Todos os dias aproximando-se da hora do almoço os gritos começam: “Arrume a mochila! Vá tomar banho! Coma tudo! Cale a boca! Você fala de mais!” e a rotina é sempre a mesma, dia após dia, gritos desesperados de alguém que busca, no seu íntimo, educar o filho para que o dia siga na mais perfeita ordem: crianças na escola sem atrasos, crianças com noção de responsabilidade.

Escolas criam rotinas para que as crianças possam ser disciplinadas pelo tempo, ou seja, as rotinas existentes visam organizar as crianças em horários e deveres para que elas fiquem o menos tempo possível ocupadas com “o que não deve”, como diz o ditado: “cabeça vazia é oficina do diabo”. Assim, foram criadas a hora da roda inicial, a hora da pintura, a hora do desenho, a hora do conto… Existem, inclusive, rotinas que incluem a hora de ir ao banheiro, o que ocasionam muitos “xixis na calça”. É verdade! Uma amiga minha relatou que o filho estava com vontade de ir ao banheiro fora da hora e a professora não permitiu, ele fez na sala mesmo e ainda levou bronca por não ter conseguido segurar “apenas 40 minutinhos”! Pois é, ele tinha 3 anos! Faltou conhecimento sobre desenvolvimento infantil e sobrou rigidez. Qual foi o argumento utilizado pela professora? “Se eu permitisse, sairia da rotina e viraria bagunça”. Não, ele não foi o único caso da sala de aula.

Veja, a rotina é utilizada como uma forma de organizar internamente a criança, para que ela incorpore os limites, as regras do espaço, seus deveres, enfim, é uma maneira de – gradativamente – ir “gravando” no corpo e na mente da criança o que pode ou não, o que deve ou não ser feito num determinado espaço (no caso a escola) e até fora dele. Nesse sentido, quando as regras estão incorporadas, as crianças – e até professores – agem como se seus comportamentos fossem naturais, vistos como normais, é o famoso “sempre foi assim”. Lembro-me de um ex-aluno (4 anos) me dizer: “Sempre acabamos a aula com historinha e não com música, tá errado!”. É, esse incorporou fortemente a rotina de tal modo que tudo que difira dela estava errado. Já pensaram sobre isso?

Pois bem, voltando ao caso dos gritos, faço um contraponto com a rotina escolar. Nesta casa, já foi instaurada a rotina do almoço, que precede – e acompanha – gritos, humilhações, stress, cansaço e dor de cabeça para ambos. Ora, mas como assim? Rotina ruim?

Sim, essa criança já se habituou com o almoço desta forma, de modo que ela deixa de fazer seus deveres para manter a “roda girando” por puro costume. Ah! Então é proposital? Não! É inconsciente! É um hábito que, de tanto ser reforçado, sedimentou-se de tal forma que não há reflexão sobre as ações, ou sobre a relação instituída. Ambos, tanto mãe quanto filho, construíram um “círculo vicioso”, que gira, gira, gira e não sai do lugar, pois é alimentado pela rotina dos gritos e pela atenção que um recebe do outro naquele momento (entre outras questões).

Por não haver reflexão a vida segue, parecendo que não há jeito: “todo dia é a mesma coisa, parece que não entende!”. Ele entende, ele sabe, mas ele – assim como a mãe – não consegue se desligar dessa rotina, pois essa é uma situação normal na vida dele, corriqueira, natural, incorporada, como se ele não conhecesse uma forma diferente de ser (e realmente não conhece, por não ter vivenciado). Foi instituída na família uma cultura e ele vive de acordo com ela – assim como a mãe. É como se o papel de filho abarcasse determinados comportamentos e o de mãe também, ou seja, “filhos são arteiros e mães são chatas”. Palavras-profecias que são incorporadas pelos sujeitos da relação, de modo que eles agem dentro do que se espera.

Toda vez que os pais falam que seus filhos são irresponsáveis, desorganizados, agitados, não fazem nada direito, bagunceiros, etc, eles reforçam um comportamento que, no íntimo da criança, acaba sendo entendido como o papel de filho, justificado pela frase: “criança é assim mesmo, é normal”. Da mesma forma, quando os pais proferem frases como: “ser mãe é brigar, é botar limite, é se estressar, é padecer”, isso reforça e legitima o comportamento dos pais. É cultural.

Recordo-me de uma amiga ter dito que se sentia uma mãe estranha porque ela não tinha do que reclamar: “meu filho não faz nada disso, será que ele é normal? Vai ver que não estou sendo muito mãe!”. Dizia que no círculo de amigas que tinham filhos, só se conversava sobre o stress da maternidade e a desobediência das crianças. Tal relato remete aos papéis socialmente constituídos: pais têm uma conduta X e filhos uma conduta Y, ambas se retroalimentam. “Isso é coisa de mãe, isso é coisa de filho”. Afinal, qual a serventia desses rótulos? O que eles acabam construindo? São realmente necessários? Precisam estar cristalizados?

Na rotina dos gritos, cada um vivencia um papel. A roda gira, como atolada na areia, quanto mais gira, mais afunda. A mãe não consegue ver, a criança não tem maturidade para perceber. Talvez seja a hora de buscar ajuda para que essa roda gire por outros caminhos, entre em outras trilhas e atalhos, mais tranquilos, mais saudáveis, mais positivos. Talvez seja o momento de mudar a rotina, de questionar os rótulos, de construir novos e diferentes papéis.

Milena Aragão

Sou formada em Psicologia (UFSC), Mestre em Educação (UCS/RS) e Doutora em Educação (UFS). Atuo com psicologia clínica e escolar, formação de professores e docência universitária. Sou pesquisadora, escritora e palestrante, amante de viagens, natureza, dança, yoga, artes e, é claro, psicologia/educação!

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