Por Catia Rodrigues
A gente nasce colado na mãe. Literalmente. Assim começa a vida: a gente é nutrido e protegido em outro corpo. Vai ver é por isso que quando sai, e cortam aquele cordão que nós liga à nave mãe, a gente chora: pelado e com frio, aquela luz ardendo os olhos e o ar rasgando pra dentro dos pulmões pela primeira vez, solto num espaço tão amplo, e tão fragilmente desprotegido. É pra chorar mesmo.
Blá. A gente sai sem consciência de nada disso, eu acho. Mas a gente sente. E, de repente, alguém nos envolve num cheiro e batimento cardíaco conhecidos, um aconchego gostoso de se estar… é bom estar junto novamente. E a gente ama na mesma hora aquela pessoa que vamos aprender a chamar por mãe, um nome universal. Talvez, para não dizer o nome de Deus em vão, devêssemos todos nos referir a ele por “Mãe”, mãe de todos nós.
Enfim. Acontece que nascer significa, quase que imediatamente, se desvincular da mãe, daquela unidade que com ela fomos desde o início da nossa formação fetal. Ao nascer, ficamos sozinhos. E isso se dá no plano mais concreto possível: o que nos liga ao outro é cortado e dispensado. E ainda por cima nos deixa um buraquinho na barriga.
Alguns de nós tem a sorte de mamar no seio materno, o que prolonga essa ligação física. Mas não tem jeito: a partir do dia em que nascemos, vamos sistematicamente nos desligando da única pessoa com quem realmente temos uma ligação palpável. E isso dá medo. Uma tremenda angústia. O escuro assusta. A ausência apavora. A solidão parece que nos mata. E choramos. E somos confortados pela mãe e outros amores que a vida vai nos apresentando. E claro que isso é bom. Aprendemos a ser amados e acolhidos.
Mas aí mora um perigo. Aprendemos também, sem querer, que estar bem é estar com os outros, é estar acompanhado, é ser aceito. E acabamos por fazer loucuras para nos sentir incluídos em grupos e meios que nem de longe servem à nossa singularidade. A qualquer preço, “alguém fica aqui, junto comigo, por favor”: só para não lidarmos com a tal vilã do mal, a solidão. Acabamos por aprender, subjetivamente, que o amor vem do outro, e que estar só é sinônimo de abandono. E isso é uma ilusão que nos aterroriza vida afora, sem razão. Ficamos a sentir o mal estar no meio da multidão, sem saber o motivo ou a solução.
Acontece que ninguém aqui é mais um frágil bebê. Nossas necessidades básicas continuam as mesmas, é claro. Mas nossas competências, capacidades e habilidades, via de regra, são milhares de vezes maiores, o que nos garante autonomia.
Isto quer dizer que, com a aprendizagem e o conhecimento, vamos desenvolvendo condições de dirigir as nossas vidas cada vez mais independentes dos outros: não que preciso que alguém nos alimente, nos cuide e proteja. A necessidade de nos relacionar existe, mas como troca e aprendizado, reconhecimento existencial para manter o equilíbrio mental e, apesar de muitas vezes ser um delicioso prazer, a convivência humana não tem mais a função de nos assegurar segurança e sobrevivência.
A real é que na vida somos todos sozinhos, mas podemos estar acompanhados e acompanhando muitas pessoas nos diferentes momentos da vida. Por escolha, sem medo de estar bem só consigo mesmo. O “buraco” na barriga, que não é só o umbigo, se chama angústia. E ela é bonita na sua essência, e tem importância para nossa existência. A angústia nos mobiliza, nos indica que algumas acomodações feitas pelo caminho estão com o prazo de validade expirado.
E, do mesmo lugar de onde ela pulsa de dentro de nós, emerge também a nossa criatividade, a intuição e a subjetividade que nos tornam únicos. Não vale a pena tapar esse buraco na alma. Mas só podemos mergulhar e desfrutar da sua beleza quando aprendemos a nadar na imensidão do amor – não o amor do outro, mas aquele amor que temos dentro de nós para nós mesmos, no prazer da própria companhia. Descobrir que ser sozinho não é sinônimo de estar sozinho, e que na solitude da própria existência somos plenos, transcendemos em direção ao Sagrado. É nessa hora que percebemos um dos grandes tesouros da vida: podemos estar com os outros, mas sempre somos só “eu mesmo” – e isso é o suficiente para se viver.
Imagem de capa: Shutterstock/samunya
TEXTO ORIGINAL DE OBVIOUS
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