Sou visto, logo existo: Bauman e a cegueira moral

Pascal já dizia que o encontro mais doloroso da vida é entre o eu e o mim. Passados mais de trezentos anos, o homem moderno, com toda sua inteligência e exuberância, ainda teme esse encontro, pois sabe que, enxergar-se sem uma máscara, pode não ser uma experiência das mais entusiásticas.

Essa teatralidade da vida encontra na mídia e nas redes sociais o seu principal refúgio, uma vez que estas criam uma atmosfera fantasiosa da realidade, na qual os indivíduos mecanicamente domesticados acreditam. Mas não é uma fantasia no sentido lúdico-poético, que é necessário à vida, e sim uma fantasia que distorce a realidade e cria escravos do sistema.

Pouco a pouco, nós somos despersonalizados e convertidos em peças iguais de um mesmo tabuleiro. Ou seja, todas nossas características são suplantadas, a fim de que haja uma padronização social. Mais que isso, essa padronização social deve ser exposta nas redes sociais, de modo que todos vejam o resultado de um sistema que cria um exército de pessoas “felizes”.

Há, dessa forma, o que Zygmunt Bauman chama de “erosão do anonimato”, pois nós, enquanto indivíduos com características próprias, deixamos de ser, para pertencer a um grupo homogêneo e, necessariamente, público. Assim, toda a vida é convertida em um reality show, em que todos veem o que faço ou deixo de fazer, como se houvesse alguma diferença, já que, nesse modelo “integrativo”, todos falam e se comportam do mesmo modo.

“Tudo o que é privado agora é feito, potencialmente, em público – e está potencialmente disponível para consumo público.”

Entretanto, não há integração alguma, pelo contrário, há uma alienação, em grande parte voluntária, a um sistema que cria autômatos convergentes nos mesmos sonhos, desejos e sentimentos. O problema agrava-se ainda mais com a necessidade de exposição, uma vez que, nessa sociedade confessional, o cogito cartesiano ganha novo sentido, convertendo-se em um – “Sou visto, logo existo”.

Assim sendo, todos aqueles que, de algum modo, buscam fugir a essas amarras, acabam sofrendo constantemente punições de uma sociedade que tem, como pedra angular, a “liberdade”. Em outras palavras,

“A participação na sociedade confessional é convidativamente aberta a todos, mas há uma grave penalidade para quem fica de fora. Os que relutam em ingressar são ensinados (em geral do modo mais duro) que a versão atualizada do cogito de descartes é “sou visto, logo sou” – e quanto mais pessoas me veem, mais eu sou…”

Ser um indivíduo com personalidade e ideias próprias está fora de questão, assim como se negar a fazer da sua vida um reality show, preservando a sua intimidade para quem é íntimo. A modernidade líquida, o admirável mundo novo, ou como queiram chamá-lo, descaracteriza, despersonaliza e desindividualiza as pessoas, como se estas fossem produzidas em série e não possuíssem idiossincrasias que as diferenciem de qualquer outra.

Aplaudimos o desencantamento da vida, acumulando likes em pontos comum. Padronizamos o comportamento e escondemos a individualidade em um quarto escuro. Talvez seja por medo de nos sentirmos sozinhos que nos tornamos marujos de um barco que caminha sempre na mesma direção. Talvez seja pela vontade de fazer o mundo lembrar-se da nossa existência. Mas, em um barco onde todos são iguais, talvez nem você saiba quem é.






"Um menestrel caminhando pelas ruas solitárias da vida." Contato: [email protected]