Por Francielly Baliana
Há algum tempo eu vinha percebendo que não sentia mais prazer em comer. Eu pensava em comida o tempo todo, mas o prazer, a despretensão, que era algo que eu nutri durante toda a minha vida, eu não sentia mais. Eu tinha horários, me preocupava o tempo todo em comer bem, em me manter saudável. Mas, antes de tudo, eu tinha estabelecido restrições. Sim, eu estabeleci milhares delas em minha vida quando fiz minha “reeducação alimentar”, há quase um ano.
E, como qualquer restrição, elas foram uma bomba dentro de mim, prestes a explodir. Eu nunca tinha sido magrinha, sempre tive um aspecto mais fofo, mas era muito feliz comigo mesma e com as coisas que fazia. Não me incomodava vestir nenhuma roupa, muito menos ir a um rodízio de japa no fim de semana. E nunca havia tido problemas com isso, minha autoestima era ótima. De repente, decidi que queria perder uns quilos. E foi instantâneo começar a fazer uma dieta.
Mal sabia o peso que carregaria dentro de mim a partir dali. Fazer exercícios nunca foi um problema, pelo contrário, eu investi bastante nisso. Tentei academia, mas não gostei muito do ambiente. Queria algo pra suar em contato com o mundo. Então, comecei a caminhar, e logo estava correndo quilômetros e mais quilômetros todos os dias.
Foi natural perder peso: tinha restringido praticamente todo tipo de carboidratos e gorduras da minha alimentação, e estava queimando calorias correndo. Até aí, tudo maravilhoso. Só que não: eu passei a querer ficar cada vez mais magra. Cada inchaço que eu tinha – que todo mundo tem – era um motivo pra eu pirar e parar ainda mais de comer. Eu achava que nunca seria suficiente o peso ou o aspecto físico que eu tinha. Queria sempre mais. Meu modo de olhar no espelho mudou.
Eu, que antes me sentia bem, estava feliz e saudável – sim, saudável, porque eu fazia exercícios sempre e comia com prazer, com equilíbrio, inclusive doces e pizzas, e isso, sim, é saúde -, me vi diante de um ser desconhecido, abalado psicologicamente pela busca de um padrão estético que não me trazia nenhuma alegria.
No início, todo mundo falava que eu estava mais bonita, mais viva. Mas, é óbvio, as pessoas estão condicionadas a um padrão, assim como eu me condicionei. Mas, depois, só eu mesma sei o que era olhar no espelho todo dia de manhã sem me sentir bem, numa busca incessante por determinado corpo, passando o dia inteiro com um terrorismo nutricional na cabeça, contando as calorias de todo e qualquer alimento, passando fome antes de dormir apenas pra acordar desinchada. Eu não era mais a mesma pessoa feliz de antes. Eu estava completamente perdida.
Me lembro da primeira vez em que me deixei comer sem pudores depois de todo esse processo louco de emagrecimento. Eu ganhei uma barra de chocolate e comi ela inteira. Aquilo foi a força motora pra eu comprar mais doces e comer tudo de uma vez, sem medir. A culpa que senti foi absurda. Passei o restante do dia todo, umas 18 horas, sem comer nada. Aquilo não me fez muita diferença estética no curto prazo, e meu corpo sentiu que eu poderia ter aqueles períodos de evasão mais vezes.
E assim foi: todas as restrições a que eu tinha me submetido foram explodindo, uma por uma, em dias de mais ansiedade e aflição – sentimentos que me perseguiram durante todo esse tempo. Quando vi, estava comendo toneladas de coisas que me faziam passar mal pela quantidade ingerida. Por semanas seguidas fiz isso, sozinha, sem que ninguém no mundo soubesse. A culpa vinha sempre. Eu estava completamente compulsiva, e tive sorte por enxergar isso rapidamente. As crises que eu tinha me faziam sentir falta da leveza que eu tinha anos antes, quando comia. Não conseguia me lembrar da exata sensação que era comer algo sem sentir culpa. Minha ideia era superar isso e voltar pra minha alimentação “saudável”, pra minha dieta regrada e seguir uma vida normal.
Foi quando li algo que me fez repensar em tudo isso que aconteceu, e entender que nunca, em hipótese alguma, aquela era uma vida normal. Venho percebendo que o ato de comer não é simplesmente a ingestão de determinados nutrientes, mas está completamente ligado ao espectro psicológico e social. Eu precisava ressignificar minha alimentação, pra sentir paz. O peso da dieta é maior que qualquer peso que a gente carrega no corpo. Ele tira mesmo a paz. É uma briga cotidiana em que só você e sua vontade de vida, de se relacionar consigo mesmo e com as pessoas é que vão sair perdendo. Mas, ah, então podemos comer de tudo sem peso na consciência? Sim. As pessoas podem, então, ser obesas sem problemas? É claro que não.
