SOCIEDADE

Se o mundo fosse só de mulheres, nunca teria existido nazismo, afirma psicanalista.

Por Ana Ribeiro e Rodrigo de Almeida

 

O psicanalista, psicoterapeuta e escritor italiano Contardo Calligaris recebeu o iG em seu consultório, no 18º andar de um prédio no Jardins, em São Paulo, e falou sobre amor, casamento, desejo, fidelidade, homens e mulheres. Ele acaba de lançar o livro “Todos os reis estão nus” (editora Três Estrelas), reunião de artigos publicados nos últimos anos, organizado por Rafael Coriello.

“A poltrona vermelha teoricamente é a minha”, diz ele, ao nos apontar as alternativas: uma poltrona de couro marrom e um divã de veludo também marrom. É nesta sala cercada de livros – alguns ele mesmo escreveu – que o psicanalista ouve as inquietações de 60 a 70 pessoas por semana. Multiplique-se isso aos quase 40 anos de clínica que ele tem na conta – começou a atender pacientes em Paris, em 1975 – e imagine a experiência adquirida em comportamento humano.
Experiência combinada com sensibilidade aguçada que o psicanalista e escritor leva tanto para o consultório quanto para os artigos. Em ambos, busca entender a psicologia dos indivíduos, das relações amorosas, do comportamento de homens e mulheres de todas as idades. Mulheres com um plural mais acentuado do que os homens, já que ele aponta a inexistência da “mulher universal”. Diz: “Mulheres formam um conjunto muito menos que os homens. As mulheres são muitas singularidades”.

É do alto de muita observação que ele revela: homens são casamenteiros, dizem facilmente “eu te amo” e até se excedem. “São sentimentalmente over”, acusa. Mulheres, ao contrário do que se imagina, traem tanto quando eles.

Numa coisa eles empatam: homens e mulheres falam na mesma medida no divã. “Apesar dos sotaques diferentes, os temas são mais ou menos os mesmos. De um lado, amor e sexo. De outro, o trabalho e os sonhos de afirmação e reconhecimento social.”

“A única traição inaceitável é a traição de si mesmo. Imaginar que minha parceira se trairia por fidelidade a mim é a última coisa que desejo para nós.”
Em detrimento de tantas experiências, o psicanalista tem suas próprias convicções. Defende que é importante ser fiel, mas aos seus próprios desejos. “Imaginar que minha parceira se trairia por fidelidade a mim é a última coisa que desejo para nós. O que me faz amá-la é vê-la fiel a si mesmo, não a mim.” E garante que é legítimo terminar um casamento com uma mensagem de texto pelo celular. “Prefiro terminar um casamento por SMS do que ter uma conversa sobre isso. Detesto discutir a relação.”

Veja a seguir os melhores momentos da entrevista:

DIVÃ É OBSERVATÓRIO DO COMPORTAMENTO

O psicanalista é um receptáculo, uma espécie de grande ouvido. No fim das contas, o que alguém mais procura numa análise é a possibilidade de se expressar e de ser escutado, de ser reconhecido em seu sofrimento. Precisa disso muito mais do que uma palavra que vá orientá-lo. Alguém menos poético diria que o psicanalista é o penico do mundo. E essa posição de receptáculo acaba nos moldando. Resultado: depois de tantos anos de escuta e intervenção prudente em relação ao conjunto dessa experiência, posso levar isso para meus artigos (ele assina uma coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo) e minha interpretação dos indivíduos.

A grande transformação do comportamento humano ocorreu nos anos da minha formação, nos anos 60. Costumo dizer que a única revolução do século XX que saiu vitoriosa foi a revolução de costumes vencida por minha geração. Desse modo, não vejo muito sentido quando se fala hoje numa grande inversão dos papéis entre homens e mulheres. Acho que “inversão” não seria uma palavra certa, e sim uma complexificação dos papéis de gênero e sexuais, que são duas coisas distintas pelo menos no mundo ocidental. Esse fenômeno começou no imediato pós-guerra. E o que fez mudar não foi o feminismo, mas a própria guerra: as mulheres saíram de casa para trabalhar enquanto os homens estavam no campo de batalha. Quando eles voltaram, elas perceberam que seria muito melhor continuar no trabalho do que ficar em casa usando a batedeira.

