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Atuar como psicóloga no posto de saúde mas ser confundida, pelo médico, com uma faxineira; ouvir uma criança negra se lamentar por ter cabelos crespos e não lisos; presenciar um profissional de saúde ser racista e preconceituoso com uma paciente por ela ser negra e morar em um lugar muito pobre; ter a certeza de que não será punido ao ser pego portando drogas pelo fato de ser branco; ser um farmacêutico negro e sofrer ameaças por questionar a prescrição de medicamentos de médicos brancos.
Essas são algumas cenas relatadas por psicólogos brancos e negros que participaram de uma pesquisa sobre relações étnico-raciais em serviços públicos de saúde no município de Suzano, Região Metropolitana de São Paulo. “Essas experiências mostram o quanto o racismo ainda afeta a visão tanto dos profissionais de saúde quanto dos próprios pacientes”, conta a psicóloga Mônica Feitosa Santana, autora de dissertação de mestrado sobre o tema.
O estudo aponta ainda para a necessidade de a questão étnico-racial ser incluída na grade curricular dos cursos de graduação em psicologia. De acordo com Mônica, todos os psicólogos que participaram do estudo mencionaram que não tiveram formação sobre as relações étnico-raciais e que não aprenderam na faculdade que a raça, assim como o gênero e a classe social, também é um fator de análise de desigualdade.
“A psicologia é uma ciência que há anos tem se debruçado sobre as desigualdades. Gênero é um fator que pode gerar dificuldade de desenvolvimento, de pobreza, de construção de projeto de vida. E a classe social à qual uma pessoa pertence faz toda a diferença em seu desenvolvimento, do ponto de vista psicológico”, explica a pesquisadora.
O trabalho foi desenvolvido no Instituto de Psicologia (IP) da USP, sob a orientação do professor Alessandro de Oliveira dos Santos, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. O docente desenvolve uma linha de pesquisa que busca analisar a atuação de psicólogos em várias áreas da sociedade, como no campo jurídico, na saúde, na assistência social, etc., com o objetivo de entender como ocorrem as questões étnico-raciais nessas esferas.
O objetivo da pesquisa, realizada entre 2014 e 2017, foi analisar como psicólogos de serviços públicos de saúde do município de Suzano lidam com as relações étnico-raciais no cotidiano de trabalho.
“Pensando no nosso papel como psicólogos, é preciso compreender por que as pessoas se configuram, nas suas práticas cotidianas, como pessoas que exercem o racismo. E, antes de o psicólogo fazer essa compreensão com os pacientes, ele precisa fazer com ele mesmo”, diz.
Dos 17 psicólogos convidados a participar, nove aceitaram. Eles foram entrevistados por outros pesquisadores que atuam no grupo do professor Alessandro dos Santos, dentro da chamada paridade: mulheres brancas entrevistaram psicólogas brancas; homens negros entrevistaram os psicólogos negros; e assim por diante. Essa paridade foi usada para não haver interferência nos resultados por posicionamentos opostos em relação ao tema central da pesquisa.
A pesquisadora define o racismo como um conjunto de práticas institucionais e interpessoais que geram exclusão. São institucionais porque já estão inseridas na ideologia, mas elas se refletem no comportamento interpessoal das pessoas de forma automática, irracional e irrefletida. Então, por mais que as pessoas falem que não são racistas, existe toda uma ideologia por trás que sustenta esse racismo.
Ao analisar os relatos, Mônica observou que esses profissionais atendem muitas pessoas negras e pobres, e que esses pacientes narram situações de racismo, fato que produz muito sofrimento psíquico. Psicólogos negros também relataram racismo, seja vindo dos pacientes ou de outros membros da equipe de saúde.
“O racismo também apareceu na observação de uma psicóloga branca. Ela relatou que percebeu que o sofrimento de um paciente negro era decorrente de racismo. Mas essa psicóloga não se sentiu autorizada a nomear dessa forma para o paciente. Ela achou que, por ser branca, se ela falasse que era uma situação de racismo, sentiu medo que ele achasse que era ela quem estava sendo racista com ele”, diz Mônica. “Essa psicóloga deveria sim nomear a situação como racismo, mas é neste ponto que entra a questão do racismo como ideologia, interferindo nas relações”, aponta.
