SAÚDE MENTAL

Sim, é possível ter 23 personalidades: Explicamos o Transtorno Dissociativo de Identidade

Por Luiza Belloni

Não é a primeira vez que o cinema utiliza o transtorno de múltiplas personalidades para intrigar o público. Na década de 60, Psicose, do diretor Alfred Hitchcock, aterrorizava as plateias do mundo ao colocar Anthony Perkins no papel de Norman Bates, rapaz perturbado que, na verdade, tem um transtorno pouco comum, chamado Transtorno Dissociativo de Identidade (ou TDI).

Quase 60 anos depois, o filme Fragmentado (2017), de M. Night Shyamalan, conta de maneira intensa o drama de um homem diagnosticado com esse transtorno. Kevin (James McAvoy) se divide em 23 personalidades com idades, gêneros e até doenças completamente diferentes.

O TDI é estudado há décadas pela medicina e pela psicologia, mas ainda gera dúvidas em relação a suas origens e o seu poder sobre a mente humana. Esta reportagem, que contém spoilers, busca explicar o que é esse distúrbio e localizá-lo na nossa realidade. “Não é um transtorno comum. É um fenômeno que cria uma aura de mistério, sempre retratado na literatura e no cinema porque desperta o interesse”, descreve o psiquiatra Marcos Alexandre Gebara, diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Apesar de ser uma obra de ficção, Gebara afirma ao HuffPost Brasil que o transtorno é bem retratado no filme de Shyamalan. Criar 23 personalidades é extremamente raro, mas não impossível. “Há casos descritos que têm até 60 personalidades. Quanto maior o número, no entanto, mais raro é o caso”, explica Gebara.

Origens do transtorno

O transtorno começou a ser estudado no final do século 19 por Sigmund Freud dentro dos processos dissociativos englobados na histeria. “Freud atendia pacientes histéricas e os sintomas mais comuns são os dissociativos, que podem afetar a memória e a paciente ter amnésia, assim como criar uma outra personalidade para lidar com diferentes situações. Naquela época (ele) já observava como a histeria tinha propensão de dividir a consciência”, explica o psicanalista Christian Ingo Lenz Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo).

Assim como no filme, as pessoas que sofrem desse transtorno podem mudar seu alter (personalidade) em determinadas situações com as quais não conseguem lidar.

A psiquiatria e a psicanálise reconhecem que as múltiplas personalidades são usadas como um mecanismo de defesa para fugir de uma situação de estresse “insuportável”.

A personalidade se fragmenta para lidar com situações adversas. Isso valeria para todos os conflitos que se pode imaginar, como conflitos de natureza sexual. Um personagem é mais libidinosa, mais sedutora, enquanto outra é extremamente tímida, incapaz de olhar para outras pessoas. E as personalidades se revezam conforme a situação. Se precisar ser agressivo, se precisar ser pacífico, e assim vai.Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista e professor da USP.

Diferentemente de pessoas comuns, que têm o controle de si e consciência de seus atos independentemente de situações adversas, uma pessoa com múltiplas personalidades não tem consciência de suas várias consciências. “Uma personalidade funciona de uma forma em um determinado momento e, quando há uma transposição para outra personalidade, ela não se lembra do que aconteceu”, acrescenta Gebara.

O Transtorno Dissociativo de Identidade é diferente da esquizofrenia. “A esquizofrenia incide na experiência presente do sujeito, não tem uma personalidade sobre a outra. Há uma polifonia, uma confusão de vozes e alucinações”, compara Dunker. “É como se na esquizofrenia uma pessoa ouve vozes da multidão, enquanto uma pessoa com transtorno de múltiplas personalidades ouve um dueto, uma hora canta um, outra canta outro. Nunca ao mesmo tempo.”

Em Fragmentado, Kevin, primeira identidade do protagonista, teria criado outras identidades ainda na infância, como uma ferramenta de defesa ao abuso e violência que sofria dentro de casa. Assim como no filme, a maioria dos casos de fragmentação da identidade tem relação com traumas na infância.

Uma nova personalidade costuma ser criada para enfrentar uma situação de estresse intolerável, como abuso sexual, psíquico ou físico.

Se um indivíduo tem uma situação de estresse intolerável na fase do desenvolvimento, pode ser que ela deixe uma marca ou mesmo impossibilite o ego de se estruturar de forma una, ou seja, com apenas uma personalidade, uma consciência.Marcos Alexandre Gebara, diretor da ABP

“Há uma personalidade predominante que, em determinadas situações, foge e passa para outra”, acrescenta o psiquiatra, fazendo referência à personalidade “Dennis” do filme de Shyamalan, que desenvolveu TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) por limpeza depois de sua mãe espancá-lo por ter bagunçado a casa, ainda criança.

A fragmentação das personalidades também pode ocorrer na fase adulta, diante de um grande trauma, como acidentes ou grandes desastres.

