Aos 13 anos de idade, Maria entendia pouco sobre seu próprio corpo. Demorou quatro meses para descobrir que esperava um filho – fruto da primeira relação sexual que teve na vida, com um homem de 21 anos. Até receber a notícia da gravidez, Maria não sabia como ocorre uma gestação – jamais tinha recebido qualquer orientação em casa ou na escola. Tampouco sabia que a lei brasileira configura situações como a dela como estupro de vulnerável.
No posto de saúde de Autazes (AM), município a quatro horas de distância de lancha e carro de Manaus, Maria recebeu um único atendimento psicológico. O objetivo do profissional, conta ela, foi explicar o que era ser mãe.
“Quando entendi que estava grávida, senti muito nervosismo. Pensei: não vou ser mais criança, agora eu vou cuidar de outra criança”, lembra ela, com a fala tímida, enquanto o filho, hoje com três anos, circula pela casa simples onde moram.
Maria e a criança são sustentadas pelos minguados rendimentos que a mãe dela recebe com bicos em serviços domésticos e o Bolsa Família. Sua condição não é exceção na cidade de Autazes onde, segundo o IBGE, quase metade dos domicílios tem renda total de no máximo um salário mínimo. Maria teve que deixar a escola – perguntada sobre o que gostaria de fazer no futuro, respondeu que não sabe.
Sente saudade de ser criança? “Sinto. Eu jogava bola na rua, bola de gude”. E agora? “Não…. Fico em casa e vou à igreja”, diz, enquanto revê na televisão o filme Esqueceram de Mim 3.
Aos 15 anos, dois anos após o ter o primeiro filho, ela sofreu um aborto, e agora, aos 16, acaba de dar à luz uma menina, que mama em seus braços. Depois do último parto, quis fazer uma laqueadura, mas o procedimento não é permitido para mulheres tão jovens.
Hoje, cria os filhos sozinha. O pai da primeira criança morreu assassinado. O da recém-nascida, de 23 anos, mora em uma comunidade afastada do centro de Autazes e só soube que seria pai quando a gravidez estava no sexto mês. Os dois já não estão juntos – Maria diz que ele ajuda a comprar fraldas ou talco, mas não costuma cuidar da filha. “O que pedir, ele dá, mas tem medo de pegar porque ela é muito pequenininha”.
Maria – cujo nome verdadeiro foi preservado para não expô-la, assim como o das demais entrevistadas – é uma das quase 305 mil brasileiras de 10 a 14 anos que tiveram filhos entre 2005 e 2015, segundo o Datasus (banco de dados do Ministério da Saúde), que reúne os registros de maternidades e cartórios.
Os números mostram que a gravidez entre meninas dessa idade ocorre em todo o país, principalmente nas áreas mais pobres, alcançando os piores índices na região Norte. O mais grave é que a taxa de fecundidade entre garotas nessa faixa etária não tem caído, ao contrário da tendência geral do país, em que se observa queda nos nascimentos tanto entre adolescentes (mulheres de 15 a 19 anos), quanto entre adultas (a partir de 20 anos).
Com a ajuda da demógrafa Suzana Cavenaghi, a BBC Brasil calculou que o número de nascidos vivos a cada mil mulheres entre 15 e 49 anos caiu de 58,9 bebês em 2005 para 53,6 em 2015. Enquanto isso, a taxa para meninas entre 10 e 14 anos ficou em 3,2 bebês nos mesmos anos.
Não há um banco de dados que permita ampla comparação internacional para gravidez entre meninas dessa idade. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a gestação nesse grupo etário é bem mais baixa e está em contínua queda: segundo o relatório mais recente do Departamento de Saúde americano, a taxa de nascimentos por mil garotas de 10 a 14 anos caiu de 0,6 em 2007 para 0,2 em 2015. Em 1991, era de 1,4.
Ouvidos pela BBC Brasil, especialistas das áreas de saúde, educação e direito que acompanham o tema apontam para diversos fatores que podem explicar a persistência desse quadro, com destaque para a falta de orientação sexual em casa e nas escolas.
Segundo a Unesco, o ensino sobre os temas sexualidade e prevenção à gravidez sofreu enorme retrocesso no Brasil desde 2011, quando a polêmica envolvendo o material educativo Escola sem Homofobia (que ficou tachado de “kit gay”) acabou levando ao recolhimento de todo o suporte didático para educação sexual, que era distribuído desde 2003 para crianças a partir dos 12 anos, no âmbito do Programa Saúde na Escola.
“Hoje, nessa faixa etária de 10 a 14, nada tem sido feito no campo das políticas públicas de educação e sexualidade. Não existe uma diretriz nacional. Isso acaba virando um tabu e, como consequência, temos as crianças engravidando”, critica Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil.
Para o órgão da ONU, a educação sobre sexualidade e gênero deve começar desde os cinco anos, para meninas e meninos. Isso nunca foi implementado no Brasil, diz Otero.
