Por M. V. Liy
Durante anos, Liu Chunhua foi um rosto muito mais conhecido na delegacia que no consultório de psiquiatria do hospital local. Quando ouvia vozes que lhe mandavam arremessar móveis em quem estivesse por perto, vagava sem rumo, falava sozinha ou tinha súbitas e violentas mudanças de humor, os vizinhos chamavam na hora a polícia para que a levasse e tentasse acalmá-la. Até que finalmente, em 2016, durante um desses episódios, um de seus irmãos resolveu que havia sido o bastante e levou Liu (que prefere ser chamada por esse nome fictício) ao hospital de Anding, o de maior prestígio em doenças mentais de Pequim, na China. A mulher, atualmente com 53 anos, foi finalmente diagnosticada como tendo esquizofrenia. Foi a primeira vez que sua filha de 14 anos ouviu essa palavra.
Os primeiros meses foram difíceis. Liu se recusava a tomar o remédio, queixava-se dos ruídos, tinha pesadelos em que ouvia tiros. “Queria me suicidar. Não conseguia suportar o sofrimento. Mas as vozes me diziam que nem me matando eu poderia me esconder”, lembra. Finalmente, foi internada num centro comunitário especializado. “Estava bem. A pessoa se sentia segura lá dentro. Podíamos jogar bola, cantar no coral, às vezes tecer…” Hoje, demitida antecipadamente de seu trabalho numa fábrica devido a sua doença, mantém os sintomas sob controle. É uma das sortudas no país asiático.
Nesse país modernizado a um ritmo nunca visto na história, urbanizado de forma forçada e com profundas desigualdades entre ricos e pobres, cerca de 100 milhões de chineses — cerca de 13,7% da população — padecem de doenças mentais. E o número continua a crescer, admite o Governo. Segundo dados do Ministério da Saúde, 54 milhões desses doentes sofrem de depressão. Muitos nunca chegam a ir ao médico ou receber tratamento. No caso da depressão, apenas 30% são diagnosticados; somente 10% se submetem a terapia, calcula o jornal Shanghai Daily.
A escassez de especialistas não ajuda nada a combater o problema. Em 2014 havia só 23.000 psiquiatras qualificados na China, o equivalente a 1,7 por 100.000 habitantes, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Nos Estados Unidos, essa proporção é de 12 por 100.000, por exemplo; na Noruega, 30 por 100.000.
A OMS calcula que o custo da depressão atinja na China 7,8 bilhões de dólares (cerca de 25 bilhões de reais) por ano em dias de trabalho perdidos, gastos médicos e pagamento de funerais. “Os custos da depressão são conhecidos. O que é menos divulgado é que a cada dólar empregado no tratamento da depressão a sociedade ganha quatro dólares em melhor saúde e capacidade de trabalho”, afirma o diretor da OMS na China, Bernhard Schwartländer. Só que a dotação para doenças mentais no orçamento chinês é de cerca de 1% somente.
É algo com raízes históricas. Num país que até 20 anos atrás tinha recursos muito limitados, os cuidados mentais eram secundários em relação ao tratamento de doenças fatais. As superstições tradicionais consideravam que um doente mental significava uma maldição do céu. Doentes podiam muito bem acabar presos em suas próprias casas, confinados por suas famílias para evitar comentários, ou em manicômios, em situação lastimável. Na época maoísta, quem tinha depressão era considerado traidor do regime, carente do entusiasmo exigido para participar da criação da “nova China”.
Ainda hoje persiste um enorme desconhecimento, que pode até provocar erros em alguns casos. Não é raro que a depressão seja confundida com um estado de ânimo ruim ou com algum tipo de fraqueza passageira; nada que não seja curado com boa alimentação, com disciplina ou com o passar do tempo. Também é frequente a ideia de que seja algo que acontece apenas com pessoas fracas, física ou mentalmente.
Em caso de problemas mais visíveis ou drásticos, a primeira reação de muitas pessoas é chamar a polícia, e não os médicos. “Acham que a polícia pode controlar o doente, mas os médicos não”, explica Cindy, sua filha.
Até quando o paciente reconhece os sintomas, reluta em pedir ajuda. “Têm medo que seu círculo de amigos e a família, ou seus chefes, possam não entendê-lo, que percam seu trabalho se deixarem saber o que se passa com eles. Também se preocupam que possa ser algo incurável”, explica Wu Hua, diretor da Shangshan, fundação dedicada a educar sobre a depressão.
“Na nossa cultura, o sentimento de vergonha é enorme”, explica T, um voluntário da Tulip, ONG de apoio a pacientes da depressão em Xangai. “Não somos muito tolerantes com o que é diferente. Todos temos que ser iguais, fazer as mesmas coisas. Os doentes mentais podem ficar muito isolados”, diz.
Mas essas atitudes estão mudando. O público começa a ser mais consciente do problema, graças ao cinema, à TV e às redes sociais. Cada vez mais há famosos que admitem lutar contra uma doença mental, conseguindo que a opinião pública discuta o assunto.
Zhang Jin, diretor adjunto da revista de economia Caixin, é um deles. Em 2012 precisou de um ano inteiro de consultas e várias mudanças de médico antes ser diagnosticado com transtorno bipolar, experiência que descreveu em seu livro Bypass. “Quinze anos atrás as pessoas nunca tinham ouvido a palavra depressão, agora é algo que está nas ruas”, explica.
Ainda assim, de maneira muito desigual. Doentes como Jin ou como Liu, de classe média e residentes na capital, têm mais acesso a especialistas e hospitais que os habitantes de cidades mais remotas, onde os psiquiatras podem ser uma raridade.
O Governo chinês começou a dar passos para enfrentar o problema. Em 2012 aprovou a primeira lei de saúde mental, que proíbe internar pacientes sem sua permissão. E em dezembro tornou essa questão prioritária ao dar luz verde a um documento político sobre a gestão das enfermidades psiquiátricas. O texto tenta melhorar a atenção psiquiátrica nos centros médicos, locais de trabalho e universidades até 2030.
Imagem de capa: Shutterstock/hfzimages
TEXTO ORIGINAL DE EL PAIS
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