Até onde as pessoas estão dispostas a ir em nome da preservação da própria vida? Para alguns, vale tudo. Para outros, os esforços se tornam injustificáveis a partir do momento em que a dignidade em aceitar a partida é maior do que a esperança em driblar o inevitável. Pensar nisso quando a morte parece distante pode soar mórbido e até sinal de mau agouro para os mais supersticiosos, mas se torna tarefa inevitável quando se pretende ter o fim esperado.
Mais importante ainda para aqueles que não estão dispostos a estender a vida a qualquer custo e nem se beneficiar dos avanços da medicina para tentar reverter um quadro clínico definitivo, seja ele causado por uma doença grave como câncer ou Alzheimer, ou por um acidente vascular cerebral (AVC) e até um acidente traumático.
Desde 2012, os pacientes ganharam mais autonomia para fazer esse tipo de escolha e mais garantias de que ela será acatada pela equipe médica graças à publicação da Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM). O texto da resolução prevê que qualquer pessoa com mais de 18 anos possa “definir diretivas antecipadas de vontade (…) sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.”
A diretiva antecipada de vontade pode ser comunicada diretamente ao médico de confiança ou aos familiares, mas ganha maior efetividade quando expressa por meio do testamento vital. Nesse documento, a pessoa indica como pretende ser tratada no caso de não conseguir se manifestar.
Não é necessário ser diagnosticado com uma doença grave para tomar a iniciativa. “O ideal, inclusive, é providenciá-lo antes da existência de qualquer doença. Isso porque existe uma discussão que coloca em dúvida se um diagnóstico não seria capaz de comprometer a capacidade decisória da pessoa”, pondera a advogada e doutora em ciências da saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luciana Dadalto, autora do livro Testamento vital. Qualquer indício de que o paciente não estava em sua plena capacidade de discernimento pode abrir brecha para contestação do documento, principalmente pelos parentes que não estiverem de acordo.
NÃO É EUTANÁSIA
Quem tem receios de que a escolha possa significar a supressão de tratamentos em qualquer situação clínica se engana. “Só será utilizado em casos que estão fora de qualquer possibilidade terapêutica e que não há tratamento que reverta a doença”, explica Luciana. Em seu livro Testamento vital, o direito à dignidade, o advogado Ernesto Lippmann reforça que o médico deve fazer todos os tratamentos que julgar necessários para a recuperação do paciente.
Somente se constatado que o quadro é irrecuperável ocorrerá a aplicação do testamento. “A partir daí, o tratamento passa a ser no sentido de aliviar a dor e propiciar conforto ao paciente, mas não mais de assegurar um esforço desmedido para prolongamento da vida ou para curar algo que não tem cura”, afirma o especialista.
A publicação esclarece ainda que os anseios expressos no testamento vital não podem ser confundidos com a eutanásia. Trata-se sim da ortotanásia. “Esse caso corresponde à ideia de deixar a natureza seguir seu curso sem grandes interferências. Mas em nenhum momento se pode interromper a vida”, afirma Lippmann.
Citar situações que remetam à eutanásia no testamento vital – como a injeção de remédio letal, por exemplo – pode, inclusive, invalidar o documento. “A eutanásia é proibida no Brasil. Também não podem ser citadas orientações que atentem contra o Código de Ética Médico”, alerta Luciana Dadalto.
Se houver conflito com legislação já vigente também abrem-se brechas para fragilizar o testamento. “Não é aconselhável colocar questões sobre doação de órgãos, que já tem lei própria”, afirma a médica Cristiana Guimarães Paes Savoi, de 38 anos. Por isso, procurar um médico de confiança, que conheça o quadro clínico do paciente e tenha consciência das situações às quais ele pode ser submetido, é fundamental para detalhar com precisão e clareza as situações que são ou não toleradas no final de sua vida. “É importante que a pessoa entenda o elemento técnico para ser capaz de dizer se quer ou não”, reforça Cristiana.