“A orientação da Unesco é que os assuntos sejam adaptados a cada faixa etária: o conhecimento do corpo, por que sente o desejo, o que é abuso sexual. Tendo essa informação, a criança vai saber como se proteger de uma gravidez, como postergar sua vida sexual, caso queira”.
Sem orientação, as meninas de menor renda são as mais vulneráveis, nota Maria Helena Vilela, diretora do Instituto Kaplan, especializado em sexualidade.
“Muitas vezes, nas casas mais pobres, a família inteira é obrigada a viver num mesmo ambiente. Então, pais fazem sexo e elas não só assistem, como passa a ser algo muito natural ainda cedo”, observa.
“E hoje há também muito mais mães e pais separados, em busca de novos parceiros. Essas meninas convivem em ambiente muito mais sensualizado do que antigamente, também pela mídia, músicas, televisão, internet. Mas, ao mesmo tempo em que vivem num mundo social com muita liberdade, há um despreparo da escola, da família, para encarar que elas já podem ser sexualmente ativas. Elas ficam vulneráveis pela ignorância”, afirma.
E se a escola e a sociedade não educam para evitar a gravidez, em geral também não estão preparadas para acolher as meninas gestantes, ressalta Otero.
Grávida aos 14 anos de um namorado de 19 em uma comunidade pobre de Autazes, Lúcia sofreu represálias na escola e na igreja evangélica. “Já vai abrindo as pernas, depois fica sem condição”, disse ter ouvido de um professor.
Ela não queria um filho, mas, religiosa, nem cogitou o aborto. “Sabia que era uma vida, não podia matar.”
A filha nasceu há um mês e agora ela só pode ir à igreja se ficar isolada. Foi excluída do grupo de jovens, em que participava do coral, sua principal distração. O pastor quer que ela case com o pai da criança “para voltar à comunhão e participar do grupo de senhoras”.
“Eu não sou senhora. Tenho que ter responsabilidade por causa dela, mas não tenho que ser senhora. Me senti abandonada, senti revolta”, contou.
Lúcia sente saudade do seu corpo. Os seios ficaram bem maiores, a barriga ganhou estrias. Está traumatizada com a gravidez e diz que não quer mais ter filhos. O processo de parto foi difícil, com duas hemorragias, e acabou em cesárea. “Achei que tinha morrido. Minha vista escureceu, perdi o movimento do corpo. Dor de parto vai quebrando tudo dentro da gente”, relembra.
Lúcia decidiu ter uma segunda chance na vida: vai se mudar no próximo ano para Presidente Figueiredo, outra cidade do Amazonas, onde terá o suporte de uma tia. A filha vai ficar com a mãe de Lúcia em Autazes – ela, que também teve o primeiro filho aos 14 e foi obrigada ao matrimônio, apoia a decisão da menina.
“Casamento cedo tira a liberdade. Eu vou sentir saudades da minha filha, mas lá a escola é melhor. Quero ser arquiteta, pegar ela quando eu tiver faculdade e condição de criar”, planeja Lúcia.
Especialistas no tema acreditam também que a violência sexual e a tolerância com relações supostamente consentidas entre adultos e menores de idade estão por trás da maioria dos casos de gravidez na pré-adolescência.
“Nem todos os casos nessa faixa são resultado de estupro, mas o que vemos muitas vezes são meninas que sofrem abusos sexuais durante a infância e isso acaba estimulando sua sexualidade, levando essas meninas a namorarem mais cedo, o que acaba desembocando nessa gravidez”, afirma Ana Carolina Araújo, conselheira tutelar em Ceilândia, cidade satélite de Brasília.
A polícia do Distrito Federal registrou 832 estupros de vulneráveis (menores de 14 anos) em 2016, mas Araújo acredita que a maioria dos casos não chega a ser denunciada. Essa é a mesma impressão da delegada Juliana Tuma, titular da única Delegacia Especializada em Proteção a Criança e ao Adolescente de Manaus. Ela diz que chegam para ser investigados por dia, em média, de seis a sete suspeitas de estupros de vulneráveis.
No Amazonas, a quantidade de nascidos vivos de mães de 10 a 14 anos cresceu 40% desde 2005 (maior alta entre os Estados), chegando a 1.432 em 2015.
Para o promotor de Autazes, Cláudio Sampaio, que já atuou também em outras cidades do Estado, a redução do problema virá “somente com projetos sociais, um debate maior da própria sociedade, que seja incentivado por órgãos públicos ou por igrejas, pra poder fortalecer o respeito à sexualidade da mulher e o respeito à criança”.
“Aqui no Norte, vejo uma cultura, digo no sentido de hábitos que estão enraizados na sociedade, de aceitação das relações sexuais entre crianças e adultos. Isso é considerado normal, infelizmente, e acontece até no próprio núcleo familiar, com padrastos, com irmãos, com tios”, afirma.
