Por Ingrid Matuoka
Segundo a Anvisa, o consumo brasileiro do princípio ativo do Rivotril, o clonazepam, em 2007 era de 29 mil caixas por ano. Em 2015, este número atingiu os 23 milhões, de acordo com a IMS Health. O crescimento significativo em pouco tempo desperta as suspeitas de uso excessivo e desnecessário por parte de especialistas.
Com a promessa de aliviar as pressões e as ansiedades cotidianas, psiquiatras e médicos em geral receitam o remédio tarja preta, ou seja, que pode causar dependência física e psíquica, mesmo que o paciente não apresente um caso clínico de ansiedade.
Agravando a situação, o medicamento tem um valor relativamente baixo. A reportagem de CartaCapital chegou a encontrar caixas a R$ 4. As mais caras são vendidas por cerca de R$ 20.
O clonazepam, princípio ativo do medicamento Rivotril, do laboratório farmacêutico Roche, pertence à classe farmacológica das benzodiazepinas, que agem diretamente sobre o sistema nervoso central, afetando a mente e o humor.
Os ansiolíticos à base de clonazepam são as substâncias mais consumidas no Brasil entre os 166 princípios ativos de remédios tarja preta segundo o Boletim do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados da Anvisa, entre 2007 e 2010.
O Rivotril tem entre seus usos o controle de distúrbios epilépticos e casos graves de transtornos de ansiedade, como a Síndrome do Pânico. Sempre em situações pontuais e pelo menor tempo possível.
“O Rivotril, de modo geral, é uma medicação segura e eficaz para o que se propõe, e pode ser de grande benefício quando bem receitado”, explica o médico psiquiatra Plinio Luiz Kouznetz Montagna, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e ex-professor da Universidade de São Paulo, com passagem pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres.
No entanto, segundo Montagna, seu uso tem sido banalizado. O psiquiatra explica que usar o Rivotril para apaziguar sintomas sem dar atenção às origens dos mesmos pode mascarar quadros mais graves, porque a ansiedade pode ser primária ou derivar de outras condições, como depressão e psicoses, que exigem outros tipos de tratamento.
Montagna esclarece que as manifestações da ansiedade podem ocorrer tanto na esfera psíquica (sentimento opressor, antecipação de perigo etc) como no corpo (dispneia, insônia, taquicardia). Já as causas da ansiedade podem derivar de elementos biológicos, psicológicos, socioculturais e do desenvolvimento individual em um contexto familiar determinado.
O psiquiatra considera a ansiedade como fundamental para sinalizar um perigo e necessária para a saúde psíquica. “Costumo comparar com o funcionamento de um violão. É preciso um nível de tensão das cordas adequado para que a música aconteça. Se as cordas estiverem frouxas, não sai música. Se demasiadamente estiradas, podem até a romper. Assim é a ansiedade em relação ao funcionamento mental humano”.
No entanto, quando a reação a um estímulo passa a ser desproporcional é que há um transtorno de ansiedade, como explica o conselheiro do Cremesp Mauro Gomes Aranha de Lima. “Viver em grandes centros urbanos gera, naturalmente, um sentimento de ansiedade por deixar as pessoas estejam constantemente em alerta, estressadas. E isso não é necessariamente um transtorno de ansiedade. Mas esses fatores podem desencadear um transtorno em quem já tem certa tendência a isso”.
Como exemplo de reação além da necessária a um estímulo, Lima descreve a situação em que alguém vê uma faca ou está em um elevador apertado e isso desencadeia uma crise de pânico. Ou quando, ao cumprimentar alguém e sentir um pouco de suor, ter que lavar as mãos excessivamente depois.
Em relação à vida urbana de que Lima fala, Montagna lembra o epidemiologista inglês Richard Wilkinson, cujos trabalhos são utilizados pela ONU e a OMS: “o binômio inclusão – exclusão a grupos, pequenos ou grandes, está em questão.
Os estudos de Wilkinson observam que o fator que importa em termos de ansiedade e saúde mental, consumo de drogas, criminalidade, e diversos outros índices de bem estar social é a diferença de renda entre os mais ricos e os mais pobres. Quanto mais equitativa a sociedade, menor a prevalência de ansiedade e de transtornos mentais”.
Montagna pondera que, se essa é a situação em países do primeiro mundo, a questão deve tornar-se muito mais aguda e possivelmente mais dramática em países como o Brasil, com uma grande desigualdade social. “Com a desigualdade, nos índices de saúde, saúde mental e social, o prejuízo, o sofrimento não é só dos pobres, mas também dos ricos. O prejuízo da desigualdade é de todos”.
Surgimento e abstinência
O surgimento dos atuais tranquilizantes é atribuído a Leo Sternbach, que trabalhava para Hoffmann – La Roche e patenteou mais de 241 inovações químicas, tornando a Roche uma das maiores indústrias farmacêuticas do mundo.
