Ontem estava eu a assistir a animação Shrek 2 e não pude deixar de observar a alteração pela qual passaram alguns personagens de contos de fada presentes no filme.
Só pra começar, tem um príncipe encantado, pra lá de Encantado. Não tem nada daquele jeito viril e bravo, que a gente pode constatar quando lê os clássicos de Perrault. O príncipe desse filme é bem afeminado e mimado pela mãe.
E… pasmem! A mãe do príncipe encantado, chamado Encantado, é nada mais nada menos que a Fada Madrinha. Pra vocês terem uma ideia, a Fada tem um cartão de visitas que entrega às princesas do reino “Tão Tão Distante” que tem o seguinte slogan: “A uma lágrima de distância”. Artificial? Puro merchandising? Fato é que esta Fada está bem moderna.
Essa é mais uma das sacadas e tiradas sensacionais dos criadores de Shrek, que colocaram na telona não mais aquelas personagens planas dos contos de fada. Eles optaram pelo bizarro e inusitado, onde tudo pode acontecer com qualquer personagem que ali estiver.
Vejam alguns aspectos do filme que vale a pena ressaltar:
Sobre o Ser Alguém que não é você
Importante destacar nesse filme que, tanto Shrek quanto o burro, em determinada parte do filme e graças a uma poção da Fada Madrinha, transformam-se, respectivamente, em Homem e Alazão. No entanto, essa mudança física não os deixa inebriados, eles continuam conscientes de que suas características psicológicas continuam as mesmas, apesar da mudança externa.
Trazendo pro mundo real e pro mundo infanto-juvenil: mudanças externas estão a todo momento acontecendo, seja via cirurgia plástica, seja via covers televisivos depop-stars etc., mas nem por isso as mudanças de nossa mente acompanharão as mudanças externas. Em outras palavras, é um bom exemplo da criança compreender que o legal é assumir as suas características (chata, má, pentelha) – e não mascará-las, como muitos pais acham conveniente. Seja a personalidade da criança condizente ou não com o exigido pelo mundo social, a melhor escolha é NÃO encobrir a realidade e sim, primeiramente, reconhecê-la.
Sobre o Final Feliz
Em certo momento do filme, Shrek decide buscar a felicidade (ser um humano e não um ogro) para fortalecer seu amor com a princesa Fiona, que também é uma ogra, mas às vezes vira princesa humana. O ogro decide então tomar a poção “Felizes para sempre”, para tornar-se humano e ter a tão sonhada felicidade ao lado de Fiona.
A tão clássica frase “E viveram felizes para sempre” não é a tônica do filme, mas aparece nele também. Como nos enfatiza o prof. Bruno Bettelheim, é importante que a criança tenha ciência dessa frase e veja que ela surte efeito nos contos de fada. De forma alguma, nos diz o professor, é uma forma de ludibriar a criança, nem de fantasiar. O “felizes para sempre” apresenta à criança uma espécie de vínculo sentimental com aquela pessoa que ela porventura venha a escolher como parceiro para a vida real. É uma maneira de dizer que, se a criança tiver alguém e com ela viver feliz, isso fortificará as suas emoções e seus laços interpessoais.
O “final feliz” no Shrek: Ao mudar de feição através da poção, nada muda em sua situação de batalhar para manter seu amor por Fiona. Ele continua passando por poucas e boas e tal como um príncipe – exceto pela gentileza – busca a sua felicidade com a princesa. Sem muito floreio, os dois passam por mais uma provação no amor, mas o “felizes para sempre” acontece nesse filme também. É um “final feliz” atípico, cheio de sátira e personagens dos contos de fada de um jeito inigualável, mas nem por isso a catarse não será sentida por quem assistir ao filme.
Sobre a beleza
O filme coloca em questão a beleza dos contos de fada ao escolher Shrek como personagem principal. Seria ele um anti-herói? Ogro, porcalhão, amigos mais diferentes… que raio de herói é esse?
Shrek é uma desconstrução do príncipe encantado. Num estilo desajeitado e digamos, nada gentil, ele faz o gênero de cara de malvado mas com um bom coração. De um jeito bem sutil, o filme nos traz a personagem que é feia e que tem a bondade dentro de si – algo que não foi enfatizado pelos contos de fada, que apontavam como más as personagens tidas como feias e, como pessoas belas, as personagens boas.
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(Re) vejam o filme e digam a mim se discordam ou não de algum aspecto. Pra quem estuda ou não Literatura infanto-juvenil, eu acredito que dê uma discussão bem legal, afinal, estamos lidando de uma forma indireta com o que as crianças que conhecemos ou criamos estão assistindo.
Particularmente, gosto muito de Shrek. Mas ainda tenho minhas dúvidas se esse filme não deve bagunçar um pouco a cachola das crianças, afinal só nele encontramos uma Fada Madrinha Má, um Príncipe Encantado medroso, um Gato de Botas com olhos de dar dó e um Lobo Mau e Três Porquinhos cooperando entre si.
TEXTO ORIGINAL DE GAIA CULTURAL
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