Por Marcela Bianco

Quem nunca sentiu o ardido de um joelho ralado? Ou soprou um machucado pra sarar? No meu caso, se ainda hoje toco o queixo, sinto a cicatriz dos pontos que levei após uma queda brusca no corredor de casa porque sai correndo de meias. Motivo bobo, mas com consequências um pouco dolorosas, mesmo que momentaneamente e, que deixou uma pequena marca que já dura mais de 20 anos.

Dessas marcas tenho outras…ralados nos joelhos, arranhões da gata que me acompanhou durante a infância até a juventude, marca de vacina no braço, e por aí vai. Mas, para além dessas visíveis, carrego outras que ao longo da vida tem me transformado no que sou.

Essas cicatrizes visíveis e invisíveis que carregamos no corpo e na alma fazem parte da história de todo ser humano. Como em um livro, elas contam sobre nossa biografia e sobre como nos esfolamos e nos calejamos na trajetória da vida. Também falam das alegrias que ficaram gravadas na memória e que nos edificaram e transformaram nos diversos momentos de metamorfoses que passamos.

Como diz sabiamente o Psiquiatra Carlos Byington, “qualquer criança sadia logo descobre que o preço de aprender a caminhar é pago com quedas, dores e lágrimas.”

E assim, desde os primeiros passos, vamos ganhando nossas marcas, mas também exploramos o mundo, adquirimos experiência e maturidade.

É verdade que, às vezes, preferiríamos ter corpo e alma imaculados! Mas, se assim fosse permaneceríamos como verdadeiras lagartas rastejantes na busca devoradora pelo alimento, impedidos da liberdade do voo e da possibilidade de realizarmos nossa vocação e chamado de vida.

Em uma linda passagem do livro A Virgem Grávida, Marion Woodman nos conta sobre o processo de metamorfose das lagartas em borboletas. Em um dos trechos ela diz: “…descobri que a borboleta é símbolo da alma humana. Também descobri que, em seus primeiros momentos do lado de fora da crisálida, a borboleta excreta uma gota de um fluido que se acumulou durante a fase de pupa. Essa gota é geralmente vermelha e às vezes pinga em seu primeiro voo. Simbolicamente, para que libertemos a nossa própria borboleta, também precisaremos sacrificar uma gota de sangue…”

Assim, nunca mais seremos os mesmos depois de uma marca! Tudo aquilo que fica registrado no corpo e na alma, de maneira consciente ou inconsciente nos molda, nos transforma, nos influencia e nos guia para a individuação.

Algumas marcas são comuns a todos nós. Elas fazem parte dos ritos de passagem que envolvem cada fase da vida. Afinal, não há quem não tenha acordado um dia com uma espinha no rosto ou quem envelheça sem rugas, não é mesmo?

Outras cicatrizes remetem momentos de profunda alegria e transformação, como a marca da cesárea que retrata a passagem da “filha/menina” para a “mãe/mulher”. Outras são como tatuagens, frutos de uma escolha pessoal, que revelam em sua imagem o símbolo de uma ideia, de um sentimento, de uma fase da vida, de um desejo, uma dor, um amor, uma amizade, uma conquista, ou algo com significado pessoal.

Mas, existem às que são adquiridas brutalmente. Feridas visíveis e invisíveis provenientes dos traumas, dos abusos, das violências, das perdas, dos lutos e das mais diversas experiências dolorosas que podem inundar a alma humana. Elas podem se tornar verdadeiros cancros abertos que mutilam a personalidade verdadeira e nos transformam em pessoas desconfiadas, negativas, destrutivas, depressivas e desesperançadas.

Há também àquelas que são vistas como verdadeiras deformidades, das quais preferimos nos esconder e ocultar do outro. Marcas que nos envergonham e limitam a entrega em relacionamentos e na intimidade. Essas, nos desafiam a superar as aparências e as projeções para que possa ocorrer uma entrega verdadeira. E assim, recebermos, através do amor e do afeto, o alento, o conforto e a aceitação tão necessária em nossa frágil existência humana.

Mas, não podemos nos esquecer das marcas que nos protegem e que, assim como as vacinas, nos imunizam e nos fortalecem. Elas são deixadas pelo apego seguro dos nossos cuidadores, pelas boas lembranças, pelos momentos felizes, pelo amor, pelas cicatrizes cirúrgicas que salvam a vida e pelos obstáculos ultrapassados. Algumas podem até doer, mas nos transformam em pessoas melhores, mais resilientes e resistentes aos baques da vida.

Feridos, marcados e cicatrizados, todos nós seguimos adiante com nosso processo de metamorfose. Morte e renascimento, este é o chamado da vida! Se o negarmos ou resistirmos a ele, a consequência será a fixação da personalidade, o adoecimento e a estagnação. Se seguirmos adiante, em algum momento encontraremos a cura e conseguiremos então libertar nossas asas e alçarmos voos rumo à realização.

Marcela Alice Bianco – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae. CRP: 06/77338

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