem com os fatos, e quando nos damos conta de que alguma concepção sobre nós ou o outro na verdade são construções nossas nessa tentativa de viver na realidade fantasiada, a raiva vem à tona, às vezes de forma brutal; como uma criança que sente tudo com enorme intensidade, incapaz de se conformar, cega pela própria dor.
É por isso que a raiva usa tantos disfarces, como a culpa ou a ansiedade. A ansiedade vem daquilo que não ganhou nome; é sinal de que há algo querendo sair. Já a culpa pode vir como uma forma de preencher o vazio deixado pelas expectativas não correspondidas. A culpa por sentirmos essa raiva que tanto queremos esconder pode nos fazer dar demais, nos colocando no lugar de quem está em falta, e nos protegendo de ver que o que realmente sentimos é que o outro é quem está em falta conosco e/ou não é quem gostaríamos que fosse.
E como é difícil reconhecer isso, principalmente quando acontece com pessoas que temos um grande medo de perder. Para podermos expressar a raiva, é preciso que tenhamos confiança de que amamos e somos amados o suficiente para não sermos abandonados pelo outro; ou a segurança de que preferimos falar, mesmo que isso signifique viver sem ele, dependendo do tipo de relacionamento.
A raiva não expressada cria distâncias invisíveis entre as pessoas, pois mantem esse muro de ilusões e “achismos” erguido entre os corações, impedindo que eles se aproximem. O sentimento de estarmos sozinhos em meio a quem amamos vem justamente daí, das idealizações que tanto tentamos manter. Quanto mais conseguimos olhar para as pessoas como elas são, e dar voz ao que sentimos, por menos nobre que seja, mais delas nos aproximamos. E é esse o real caminho para sair da ilusão de solidão.
O verdadeiro perdão vem quando conseguimos dar vazão a toda essa raiva, quebrando os muros, e, posteriormente, achando uma forma de conviver com o que resultar disso, o relacionamento continuando ou não. Se houve a possibilidade de criar um vinculo verdadeiro, fundado a partir do que foi vivido (e não só idealizado), o relacionamento tem muito mais chances de se transformar e continuar, ainda melhor que antes.
Essas pequenas (ou grandes) rupturas acontecem múltiplas vezes nos relacionamentos, a cada vez que nos deparamos com esse abismo entre a fantasia e a realidade. Nesses momentos, as brigas tem um incrível poder “aproximador” e construtor. A cada briga, temos a chance de melhorar relacionamentos, pois ela nos permite remendar ou construir novos laços com as pessoas a partir de quem somos e de quem elas são de verdade.
A raiva só pode ser sentida quando já não dependemos mais da ilusão que a gerou, seja ela sobre nós ou sobre outros. Ela vem para nos despertar para quem verdadeiramente somos, trazendo como benefício a nossa própria liberdade. A raiva é aliada na autolibertação, porque a única forma de superá-la é nos desfazermos daquilo que não queremos mais carregar. Quando esse sentimento é devidamente ouvido e processado, ele abre janelas, traz novos olhares, amplia horizontes.
Eu nunca soube sentir raiva. Não que antes não a sentisse, mas eu tinha tanto medo de falar dela, que a escondia muito bem, principalmente de mim mesma. Ultimamente, porém, as circunstancias da vida tem me forçado a sentir muito do que passei grande parte da vida escondendo de mim.
A princípio, quando finalmente pude me permitir reconhecer a raiva que as vezes sinto das pessoas que amo, me assustei. Ainda me assusto às vezes. A raiva tem me feito olhar para que lugares as pessoas tinham na minha vida, o que eu esperava delas, quem elas realmente são. E ao dar vazão para essa raiva, percebi que comecei a criar gosto por brigar, coisa que passei uma vida inteira evitando. É libertador dizer o que se pensa. Claro que sempre haverá as consequências depois, e lidar com elas não é fácil. Nem sempre os relacionamentos sobrevivem. Mas quando é possível refazer os vínculos, as pessoas queridas ficam ainda mais próximas. O amor se multiplica, as coisas ganham mais nitidez, as expectativas diminuem, e a vida fica mais gostosa, mais colorida, menos pesada e solitária, enfim, mais feliz.
Ilustração “Good vs. Evil” ©Isabel Castaño.
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