Por THAIS PAIVA- conteúdo Carta Educação
“Para vocês, sonhadores, que foram deixados de lado na escola e jamais ganharam prêmios. Para vocês, a quem o amanhã pertencerá.” Impossível não pensar na menina disléxica, expulsa de diversas escolas por ser incapaz de ler e escrever, ao ler a dedicatória do livro Lua de Larvas (Editora WMF Martins Fontes, 2014), o mais recente trabalho da escritora inglesa Sally Gardner.
Diagnosticada com o distúrbio de aprendizagem quando tinha 12 anos e tendo aprendido a escrever apenas aos 14, Sally sabe muito bem das lacunas deixadas por um modelo de educação padronizado, voltado unicamente para a instrução. “A escola falhou completamente na minha educação, mas a dislexia foi uma janela para a minha imaginação. Passava o dia inventando histórias na minha cabeça”, conta.
A criatividade aguçada e o amor pelos livros, que gostava de folhear para ver figuras e imaginar narrativas mesmo antes de alfabetizar-se, acabaram aproximando Sally da literatura.
Quando deu por si, era a autora do livro mais premiado de 2013 na Inglaterra. Hoje, Lua de Larvas vendeu mais de 2 milhões de exemplares no Reino Unido e foi traduzido para mais de 22 idiomas. Em visita a São Paulo, a autora conversou com Carta Educação sobre seus tempos de escola e as reflexões que seus livros podem suscitar entre crianças e jovens.
Carta Educação: Seu mais recente livro, Lua de Larvas, narra um adolescente crescendo numa sociedade rígida e monitorada. De onde surgiu a ideia para escrevê-lo?
Sally Gardner: Antes de me debruçar sobre a escrita de Lua de Larvas, realizei uma extensa pesquisa histórica, principalmente sobre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Entre os fatos que me deixaram mais fascinada, estava os muitos “se” presentes na nossa História, ou seja, coisas que poderiam ter acontecido e que teriam mudado, drasticamente, o rumo do mundo. Nessa perspectiva, havia três grandes “se” que me intrigaram. O primeiro deles era o fato de Winston Churchill (primeiro-ministro do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial) quase ter morrido ao ser atropelado por um táxi, em Nova York. O impacto só não o matou por uma questão de 2 centímetros. Outro caso foi o de Adolf Hitler, que também foi atropelado, em Berlim. O terceiro foi “e se os americanos não tivessem chegado primeiro à Lua?” A história mundial seria outra se esses três fatos tivessem um desenrolar diferente. Então, Lua de Larvas é ambientado em uma versão fictícia do Reino Unido de 1950, na qual os personagens descobrem uma conspiração do governo para vencer a corrida espacial.
CF: Podemos estabelecer relações entre esse universo ficcional criado no livro – totalitário e controlador – e a nossa sociedade atual?
SG: Creio que sim. Há vários países no mundo que ainda vivem em circunstâncias parecidas com aquelas narradas no livro, contra as quais personagens se rebelam. No fundo, Lua de Larvas é uma história sobre amor, bravura e coragem. Trata de algo que as pessoas não estão mais acostumadas a fazer hoje em dia: sacrificar-se por uma grande causa. O livro é um convite aos jovens para questionar e lutar contra as coisas que estão erradas no mundo. Eles precisam questionar a história, o que leem nos jornais, precisam olhar para mais lados de uma questão do que apenas aquele compartilhado no seu Facebook ou transmitido pela mídia. O que o livro está dizendo é: talvez você devesse fazer mais perguntas antes de aceitar o que lhe é dito como verdade.
CF: O personagem principal da história, Standish Treadwell, tem dislexia. A senhora foi diagnosticada com o distúrbio quando tinha 12 anos. Como foi isso?
SG: Até essa idade eu não era capaz de ler ou soletrar o meu nome. A verdade é que todos achavam que eu havia “falhado” na minha educação. Mas, quando você chega ao fundo e não tem mais como ir para baixo, começa a ver as coisas sob outra perspectiva. Frequentei uma escola para crianças problemáticas, ou seja, com problemas extremamente graves do ponto de vista de aprendizagem e comportamento. Nessas escolas há pouquíssima preocupação com a prática do ensino. Ninguém estava muito interessado em me ensinar alguma coisa. E como eu odiava isso, porque queria aprender. Então você pode imaginar como eu odiava ir para a escola. Fui expulsa de algumas também: em uma delas, durei apenas seis semanas. Mudava muito de escola porque não conseguia soletrar e escrever as palavras e ninguém conseguia descobrir o que havia de “errado” comigo.
CF: Quais são as memórias mais marcantes que a senhora tem desse período?
SG: Vim de uma família com pais muito inteligentes, ambos advogados. Naquela época, achava-se que eu tinha alguma espécie de dano cerebral. Para eles, era bastante difícil lidar com o problema que era “a Sally não consegue ler”. Mas, no fundo, minha mãe nunca acreditou que isso era verdade e sou muito agradecida. Meu pai não acreditava muito no potencial das mulheres, era um homem à moda antiga. E, do outro lado, a escola falhou completamente com a minha educação. Mas a dislexia foi uma janela para a minha imaginação. Passava o dia inventando histórias na minha cabeça e pensava “vou provar como todos estão errados sobre mim, vou mostrar o quanto sou capaz”. Então, quanto mais as pessoas diziam que eu não podia fazer algo, mais eu pensava internamente: “É claro que eu posso”.