Ele foi responsável por desenvolver os primeiros tranquilizantes à base de benzodiazepínicos, substituindo os barbitúricos desenvolvidos no começo do século passado (como o Gardenal) perigosos por terem a dosagem fatal próxima à dosagem para o tratamento. Em 1960, Sternbach lançou o Librium e, três anos depois, o Valium, mais simples e mais potente.
“Mães precisam de alguma coisa hoje para acalmá-las. E mesmo que ela não esteja realmente doente, há uma pequena pílula amarela”, diz a música dos Rolling Stones lançada em 1966 em referência ao Valium, quando os tranquilizantes já estavam popularizados nos Estados Unidos.
Hoje, Medley, Sanofi, Pfizer, Aché e Farmasa são alguns dos laboratórios que produzem ao menos um medicamento à base de benzodiazepinas no Brasil, além das versões genéricas dos princípios ativos. O Rivotril, da Roche, contudo, é um dos mais conhecidos.
Dados obtidos pela reportagem da Folha de S. Paulo em 2011 e 2012 mostram que, dentre todos os medicamentos, tarja preta ou não, o Rivotril foi o sexto mais vendido no Brasil. Na época, o Rivotril era responsável por 77% das vendas de ansiolíticos — 14 milhões de caixas por ano.
O levantamento foi feito a pedido do jornal pela IMS Healt, a empresa que audita o mercado farmacêutico no país. Procurado pela reportagem de CartaCapital, contudo, a IMS Health afirmou que este tipo de levantamento não está mais disponível para a imprensa.
Em 2007 foram consumidas 29 mil caixas de medicamentos à base de Clonazepam (princípio ativo do Rivotril) no Brasil. Três anos depois, em 2010, esse número superou os 10 milhões, de acordo com a Anvisa.
Já entre setembro de 2014 e agosto de 2015, o consumo de todos os medicamentos à base de Clonazepam subiu para mais de 23 milhões, de novo de acordo com os dados da IMS Health.
“No fim do século passado prescrevia-se Dienpax a todo o momento. Hoje isso ocorre com o Rivotril”, analisa Montagna. Lima acredita que o uso acima das necessidades reais desse tipo de medicação acontece porque não há a necessidade de que um especialista o receite.
“É uma forma de melhorar rapidamente a ansiedade e, de alguma forma, o paciente institui aquele remédio como uma constante – esse é o cuidado que devemos ter, para não usar cronicamente. E vale lembrar: jamais em proximidade com bebidas alcoólicas, porque potencializa o efeito sedativo”.
O psiquiatra também alerta para a perda do efeito ao longo do uso crônico, uma tendência das benzodiazepinas. “Para obter o mesmo efeito é preciso aumentar progressivamente as doses. A questão é que a retirada dos benzodiazepinas quando é usado por longo tempo, deve ser gradual, porque pode gerar síndrome de abstinência”.
Como combater o uso excessivo?
Para contornar a situação, Montagna ressalta a necessidade de trabalhar mais, na educação médica, a relação médico-paciente e a valorização de aspectos humanos da Medicina. Ele afirma que percebe que muitos médicos não têm ferramentas para lidar com o paciente a não ser através da medicação. “Mas de todo modo não se perca de vista que o Rivotril tem suas qualidades em quadros de ansiedade, eventualmente como coadjuvante de antidepressivos e para a epilepsia”.
Lima, como conselheiro do Cremesp, afirma que eles procuram fazer uma educação médica continuada, levando aos médicos não psiquiatras os melhores meios de utilizar essas medicações. “Existem maneiras de a vigilância sanitária mapear prescritores muito exagerados de tranquilizantes e, por vezes, a gente chama esse médico no Conselho e alertamos sobre esse uso indiscriminado. Mas é a qualidade da formação médica que evidentemente precisa melhorar no nosso país”.
Lima observa que alguns tratamentos de ansiedade precisam de um ou dois anos de medicação, mas que não devem ser usados os benzodiazepinas e, sim, outro grupo de medicações mais adequado para tratamentos de longa duração.
No entanto, nem eles são capazes de curar o transtorno de ansiedade definitivamente. “São muito importantes no tratamento da ansiedade todos os métodos psicoterápicos. E cada tipo de ansiedade existe terapias adequadas. Então a psicoterapia é o tratamento mais que tem resultados mais sustentados e deve ser feito concomitantemente ao tratamento farmacológico, sempre objetivando interromper a medicação depois de algum tempo”.
Procurada por CartaCapital, a Roche enviou a seguinte nota: “A Roche, fabricante de Rivotril (clonazepam), esclarece que as vendas do medicamento permanecem estáveis nos últimos anos no Brasil, embora a classe terapêutica CT4 e a substância clonazepam tenham crescido recentemente. A companhia reitera que somente o médico pode prescrever o medicamento, por meio de uma receita retida e controlada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), considerando necessidades médicas de cada paciente. A Roche segue a legislação nacional que regulamenta a promoção e a venda de seus medicamentos comercializados no Brasil”.
TEXTO ORIGINAL DE CARTA CAPITAL