Nesse tempo procurando ajuda eu li algo de uma nutricionista muito especial que diz o seguinte: quando você ressignifica sua relação com a comida, você sabe que não é ela a resposta pra todas as suas angústias. E perder peso torna-se natural. Comer o que quiser, sem pensar na quantidade, é dar liberdade ao seu corpo pra se sentir satisfeito e não “ficar querendo” muito aquela coisa que você proibiu. Isso só nos torna mais compulsivos.
Praticamente todo mundo que conheci que emagreceu bastante se restringindo e sofrendo, voltou a engordar depois. Do que adianta? A longo prazo, comer sem culpa faz você usufruir de todos os benefícios que o ato social de se alimentar é capaz de trazer. Esse terror que a gente criou diante da comida é completamente louco. Levar marmita pra eventos sociais é algo mesmo muito estranho. E a gente endeusa essas “musas” fitness.
A ciência vem comprovando muitos problemas relacionados ao excesso de açúcar, mas a gente coloca isso como o único grande vilão da nossa alimentação, e corta tudo.
Sem açúcar, sem glúten, sem lactose, mas, com uma quantidade absurda de conservantes, de sódio. A alimentação rápida, completamente industrializada, a dificuldade de separar um tempo para simplesmente mastigar os alimentos, a falta do ato de cozinhar e comer em conjunto, com os amigos, a família, tudo isso, somado, é mais problemático que um simples brigadeiro de sobremesa. A gente fica criando pizza de couve-flor, brigadeiro de whey, macarrão com massa de arroz – tudo pra tapar com a peneira as vontades reais que a gente tem de comer o que a gente sempre comeu.
Minha avó comeu glúten a vida toda e viveu bem e feliz. O queijo, o doce de leite, tudo delicioso, tudo natural, que ela e meu avô faziam. E agora o problema é somente o açúcar e o trigo? Acho que nossas prateleiras de supermercado são bem mais danosas. Precisamos pensar em alternativas. E isso, sempre falando a longo prazo, pode ser mesmo muito terrível pra o corpo e a mente.
Não estou propondo que todo mundo desconsidere uma alimentação equilibrada, muito pelo contrário, é só uma reflexão sobre o fato de a alimentação ser uma consequência de toda essa estrutura social que estamos vivendo, da falta de tempo pra existir em conjunto, pra se amar, conversar olho no olho, se conhecer, realizar boas trocas. Isso traz inúmeras consequências, entre elas, a ansiedade – que muitos descontam na hora de comer. É um ciclo. A gente precisa falar sobre a compulsão, assim como a gente precisa falar sobre a depressão, sobre padrões estéticos, sobre os abusos da indústria alimentícia, farmacêutica, sobre os problemas que a infinidade de informações e tecnologias têm nos trazido. É possível direcionar isso para que nos faça bem. Claro que é.
Que haja debate, que haja abertura. Que a gente possa criar formas de convivência mais harmônicas, em que o trabalho desmedido não signifique a dignidade única do homem, que as grandes metrópoles não concentrem tudo e que não ter tempo ou levar duas horas pra chegar em seu emprego seja algo plausível e cogitável. Assim como não foi fácil soltar isso tudo aqui em forma de palavras, sobre um monstro que carrego aqui dentro, há muitas pessoas presas em suas sufocantes realidades corporais ou mentais precisando partilhar de um espaço, precisando dizer, serem ouvidas e compreendidas, serem amadas pelo simples fato de serem pessoas e terem, como todos, uma dor velada.
Que a gente possa se sentar à mesa e trocar esses alimentos reais e subjetivos, arroz, feijão e palavras, alimentos de verdade, orgânicos, que nos façam mais humanos, vivos, e que não nos transformem em meras máquinas de reprodução – de um corpo, de uma lógica, de um sistema financeiro, de um discurso. Podemos ser mais. Andar junto, de mãos dadas e sentir-se bem, como parte de um todo que pode, sim, ser mais justo e bonito. Porque, se for pra continuar assim, não sou do tipo que vai resistir ao inerente processo de seleção natural.
Sou a girafa que não alcança o topo da árvore. Ou a pessoa que não quer se tornar um robô. Minha luta contra a compulsão continua. Mas só de ter enxergado umas coisas a mais nesse processo já me sinto um pouco aliviada.
(não sou especialista em nada, esse texto foi apenas um desabafo honesto de alguém que explodiu)
TEXTO ORIGINAL DE OBVIOUS
Imagem de capa: Shutterstock/wavebreakmedia
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