CF: A senhora só aprendeu a ler com 14 anos. Como foi isso?
SG: Nem todas as pessoas podem dizer que se lembram de aprender a ler, mas eu posso (risos). E, na verdade, foi uma das sensações mais maravilhosas que experimentei. Podia ver o mundo e interpretá-lo. Acho que essa experiência diferente e sensível que tive aprendendo a ler e escrever ajudou, de alguma forma, a me tornar uma escritora.
CF: Mas a senhora acha que, hoje, as escolas estão mais preparadas para lidar com as diferenças entre os alunos?
SG: Não, eu não acho. Ainda acredito que as escolas têm um tremendo trabalho pela frente para ter êxito nesse aspecto. Ainda acho que as crianças são estigmatizadas pelos “pontos fracos” que apresentam, que se sentem desconfortáveis, por exemplo, por amar uma pessoa do mesmo sexo. Os alunos são atormentados constantemente pelo medo, pela preocupação. Acho que as crianças que, como eu, são disléxicas ainda enfrentam uma série de dificuldades na escola. Não creio que avançamos, não poderemos dizer isso até termos uma educação mais aberta à imaginação e aos problemas que assolam o mundo.
CF: As pessoas pensavam que, por ser disléxica, a senhora nunca se tornaria uma escritora?
SG: Sempre amei livros, costumava ir para a cama com uma pilha deles. Olhava as figuras e ficava inventando diferentes histórias na minha cabeça. A dislexia é ainda muito mal compreendida pelas pessoas, que só conseguem ver a ponta do iceberg, o fato de aquela pessoa ter dificuldade para soletrar. Mas, por outro lado, tenho uma espécie de câmera dentro da minha cabeça, consigo ver as cenas se desenrolando com facilidade. É assim que eu escrevo. Os disléxicos têm tantas outras capacidades incríveis como essa visão mais apurada. E a dificuldade de soletrar não significa que não amamos as palavras, as narrativas.
CF: Quando começou a escrever livros?
>SG: Nunca na minha vida achei que me tornaria uma escritora. Costumava pedir para meus filhos escreverem os bilhetes para a escola quando ficavam doentes, porque eu tinha vergonha da minha escrita. E isso apesar, desde criança, de ter histórias incríveis na minha cabeça. Comecei a escrever por volta de 1993. No começo, eram mais rascunhos. Conheci uma editora incrível que me lembro de ela ter dito “Sally, você é uma contadora de histórias”. Naquela época, estava casada e, como tinha dificuldade de soletrar, pedia para meu ex-marido corrigir todos os meus textos. Lembro de mostrá-los e ela dizer “essa é a escrita do seu marido, onde está a sua?” Foi, possivelmente, uma das melhores coisas que alguém poderia ter me dito. Voltei com os meus textos e ela disse: “É isso que estamos procurando”.
CF: Em geral, seus livros têm uma combinação de magia e realismo histórico. Que reflexões e experiências a senhora tenta levar para o leitor?
SG: Sou muito interessada em História. E, pelo menos na Inglaterra, vejo um lapso no ensino dessa disciplina. Acredito que, se não olharmos para o passado de maneira crítica, nunca aprenderemos com nossos erros e conseguiremos fazer progresso. Terminaremos, constantemente, lutando novas guerras. Outro fator que trago para meus livros é este lugar em que se pode ser livre. Há cada vez menos lugares onde as crianças podem ter verdadeiras aventuras, brincar nas ruas, parques, sair correndo por aí. Hoje, tudo é tão monitorado. Então, a minha literatura não deixa de ser um lugar onde elas possam se aventurar.
CF: A senhora é também autora e ilustradora de livros infantis. Como é o processo de escrever para crianças e como descobriu sua aptidão para a arte?
SG: Adoro escrever livros que não só agradem às crianças, mas também aos pais. As crianças são tão imaginativas, ainda não foram, digamos, ajustadas. Então há muitas oportunidades e campos para explorar com elas. Sobre as ilustrações, frequentei uma escola de arte e trabalhei por, aproximadamente, 15 anos como designer de figurino para o teatro. Parei quando tive meus filhos. Então, comecei a desenhar antes de escrever, mas nunca achei meus desenhos muito bons, prefiro meus textos.
CF: Quais são seus projetos para o futuro? Está trabalhando em um novo livro?
SG: Sim. Enquanto estou aqui, acordo todas as manhãs e escrevo um pouco para um novo projeto. Sou uma workaholic, acho que você precisa ser quando é escritor. Escrevo todos os dias e, se fico um dia sem escrever, sinto um vazio. O livro ainda não tem nome, mas posso adiantar que é uma história de amor, com um toque de magia.
CF: É possível trabalhar seus livros na escola?
SG: Acho que Lua de Larvas levanta questões que podem ser trabalhadas pelos professores, tais como bullying, homossexualidade, sacrífico por uma causa e até onde é possível acreditar no discurso propagandista da mídia e dos governos. Sei que há escolas no Reino Unido que estão utilizando meu livro para debater esses temas. Outra mensagem que acho importante passar para os jovens é como é importante ter um sonho que os motive a seguir em frente.
Fonte indicada: Carta Educação