Para exemplificar: se fosse uma mulher falando para um psicólogo homem sobre uma determinada experiência, esse psicólogo, ao perceber que se trata de uma situação de machismo, ele, com certeza, se sentiria autorizado a nomear a experiência como tal pois recebeu, em sua formação, a ideia de gênero como fator que gera discriminação social. “E essa paciente não acharia que o psicólogo estava sendo machista com ela. E o psicólogo, também pela formação, compreenderia que fez uma ação de elucidar os sentimentos da paciente, que é algo que faz parte do nosso trabalho como profissional”, explica.
No caso das relações étnico-raciais e do racismo, diz a pesquisadora, muitos psicólogos não se sentem apropriados para fazer isso porque a raça não é estudada na faculdade de psicologia como um fator que gera vulnerabilidade, desigualdade e preconceito.
Os relatos também mostraram um desconhecimento sobre o que é racismo. Uma das entrevistadas disse que muitas coisas vão além da cor da pele. No caso dela, descendente de árabes, tinha um nariz muito grande e sempre foi alvo de piadas, preconceito. “Isso mostra um desconhecimento do que é racismo e mostra também o quanto as pessoas ainda não entendem o que ocorreu com o final da escravidão e a inserção social deturpada do negro no Brasil no pós-escravatura, sem direito à terra ou ao trabalho remunerado.”
Mônica lembra também que o fato de uma pessoa negra ter status social ou dinheiro não a deixa invulnerável ao racismo. “Mas os psicólogos não costumam fazer essa conexão. Eles acham que se a pessoa está passando por esse sofrimento psíquico é porque ela é pobre e negra e que, se fosse rica, ela não apresentaria esse problema. Mas isso é uma ilusão”, diz. E cita alguns casos recentes: o cantor e compositor Carlinhos Brown e sua esposa tiveram de abandonar o condomínio onde moravam, no Rio de Janeiro, devido aos ataques racistas proferidos contra os filhos do casal. Outros casos semelhantes envolvem a jornalista Maria Júlia Coutinho; os atores Lázaro Ramos e Taís Araujo; e Titi, filha dos também atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank.
A pesquisadora comenta o caso de uma psicóloga branca que atende crianças e que relatou a seguinte experiência: ouviu de uma menina negra “nossa, que cabelo lindo, queria ter um cabelo igual ao seu”. Na mesma hora, essa psicóloga respondeu “ah, mas eu queria mesmo é ter um cabelo enrolado igual ao seu… porque, olha: o cabelo da tia não enrola”.
No caso citado, houve a valorização de uma característica genotípica que a menina estava trazendo como algo feio, pois a estética negra não é vista como bonita. Por isso, a pesquisadora considera importante a criação de espaços coletivos de fortalecimento para discussão de ações de sucesso.
“É possível usar as ferramentas que a psicologia já tem, pois já existem instrumentais no arcabouço teórico conceitual que combatem o preconceito. Já há estudos e técnicas de intervenção, basta aplicar nas relações étnicos-raciais.”
Mônica lembra ainda que as relações étnico-raciais não dizem respeito exclusivamente ao racismo contra as pessoas de pele negra. Elas falam principalmente de relacionamentos entre pessoas, afinal, somos todos humanos. Por isso, também incluem indígenas e até orientais (que sofrem uma discriminação positiva, mas que gera sofrimento). “A linha de pesquisa do meu orientador tem um direcionamento com base na ideia de que a opressão não é boa para ninguém. O homem que exerce violência também está em sofrimento. A pessoa que exerce dominação, que subjuga o outro, também precisa ser tratada. É para isso que a psicologia existe.”
Para ela, a psicologia tem um papel importante nas relações étnico-raciais, que inclui não apenas o combate ao racismo: é o de fazer o letramento étnico-racial das pessoas brancas para que elas saibam a necessidade do debate sobre cotas, sobre discriminação e até para falar sobre o privilégio que elas têm pelo simples fato de serem brancas – a pessoa nunca vai passar por determinadas situações… exatamente por ser branca.
Sobre a ausência de disciplinas sobre o tema racismo nos cursos de graduação em psicologia, Mônica recorda que vários autores da área já pesquisaram isso, como Dante Moreira Leite, Aniela Meyer Ginsberg e Virgínia Bicudo (primeira psicanalista do Brasil e negra). E mesmo com esse arcabouço teórico e técnico, as pesquisas não se desdobram em disciplinas práticas oferecidas nos cursos de graduação.
A pesquisa Muito além da cor da pele: psicologia, saúde mental e relações étnico-raciais em serviços públicos de saúde do município de Suzano, São Paulo está disponível para consulta na íntegra neste link.
Veja abaixo outros relatos dos psicólogos entrevistados para a pesquisa:
Fonte Indicada: Jornal USP
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