Por Marceu Vieira
Eu tenho, no pequeno quintal da minha casa, uma planta que comprei em janeiro de 2014 na serra de Nova Friburgo. Nunca soube o nome dela. Não me ocorreu perguntar a quem me vendeu – e, se o vendedor me disse, eu não registrei, para o meu desconforto e para o meu arrependimento tanto tempo depois.
Nunca soube até hoje, quando, movido por uma necessidade difícil de explicar, fiz uma trabalhosa pesquisa de imagens na internet e descobri que minha plantinha se chama confete. Seu nome científico é Hypoestes phyllostachya.
Tão carregada de significado a minha plantinha. É só mais uma entre 20 e tantas que venho acrescentando em vasos no meu quintal, e que rego dia sim, dia não. Ou, às vezes, se faz muito calor, rego dia sim, dia também.
É só mais uma, mas tão única no seu significado.
Minha plantinha foi comprada numa viagem feliz, num tempo particularmente feliz, e tenho certeza de que ela – na verdade, ele, o meu confete – foi muito feliz comigo também.
Meu confete floresceu algumas vezes. Suas flores roxas, bem miúdas, já enfeitaram minhas manhãs e me fizeram companhia nas madrugadas em que, deste mesmo quintal, do alto da ladeira onde vivo, olho a cidade acesa lá embaixo, tão longe e tão perto, com seus mistérios e seus convites.
Fomos felizes todo esse tempo, mas, há alguns dias, comecei a perceber que minha plantinha estava morrendo.
Por ser de uma espécie que adora clima frio e úmido, não muito raro, costumava murchar as folhas pra me dizer que queria água. Regada, recobrava a vida e espreguiçava as folhas verdes com pintas cor-de-rosa – e assim avisava que a felicidade havia voltado.
Sempre que eu viajava, minha preocupação era com ela. Se a ausência fosse longa, deixava a chave de casa com alguém, pra que a regasse. As outras plantas do quintal poderiam resistir a até uma semana sem água. Ela, não. No verão, se não fosse aguada, mal podia conservar o viço por um dia.
Nos últimos tempos, apesar deste frio esquisito no Rio, a felicidade do meu confete começou a não voltar.
As folhas foram murchando, murchando, murchando, muitas amareleceram e caíram, até que, na manhã deste último dia de junho, tentei um recurso derradeiro e cortei seus dois galhos já mofinos, na esperança de que voltem a crescer e a dar folhas e flores em breve.
Sem saber direito se meu gesto traria bom resultado, saí da cama bem cedo e fiz isso. A dor da tesoura decepando os dois galhos bem finos doeu em mim.
Acordei antes mesmo de o meu capim-de-Santa-Luzia florir no quintal (tão diferente do confete, capaz apenas de uma ou duas floradas por ano, o capim-de-Santa-Luzia se exibe toda manhã, com suas pétalas azuis que duram cinco, seis horas, se muito, até fenecerem à tarde, pra voltarem a florir logo depois do nascer do sol seguinte).
Desci a ladeira com minha bicicleta, pensando no destino triste da minha plantinha e nos seus significados, e me lembrei do filme “Truman”, produção espanhola-argentina estrelada pelo brilhante Ricardo Darín, a que assisti há pouco, com atraso de uns dois meses.
O longa, bonito toda vida, fala da morte sem exibir a morte. É um drama que não faz drama. Em certos momentos, até faz rir.
Eu soube que, durante as filmagens, várias vezes, o diretor catalão Cesc Gay teve de desligar a câmera porque os atores choravam fora de hora. E a intenção do filme dele não era fazer chorar, embora quase todo mundo tenha chorado ao assistir. Eu, inclusive.
Aliás, o personagem de Darín, no único momento em que chora, dá as costas pra câmera.
Julian, interpretado por Darín, é um ator argentino de teatro que vive em Madri. Desenganado, mas ainda com vigor, apesar do câncer disseminado e já sem possibilidade de cura, ele decide abandonar o tratamento pra viver com liberdade o tempo que ainda lhe resta.
A partir daí, seu calvário não é o da doença, mas o de tentar encontrar quem possa ficar com seu cachorro depois que ele morrer. O cachorro se chama Truman e conduz toda a história.
O filme não começa com Julian. Começa com Tomás (o espanhol Javier Cámara), que viaja do Canadá, onde mora há alguns anos, na esperança de convencer o amigo da vida inteira, na Espanha, a não deixar a quimioterapia.
Na Europa, os dois passam quatro dias juntos – e é só este o período abordado numa história de profundidade lancinante.
Uma história sobre a amizade, o amor, as despedidas, a solidão, o arbítrio que todos deveríamos ter na hora da morte, e, principalmente, sobre o significado das pequenas coisas e dos pequenos gestos, tantas vezes considerados sem valor aos olhos apressados da humanidade.
Eu li que, na definição de Darín, “Truman” é um filme no qual “o não dito tem uma importância imensa”. Talvez mais do que o dito. Ele tem razão.
Quando Julian, finalmente, entrega seu cachorro ao novo dono, e faz isso de uma forma surpreendente, o que fica na cabeça da gente, por exemplo, não é aquela cena tocante. É o que o longa não mostra depois.
É como aquele homem tão apegado a seu cachorro vai poder sobreviver seus últimos dias sem Truman, que não dá um latido no filme.
Curiosamente, Troilo, nome do cachorro na vida real, morreria poucos meses depois das filmagens.
Pensei no filme por compreender que, como na agonia da minha plantinha, com todos os seus significados desimportantes na percepção da maioria, o fim de verdade de todas as histórias vem sempre depois do fim estabelecido.
O fim de verdade só chega quando o realizamos, e jamais coincide com o momento em que o desenlace foi decretado.
O fim de verdade vem mais adiante, já depois dos créditos do filme da perda, e geralmente o vivemos sozinhos. Vem depois até mesmo do luto aparente, quando ninguém já nos consola. Vem no silêncio, no “não dito” citado por Darín em sua definição de “Truman”.
Antes de se consumar, o fim dá seus avisos. Todos percebem. O fim de verdade também dá os seus. Mas só nós percebemos.
Com meu confete, tão vistoso até outro dia, não morre o significado que me prendia a ele. Foi o que compreendi ao me lembrar do comovente filme de Cesc Gay e associá-lo ao martírio sem importância da minha plantinha.
Os cachorros, as pessoas, os ciclos da vida, os amores, tudo acaba um dia. Mas a lembrança dos seus significados permanece viva por bom tempo, ainda doendo, à espera do fim de verdade.
Às vezes, a lembrança desses significados continua viva numa bola de borracha. Às vezes, numa fotografia. Às vezes, numa planta.
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Eduardo Galeano, o genial uruguaio que morreu em 2015, mas não morrerá nunca, escreveu assim sobre a finitude no seu belo “Livro dos abraços”: “Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.”