Um caso recente que chamou a atenção da psiquiatria foi de uma alemã de 33 anos, cega há mais de 13, em decorrência de um acidente traumático. Ela voltou a enxergar ao mudar de personalidade. A paciente havia sido diagnosticada com cegueira cortical, dano cerebral ocasionado pelo acidente, e recuperou sua visão durante uma sessão de terapia, ao encarnar a personalidade de um garoto. A mulher cujo nome não foi revelado pelos pesquisadores tinha Transtorno Dissociativo de Identidade.

“Aos poucos, foram identificadas mais de dez personalidades que tinham diferentes nomes, idades, gêneros, atitudes, opiniões, temperamentos. A voz, a postura e as expressões faciais também se diferenciavam. Em certos momentos, B. T. falava apenas em inglês e, em outros, apenas em alemão ou misturando os dois idiomas”, diz o artigo do psiquiatra alemão Bruno Waldvogel e do professor do Instituto de Medicina Psicológica de Munique, Hans Strasburger, divulgado na revista científica PsyCh Journal, em 2015.

A paciente só conseguia enxergar quando encarnava apenas uma das personalidades, o que provaria que o primeiro diagnóstico havia sido equivocado. A cegueira não era cortical, mas sim uma cegueira “psicológica”.

O caso da alemã , portanto, justifica a hipótese de que os transtornos neuróticos associados ao estresse podem desencadear alterações corporais, como a cegueira, paralisia e diabetes em determinadas personalidades.

“A cegueira histérica é um quadro conhecido, decorrente de estresse. Uma função é tomada por uma estratégia simbólica. Vi uma coisa que não deveria ter visto, então crio uma barreira. Quando falamos ‘psicológico’, não é mentira; a pessoa realmente fica cega, só que por razões psicológicas”, esclarece Christian Dunker, da USP.

Transtornos, gênero e cultura

O transtorno também pode estar relacionado a diferentes culturas. Nos Estados Unidos, por exemplo, há muitos mais casos diagnosticados do que na Europa e na América do Sul. De acordo com Dunker, isso acontece por causa da variação cultural — como cada cultura interpreta o sofrimento psíquico e lida com conflitos e divisões sociais. Não há números concretos sobre a incidência do transtorno no Brasil e no mundo. Alguns estudos mostram que o TDI pode afetar entre 0,5% e 1% da população.

“Pode ser especulação, mas o Brasil é uma cultura bastante sensível a religiões que têm práticas que narram estados dissociativos, como a umbanda, candomblé, espiritismo. Essa ideia de estar ‘possuído’ por outro é culturalmente aceitável no País, o que não é o caso da cultura protestante americana”, discute. “Esse tipo de dissociação, portanto, é absorvido pela psiquiatria americana e, portanto, terá mais casos que respondem a certos conflitos com ajuda da medicina e psicanálise.”

Tal teoria, porém, não é unanimidade na medicina. Para o psiquiatra Marcos Gebara, mais diagnósticos poderiam explicar os diferentes números de casos entre os países. “A porcentagem, embora baixa, é constante em todos os países. Não vemos uma prevalência em determinados países, mas um número maior de indivíduos que foram diagnosticados.”

De acordo com Gebara, a prevalência maior do transtorno é entre mulheres. Elas têm de duas a três vezes mais chance de desenvolver múltiplas personalidades.

Uma das possíveis explicações seria o fato de que elas são mais vulneráveis e expostas a abusos físicos e sexuais do que os homens. “É uma hipótese que faz sentido porque elas são mais indefesas nessas situações de estresse intolerável, principalmente na infância”, conta o psiquiatra.

Identificação e tratamento do TDI

“Não é difícil identificar uma pessoa com TDI”, explica o diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria. Segundo ele, já na infância é possível notar os primeiros trejeitos que se modificam em determinadas situações, como mudanças bruscas de voz, no discurso e na postura. “Você conhece a pessoa de um jeito e, de repente, vê de um outro jeito completamente diferente. Até as feições e o tom de voz mudam.”

Geralmente, são os familiares e professores que identificam o transtorno em alguém, uma vez que a pessoa que sofre de TDI não tem conhecimento de seus alters.

Por se tratar de um transtorno mental, o tratamento para TDI passa por consultas psicológicas e medicação para diminuir a ansiedade e angústia. “A psicanálise tenta reconciliar a pessoa com seus conflitos, técnicas que possam fazer a integração dessas personagens. A pessoa precisa reconhecer que aquilo é reprodução dela”, explicou o psicanalista Christian Dunker.

Além de lidar com os próprios conflitos, a pessoa que tem múltiplas personalidades precisa conviver com o preconceito da população, gerado principalmente pelo desconhecimento do transtorno.

“Para muita gente, o psicológico equivale à força de vontade; como se você quiser, você consegue. Mas não. Não dá para fazer isso”, encerra Dunker.

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST

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