BRASIL MENOS CLASSISTA, RACISTA E MACHISTA

O Brasil mudou muito desde que eu comecei a clinicar aqui, por volta de 1985 e 1986. E mudou não só, como todos sabem, do ponto de vista da abertura comercial – Collor serviu para alguma coisa! –, mas também cultural. A transformação nos costumes foi significativa desde então. O país que conheci quando cheguei era mais classista, mais racista e mais machista. A centralidade do homem ainda é presente, claro, mas não só aqui no Brasil como na França e nos EUA. O privilégio que o filho continua tendo no amor materno vai mudar, e já está mudando, mas ainda vai levar meio ou um século. Mas é provavelmente a mudança mais importante para que exista uma transformação de fato dos papéis de cada gênero.

INFANTOLATRIA

O ponto em que os homens e as mulheres brasileiros estão mais atrasados é a sua relação com as crianças. No Brasil, a infantolatria é um negócio bizarro, sobretudo para um europeu de origem como eu (Contardo nasceu em Milão). Fico impressionado com a centralidade das crianças nas fantasias e nos desejos de uma família brasileira, sua relação com os filhos, os gastos totalmente desproporcionais em relação ao que se ganha, sem esquecer o quanto se deixa em segundo plano a relação entre homem e mulher em detrimento do filho. Por essa razão, a separação de casais é mais frequente depois do nascimento de um filho. As pessoas acham que fazer um filho fortalece o casamento, mas em geral essa é uma das principais razões da separação.

ENVOLVIMENTO AFETIVO x ENVOLVIMENTO SEXUAL PÓS-PARTO

Há uma realidade inegável em torno da depressão depois do parto para a mulher. Mas pouco se fala de que, para o homem principalmente, existem episódios psicóticos no mesmo período. Esquecemos facilmente que a paternidade é um momento propício para o desenvolvimento de uma crise psicótica no homem – que às vezes estava tranquila e só é desencadeada de vez pelo parto. Além do peso emocional do momento, há a confrontação de uma necessidade de se mostrar à altura da função do pai. É uma tarefa que pode ser enlouquecedora para muitos. Como qualquer grande desenvolvimento na vida, aquilo implica uma redução do campo dos possíveis. Ou seja, o homem pensa: “Agora sou pai para sempre”. Isso mexe com a cabeça de qualquer um.

“No fundo, uma vida sexual interessante não é a do ficante. Todos sabem que, para homens e mulheres, a primeira transa com alguém é uma tristeza.”
CASAMENTO COMO ENTERRO DO SEXO

Não é obrigatório que o casamento seja o enterro do sexo, mas infelizmente em muitos casos ele é. Vejo tantos exemplos de casais que chamam um ao outro de papai e mamãe, o que já é um péssimo sinal. Ou casais que imitam a voz das crianças. São fatores que ampliam a dificuldade do sexo se manter ativo. Por outro lado, não há nada comparável a uma relação que se aprofunda para gerar uma vida sexual interessante. No fundo, uma vida sexual interessante não é a vida do ficante. Todos sabem que, para homens e mulheres, a primeira transa com alguém é uma tristeza. Fazemos de conta que foi muito bonita, mas em geral é ruim e frustrante.

QUEIXA DO DESEJO FALIDO

Deveríamos poder transar com nossas próprias fantasias e com as fantasias do outro. É dessa maneira que o encontro vale a pena. Somente quando uma relação se aprofunda é que cada um pode colocar em jogo suas fantasias e seus desejos, que é o que realmente sustenta uma vida sexual interessante. Desse ponto de vista, o casamento deveria o lugar onde isso mais funciona. Mas a realidade diz que não, e o casamento vira a máxima da queixa do desejo falido. O desejo tem certa tendência a encontrar várias dificuldades de se realizar, mas o casamento acaba aguçando isso.

“A literatura nos ensinou que o amor é um grande sonho atrás do qual é preciso correr e que o casamento é, no fundo, uma grande piada.”
AMOR É ENCANTO DE UM ENCONTRO; CASAMENTO É CÔMICO

Nosso modelo de amor é o modelo trazido pela literatura. Enquanto o fenômeno literário mostra o amor como o encanto de um encontro, o mesmo modelo literário mostra a convivência como uma comédia. O casamento quase sempre é mostrado como algo engraçado porque a convivência é insuportável. A mulher é insuportável, o marido é corno, e todo mundo ri. A literatura nos ensinou que o amor é um grande sonho atrás do qual é preciso correr e que o casamento é, no fundo, uma grande piada. Portanto, a literatura tem sua parcela de culpa na frustração que temos com a convivência do casamento.