NA PELE
Diante da própria experiência profissional, a médica resolveu redigir o seu próprio testamento vital. “Faz-se uma lista de situações clínicas e o que será feito em cada uma delas”, explica Cristiana Guimarães. Especifica-se, por exemplo, os procedimentos que a pessoa não está disposta a ser submetida no caso de uma demência avançada, ou em uma situação em que não há perspectiva de cura. “A pessoa pode dispensar a ventilação mecânica, ou uma manobra de ressuscitação no caso de uma parada cardíaca”, pontua. Pode também trazer detalhes sobre tratamentos ou cuidados médicos aos quais o paciente deseja sim ser submetido.
Segundo Hermann Tiesenhausen, conselheiro do Conselho Federal de Medicina (CFM), a simples anotação desse desejo no prontuário do paciente já confere respaldo ao profissional de saúde. “Prevalece até mesmo sobre a vontade da família e o médico tem a obrigação ética de acatar”, afirma. Ainda há profissionais de saúde que não o fazem pela insegurança jurídica e a possibilidade de se configurar a omissão de socorro. “No caso de qualquer contestação dos parentes, por exemplo, o profissional pode recorrer ao Comitê de Bioética do hospital, ao conselho regional e ao Conselho Federal de Medicina”, afirma Hermann.
O QUE É TESTAMENTO VITAL?
Declaração escrita que exprime a vontade de um paciente quanto aos cuidados e tratamentos aos quais ele deseja ou não ser submetido caso esteja em uma situação de doença grave, inconsciente ou incapaz de se manifestar.
HÁ LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA SOBRE O TEMA?
Não, mas tanto o Conselho Federal de Medicina (CFM) quanto o Poder Judiciário já admitem a validade do testamento vital. Por meio da Resolução 1.995, de 2012, o CFM regulamentou a matéria, dando aos pacientes brasileiros o direito de definir antecipadamente os limites para a atuação dos médicos.
QUANDO DEVE SER FEITO?
O ideal é que o documento seja redigido enquanto a pessoa está saudável.
PODE SER ENCARADO COMO EUTANÁSIA?
Não. No Brasil, a eutanásia é proibida. A grande diferença entre as duas situações é que, no caso do testamento vital, o que se pratica é a ortotanásia, ou seja, a abstenção, supressão ou limitação de todo tratamento fútil, extraordinário ou desproporcional diante da iminência da morte. No caso da eutanásia, não apenas se busca a morte, como ela também é provocada por ação do paciente com a ajuda de terceiros.
PODE SER ENQUADRADO COMO OMISSÃO DE SOCORRO?
Não, uma vez que o profissional está amparado pela Resolução 1.995 do CFM. Interromper cuidados terapêuticos e limitar-se aos cuidados paliativos não incorre em punição ética no caso em que os primeiros já são inúteis.
DEVE SER REGISTRADO EM CARTÓRIO?
Não há nenhuma exigência legal para isso, mas o ideal é que seja feito para dar maior segurança jurídica ao documento. Quem quiser fazê-lo deve optar pela escritura pública de diretiva antecipada de vontade.
O QUE É MANDADO DURADOURO?
É mais um instrumento que pode ser associado ao testamento vital. Trata-se da nomeação de um procurador que ficará encarregado de levar o testamento vital para conhecimento da equipe médica e também tomar decisões no lugar do paciente. O procurador deve concordar com os termos do testamento vital e assiná-lo juntamente com o paciente e, vale lembrar, não precisa de ser da família.
POSSO VOLTAR ATRÁS?
O documento pode ser modificado ou revogado a qualquer momento. No caso de ter sido registrado em cartório, é preciso providenciar uma declaração de alteração do teor.
Fonte: Testamento vital, o direito à dignidade, de Ernesto Lippmann, Cristiana Guimarães Paes Savoi e Luciana Dadalto.
indicação da psicóloga Ana Pires
TEXTO ORIGINAL DE SITES UAI
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