Mas essa solução proposta pelo promotor esbarra em outro problema que ele próprio identifica: a “ausência do poder público” em uma região distante do restante do país, de grande extensão e com enormes desafios logísticos devido à floresta.
Ele ressalta a necessidade de maior presença do governo federal, já que é comum autoridades locais estarem envolvidas em abusos. O caso mais famoso é o de Coari, cujo ex-prefeito Adail Pinheiro chegou a ser condenado a 11 anos e 10 meses de prisão por exploração sexual infantil, mas esse ano recebeu indulto (perdão) da pena e foi solto.
“O governo federal precisa cuidar das pessoas daqui, e isso não é propriamente dar dinheiro, dar um Bolsa Floresta. É preciso que o poder público venha e capacite as pessoas, para que possam desempenhar profissões, para que entendam a necessidade de respeito às mulheres”, cobra.
As três garotas com quem a BBC Brasil conversou no Amazonas relataram ter sofrido algum tipo de abuso sexual durante suas vidas, casos que seguem sem punição. Maria foi estuprada por um comerciante aos 13, quando já estava grávida. Lúcia teve a coxa acariciada por um funcionário do posto de saúde aos 12 – ele depois estuprou a irmã dela, que tinha 14.
Em Manaus, Joana, hoje com 17 anos e mãe de dois filhos, contou que sofreu seu primeiro abuso aos 5. O estuprador foi um vizinho, que pagou R$ 50 a sua mãe, viciada em drogas. Com muito sangramento, foi parar num hospital. “Meu útero saiu do lugar, até hoje sinto dores por isso”. Nada aconteceu com ele, que a abusou novamente cinco anos depois, dessa vez por R$ 100.
Joana saiu de casa para um abrigo depois de se cortar “todinha com uma gilete”. Passou por vários. “Depois do meu segundo estupro, com 11 anos, comecei a ser putinha”, conta. Sua primeira gravidez, aos 13 anos, foi interrompida com quatro comprimidos de um remédio abortivo. Na segunda, aos 14, decidiu ter o filho. O pai era seu namorado, então com 21 anos, homem que a explorava sexualmente e a induzia a se drogar junto com sua mãe.
Nascimento do primeiro filho deu a Joana chance de ser atendida por serviço de apoio a vítimas de violência sexual
“Passei duas semanas pensando com Deus se abortava. Pensei: vai atrapalhar minha vida, vai acabar minha vida de puta.”
A gravidez na pré-adolescência em geral traz efeitos negativos para as meninas e seus bebês: estudos mostram maior incidência de evasão escolar, de depressão pós-parto e de nascimentos de bebês prematuros e com baixo peso.
Entre elas, o acompanhamento pré-natal e a amamentação costumam durar menos tempo do que entre as mães adultas. São consequências da pouca maturidade e das condições sociais precárias.
No caso de Joana, a gravidez acabou tendo impacto positivo. O acompanhamento pré-natal a levou ao Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual de Manaus, onde recebeu apoio psicológico e conseguiu interromper a venda do seu corpo e, gradualmente, o uso de drogas.
Hoje ela está casada e tem uma boa relação com o pai de sua segunda filha, de sete meses. Ele tem 21 anos e trabalha com manutenção de ar-condicionado – item onipresente na fervente Manaus.
“Depois que meus filhos nasceram, veio um amor muito grande. Eu quis deixar a vida velha pra lá. Mas às vezes eu choro, quando meus filhos estão dormindo. Fica um reflexo (lembrança) na minha cabeça. Eu fico lendo a Bíblia, fico lendo, fico lendo, e só assim eu acalmo. Se eu for começar a pensar, eu fico doida”, diz ela, que é evangélica.
“Eu tenho muito sonho de que mato ele (o abusador, que segue morando no bairro da infância de Joana). Eu quero matar ele, mas se eu for pra cadeia, o que vai ser dos meus filhos? Eu penso muito nisso.”
A BBC Brasil questionou os ministérios da Educação e Saúde sobre as críticas quanto à falta de políticas públicas para enfrentar a gravidez de garotas e saber o que o governo pretende fazer para enfrentar o problema. A pasta da Educação não se manifestou. Já a pasta da Saúde se limitou a comentar as causas do problema e minimizar sua gravidade, destacando que os nascimentos nesse grupo representam 0,9% do total de nascidos vivos no país.
“A leve tendência de aumento, (da gravidez) na faixa de 10 a 14 anos, pode estar associada a vários fatores tais como violência sexual, aspectos culturais, iniquidades, falta de oportunidades, dentre outros; além disso, esse é um percentual muito pequeno, quando considerada todas as faixas etárias”, respondeu o ministério.
Imagem de capa: Shutterstock/VGstockstudio
TEXTO ORIGINAL DE BBC
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