TRAIÇÃO

Vejo as pessoas virem ao consultório realmente sofridas diante da traição. A “traição do outro” – entre aspas, porque não entendo bem o que seja – é vivida como a ferida narcísica. Afinal, a traição mostraria que ela ou ele não me ama, que não sou suficiente para o outro. Essa continua sendo a realidade do ciúme. Há pessoas que lidam com o ciúme de forma patológica, de mal poder expor publicamente seu parceiro ou parceira.

Tenho uma interpretação diferente da traição, minha capacidade de empatia com o sentimento do ciúme e do sofrimento diante da traição é realmente muito pequena. Não que eu despreze o sentimento, mas porque me é bastante estrangeiro. Ou talvez, ao contrário, isso me permita olhar para aquilo como uma espécie de exterioridade e ver com certa frieza o problema.

Para mim, a única traição realmente inaceitável é a traição de si mesmo. Imaginar que minha parceira se trairia por fidelidade a mim é a última coisa que desejo para nós. O que me faz amá-la é vê-la fiel a si mesmo, não a mim. Não quero que minha parceira renuncie a nada, não traia o seu próprio desejo. Como o desejo por um outro homem. Essa visão não me atrapalha porque não sou ciumento.

CASAMENTO COMO DESCULPA

Se há uma coisa que realmente é um dos propósitos cômicos do casamento é este: o casamento é uma boa desculpa para não fazer o que se deseja. Em outras palavras, o homem amarela diante do seu desejo, mas pode dizer que se priva desse desejo porque é casado. Na falta de coragem para assumir esse desejo, tem-se o casamento para responsabilizar.

“Sou capaz de me separar em 15 minutos, e por SMS. Mas prefiro terminar um casamento por SMS do que ter uma conversa sobre isso. Detesto DRs.”
HOMENS, MULHERES E “DRS”

Tinha essa ideia de que as mulheres seriam mais simpáticas às DRs (discussão de relacionamento) do que os homens. Mas hoje acho que não. Os homens gostam de DRs, e vejo muitas mulheres como eu, que não tenho nenhuma simpatia por isso. Sou capaz de me separar em 15 minutos, e por SMS, terminando um casamento de 10 anos. Mas prefiro terminar um casamento por SMS do que ter uma conversa sobre isso. Detesto DRs.

“Há outras concepções equivocadas, como a de que os homens são menos fiéis. Não é verdade. Mulheres são tão adúlteras quanto os homens.”
EQUÍVOCOS SOBRE OS HOMENS

Também ao contrário do que reza a lenda, os homens são casamenteiros. Dizem “eu te amo” muito facilmente – são até chatos nesse ponto, pois são sentimentalmente over. É que eles produzem vasopressina depois do sexo, o hormônio que faz com que as pessoas fiquem juntinhas. Daí porque depois do sexo os homens são capazes de dizer muita coisa difícil de aguentar. Deveriam fazer tratamento hormonal logo depois do sexo.

Há outras concepções equivocadas, como a de que os homens são menos fiéis do que as mulheres. Não é verdade. Do meu observatório posso lhes garantir que as mulheres são tão adúlteras quanto os homens.

HOMENS SÃO PLURAIS, MULHERES SÃO SINGULARES

[Jacques] Lacan dizia que a mulher não existe, e nisso ele tinha absoluta razão, no sentido de que não há uma mulher universal. Existem as mulheres, que é preciso tomar uma a uma, porque elas formam um conjunto muito menos que os homens. Se vocês observarem os conjuntos em que os homens se perdem na mediocridade do coletivo, não há mulheres. As torcidas são masculinas, os grandes partidos totalitários são inteiramente masculinos. As mulheres são muitas singularidades.

Os homens também são muitas singularidades, mas inteiramente capazes de se reunir num negócio viscoso, grudento e um pouco nojento que são as coletividades em que eles se perdem. Se o mundo fosse povoado só de mulheres, nunca teríamos tido um partido nazista, fascista ou comunista-estalinista.

Teríamos problemas, teríamos mulheres isoladamente sinistras, mas não mais do que isso. Por essa razão as mulheres são muito mais simpáticas do que os homens. Gosto das mulheres nesse sentido, não aquela coisa cafona (gosto de mulher), mas gosto de como as mulheres funcionam.

TEXTO ORIGINAL DE IG

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