Por Marcelo Galli
No dia 6 de março de 2007 morria aos 77 anos em Paris o filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard. Como ele, apesar de mais de uma dezena de livros e artigos e palestras em universidades no mundo todo terem feito o seu pensamento circular, tanto que até virou mote para um filme de Hollywood (Matrix), um olhar irônico sobre a sociedade e a força da crítica na formulação do pensamento filosófico se foram.
Contestador da afluente sociedade do consumo e dos objetos que fazem parte do seu universo exposto nas vitrines das lojas de departamento e shoppings centers das grandes cidades, Baudrillard também aponta sua pena para o mundo dos meios de comunicação de massa alimentado por imagens que não cessam de entrar e habitar o imaginário do homem nos tempos atuais.
Na visão da mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ondina Pena Pereira, a importância do pensamento de Jean Baudrillard é inestimável para aqueles que se recusam a embarcar de olhos vendados nas narrativas sedutoras da sociedade contemporânea. “Somos (na obra dele) convidados a participar de um ponto de vista que torna irrisórios os argumentos em defesa da contemporaneidade: um mundo pragmático onde, sob o império da lógica econômica, da produção e da hegemonia dos códigos, cria-se um sistema capaz de neutralizar e tornar inútil toda a atividade crítica, inclusive a atividade crítica teórica”, acrescenta.
OS PRIMEIROS PASSOS
Formado pela Sorbonne em língua alemã, ele lecionou a disciplina em diferentes escolas secundárias na França até 1966, além de traduzir para o francês, durante o período, textos de dramaturgos germânicos como Bertold Brecht e Peter Weiss. Em 1968, sob orientação do filósofo Henri Lefebvre, ele conclui a sua tese de mestrado “O sistema dos objetos”, na qual problematiza o lugar que mesas, televisões, carros e bolsas, por exemplo, ocupam o cotidiano das pessoas. Questiona Baudrillard no primeiro parágrafo da introdução do trabalho: “Poderemos classificar o luxuriante aumento do número de objetos como o fazemos com a fauna e flora, completo com espécies glaciais e tropicais, mutações inesperadas, e variações ameaçadas de extinção?” A resposta para a pergunta é sim, e o filósofo vai além.
Para ele, quando alguém compra uma bolsa Louis Vuitton ou um tênis Adidas ou ainda uma televisão LG 48 polegadas com tela plana e um aparelho de DVD Blue Ray de última geração ou um aparente exclusivamente meio de locomoção (carro), na verdade leva para a casa ou deixa na garagem um símbolo. Isto é, expressa um estilo de vida, um modo de enxergar o mundo e diferenciar e distinguir e se afirmar uma pessoa da outra ou grupos de outras formações sociais, calibrando positivamente ou negativamente as escolhas. Já parou para pensar o que representa um carro, além de te levar da casa ao trabalho ou para uma viagem pelo litoral?
É o simbolismo do individualismo e espírito de liberdade defendidos pela modernidade, bem como um objeto que seduz, dá prazer, concede status, poder e desperta a ambição dos indivíduos.
Tanto que o escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936) chegou a dizer que o fruto da engenhosidade da raça humana é na verdade criação do diabo.
“Utilizando a sedução irresistível, o egoísmo e a ambição por status dos seres humanos, alcança o objetivo diabólico de gerar o caos nas cidades, o congestionamento das vias, a impossibilidade de estacionar, tudo seguido da paralisação da vida urbana”, lembra o urbanista paulista Jorge Wilheim, em artigo na Folha de S. Paulo de 28 de julho deste ano, para comentar a situação do trânsito na maior cidade do Brasil. Na visão do filósofo francês, o carro é onde é possível discernir com mais facilidade o conluio entre o nosso sistema subjetivo de necessidades e o sistema objetivo da produção.
“O carro revela o objeto (…) a apresentação abstrata de qualquer finalidade no sentido de velocidade e prestígio, conotação formal, técnica conotação, diferenciação, catexia emocional, e projeção de fantasia”, escreve. O homem se incorporando a uma máquina, o mito grego do Centauro atualizado e revisado. Durante algum tempo, Baudrillard se estabelece como docente da Universidade de Nanterre, local de onde emergiu importante movimento de contestação juvenil que desembocou no agitado Maio de 68 na França e no mundo, lecionando um curso sobre a disciplina.
Permanece na instituição até 1986, quando se transfere para o Instituto de Pesquisa e da Informação Sócio-Econômica (IRIS), da Universidade de Paris-IX Dauphine. Na sua obra seguinte, “Sociedade do Consumo: Mitos e Estruturas” , de 1970, o francês mergulha ainda mais fundo na dinâmica dos objetos no mundo contemporâneo e relaciona aqueles ao universo das compras: “É preciso deixar claro desde o início que o consumo é uma forma ativa de se relacionar (não só com objetos, bem como com a sociedade e o mundo), uma forma de atividade sistemática e resposta geral que sustenta nosso sistema cultural como um todo”, revela.
Ele vai mostrar na obra de que maneira as grandes empresas vão forjar irrepreensíveis desejos, criando novas hierarquias que substituem as tradicionais diferenças de classes. O ato de comprar, de ter coisas, transforma-se dessa maneira em um novo mito tribal, a moral dos tempos modernos, acrescenta. Para ficar ainda no campo automotivo, o que Baudrillard quer dizer é o cerne da crônica descontraída dos cariocas irmãos Valle no disco “Mustang Cor de sangue, Corcel cor de mel”, do final da década de 1960, quando o Brasil começa a entrar para valer na era do consumismo e da sociedade de massa: “a questão social, industrial, não quer que eu ande a pé, na vitrine um Mustang cor de sangue.”
Dessa maneira, a informação é também uma mercadoria, ou ainda artífice de tendências de consumo ou “criadora” de modas. Os meios de comunicação também alimentam, assim, o sistema capitalista na sua essência mais profunda, isto é, de criar cada vez mais necessidades, para se elaborarem mais soluções e produtos, perpetuando a dinâmica dos meios de produção e fazendo o capital circular. E a indústria fonográfica, do cinema, em suma, do entretenimento, também fazem parte dessa máquina.
Como escreveu Karl Marx no seu ensaio “Manuscritos econômico filosóficos”, de 1884 – também conhecido como “Manuscritos de Paris”, cidade na qual residia na época o filósofo alemão – no interior da propriedade privada: “Cada homem especula sobre como criar no outro uma nova carência, a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em nova sujeição e induzi-lo a um novo modo de fruição e, por isso, de ruína econômica.” MÍDIA Sendo os meios de comunicação um dos pilares do sistema vigente, no caso o capitalismo, é de se esperar a difusão das suas ideias por meio dos seus veículos. E até o tempo livre e de lazer é travestido em momento de consumo. É a culpa de nada fazer versus o imperativo do consumo; e também tempo de não pensar e fugir do dia a dia. Baudrillard também era fotógrafo.
E, ironicamente, foi um ferrenho crítico da proliferação de imagens no mundo contemporâneo e sua influência no cotidiano dos sujeitos e de que maneira estes enxergam o mundo e a realidade, e desenvolveu a teoria sobre a simulação e simulacro em livro homônimo de 1981. Para ele, o fenômeno faz com que seja criada uma espécie de “hiper-realidade”, que não é nem o objeto retratado nem tampouco a sua reprodução. “Atravessando um espaço cuja curvatura não é mais aquela do real, nem da verdade, a era da simulação é inaugurada pela liquidação de todos os referenciais”, analisa.
Sendo o funcionamento da sociedade apoiada em um sistema desse tipo, a dominação torna-se mais fácil, mas que por sua vez opera por uma complexa lógica e que esconde tal condição, não distinguindo dominados e dominantes. Ondina explica que o que faz a distinção entre a dominação e a hegemonia é a falência da realidade: “A globalização, que na verdade nada mais é do que a hegemonia de uma potência mundial, só pode ocorrer nesse contexto do virtual e das redes”, diz. Isso ocorre porque ela precisa simular uma homogeneidade, uma igualdade entre as culturas e entre os povos.
“A simulação só acontece porque os signos estão esvaziados de sua substância”, acrescenta. A potência mundial em questão são os Estados Unidos, que a partir da queda do muro de Berlim, em 1989, e o fim do bloco soviético, afirmaram-se mundialmente como nação global e hegemônica. Na obra em questão, o filósofo diz que a Disneylândia é um modelo perfeito de todos os elementos do emaranhamento de uma obra de simulacro, com todos os seus “fantasmas e ilusões”, como piratas e o mundo futurista, atraindo multidões porque representa ou emula um microcosmo social, uma miniatura dos prazeres da “América real”, do idealizado modo de vida e pensar do estadunidense, com suas alegrias e repressões. E ao mesmo tempo o parque temático criado por Walt Disney e seus personagens, apesar de sustentarem uma ideologia, esconde a verdadeira América, com seus paradoxos e imperfeições.
PENSAMENTO INTENSO
Foi no começo dos anos 1990, momento em que o francês começa a escrever regularmente para importantes publicações da imprensa, principalmente francesas e anglosaxãs, que sua fama transpõe a fronteira acadêmica e ele se transforma em celebridade intelectual. Uma série de textos publicados no “Libération” e “The Guardian” entre janeiro e março de 1991, sobre a Guerra do Golfo, em que ele chega a negar a existência do conflito, contribuíram para que ele ganhasse ainda mais publicidade A guerra que se deu no Golfo Pérsico, porque o Iraque não acatou a resolução do Conselho de Segurança da Organizações das Nações Unidas (ONU) que exigia a retirada das tropas de Bagdad do Kwait, sendo invadido pelos Estados Unidos (com a ajuda de Reino Unido e outros países) logo em seguida, foi, para Baudrillard, ao menos se comparada com conflitos anteriores até então, não convencional, porque na verdade não foi travada homem a homem, mas sim, por parte dos ocidentais, através da tela do computador ou da televisão. O conflito pela primeira vez na história recebeu cobertura televisiva 24 horas por dia e sete dias por semana pela CNN, que levava todos os dias aos lares cenas que remetiam a jogos de videogame e filmes de Hollywood, de alvo à distância sendo atingidos pelos armamentos ultramodernos, os chamados “ataques cirúrgicos” estadunidenses e britânicos.
Nem um soldado morto no chão de batalha, ao menos do lado ocidental, o que, pelo efeito das imagens geradas, fez com que um evento sangrento e que matou milhares de iraquianos fosse considerado por alguns como “guerra limpa”. Um de seus últimos grandes debates foi originado mais tarde, quando dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, o filósofo provoca polêmica mais uma vez. Ele subverte a lógica de que o ataque às torres gêmeas em Nova Iorque tenha sido uma ação de resistência vinda de fora do mundo ocidental, no caso do Islã, como resposta aos desmandos das grandes potências contra países e povos cujo Deus é chamado de Allah e têm Maomé como profeta.
Para ele, o incidente foi criado pelo próprio Estados Unidos, por esse motivo vai considerar que na verdade na manhã do dia célebre houve “o suicídio das torres gêmeas”.
TEXTO ORIGINAL DE AMIGOS DE FREUD
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