Por Carolina Mendes
É um descolamento de si. Como uma experiência extra corpórea em que você se desprende do seu corpo e observa o mundo de uma distância estéril. Nem é distância na verdade, é de fora. As conversas não te interessam, as pessoas não te interessam e você sofre se obrigando a ter uma vida normal. Mesmo que dentro da sua cabeça exista uma sirene avisando que um tsunami está vindo, você teima e o volume da sirene vai crescendo até ficar ensurdecedor. E aí para.
Começa com uma sensação de inadequação, de incompetência ou inabilidade para lidar com as coisas que aparentemente as outras pessoas tiram de letra. Um incômodo, mas ainda não é nada de grave. E você fica distraído, e negligente. Começa a esquecer compromissos, portas destrancadas, gavetas abertas. Fica desastrado e começa a quebrar mais copos do que jamais quebrou. E esquece as senhas do Gmail que você usa há anos, todos os dias.
Essas falhas vão minando o dia a dia. Depois, vem a sensação de solidão, e a tristeza de não pertencer. Note que isso independe da paciência ou sensibilidade daqueles que te cercam. E você percebe a preocupação, ou irritação ou os transtornos que está causando, mas não vê modo de sair disto. Passa a achar que é um traço da sua personalidade, não percebe que você não necessariamente é assim, mas está assim.
Aí a sensibilidade vai ficando mais e mais aguçada, e conforme você se distancia da realidade, vai criando sua percepção pessoal e fragilizada de tudo, passa a interpretar o mundo de acordo com a sua óptica distorcida, e parece que tudo conspira contra você. E nada dá certo e ninguém te entende.
Uma vez dentro da espiral paranoica, o descolamento piora e você perde entre outras coisas a noção temporal. As horas se arrastam, ou escorrem pelos dedos numa velocidade que te deixa ainda mais isolado. Como se você estivesse caindo e ao mesmo tempo que a velocidade da queda faz o ar te sufocar, cada segundo de pensamento parece durar horas. E cada coisa que acontece desencadeia uma montanha de sentimentos. E você fica exausto. Tudo passa a ser uma batalha.
Outra questão temporal é que você perde a noção pontual do momento. Seu passado e seu futuro não existem mais, vira tudo um filme daqueles que você lembra que viu, mas não lembra exatamente quando ou como termina. Tudo que você tem nesse momento da doença, é a sensação de ser um balão solto numa tempestade tropical. Você sabe que não quer cair, mas que não tem mais muito tempo.
Quando eu tinha 22 anos eu fui diagnosticada com TAG — transtorno de ansiedade generalizada. Eu sei que parece algo inventado, mas não é.
Sabe quando você está vivendo um período de estresse? No trabalho ou na vida pessoal, e isso afeta seu sono, seu apetite, sua sensibilidade? E parece que seus instintos ficam aguçados e seu corpo pronto para briga? Como se você estivesse numa selva e visse um leão, seu corpo e sua mente te colocam num estado de atenção redobrado, e potencializa sua percepção. Então, eu estou assim faz 30 anos.
Uma das manifestações do tal TAG é a depressão. Descrevi como a minha depressão começa e evolui. Existem ainda no pacote fobia social, síndrome do pânico, insônia, compulsão por comida, compulsão por sexo, compulsão por álcool. Eu não tive todos esses sintomas, mas vivo com a possibilidade de um dia ter. Porque eu fui diagnosticada. Eu cogito a possibilidade de fraquejar, ou ter uma crise porque eu fui diagnosticada. Mais que uma fraqueza, eu considero uma libertação. Sair do quadradinho de pessoas que bradam: “comigo não”. Comigo tomara que não aconteça de novo, mas pode acontecer.
Tomei uma infinidade de remédios durante alguns anos. Para frear a espiral descendente, ou tirar o nariz da poça de merda em que a doença me enfiou. Invariavelmente, depois de algum tempo os sintomas voltavam, a dose era modificada até que o remédio parava de funcionar. Next! Um comprimido mágico atrás do outro, até eu aprender a perceber a coisa desandando antes de ficar insuportável e gritar por socorro antes de começar a cair.
Uma vez que essa dinâmica pré-crise se estabeleceu, eu consegui encontrar estabilidade suficiente para parar com os remédios. É verdade que a insônia aparece de vez em quando, mas tenho autorização e remedinhos para domar a danada quando passa da terceira noite.
Me considero, assim, uma doente mental estabilizada e em observação. Hoje eu conheço meus demônios, e vigio eles bem de perto. Convivemos em harmonia, e quando eles falam alto, eu grito mais alto e eles voltam pro cantinho deles.
Tenho visto ultimamente uma onda de opiniões equivocadas a respeito dos chamados tarja preta, de comentários babacas e antagônicos. O povo que acha lindo estar sendo medicado, e o povo que acha que é tudo falta de um tanque de roupa para lavar. Me desculpe, mas, se você se encaixa em um destes grupos, você é um idiota. Pior: um idiota que deveria ser, mas não está medicado. Ou mal é cuidado, que seja.
E se, de fato, todo mundo precisar de uma ajuda pontual para lidar com a vida e as pessoas? Muita coisa mudou, os remédios melhoraram e a vida passou a ter um ritmo humanamente insuportável. Não é fácil para ninguém, e toda ajuda é bem-vinda. Ajuda, pontual e precisa. Drogas para tratar de um pé quebrado, não uma bengala para a vida. A menos que seu caso seja realmente de bengala, aí compre uma bem bonita e use sem vergonha.
Sem alarde e sem coitadismo. Não é bonito ser do clube tarja preta, mas não é nada além ou aquém de ser humano. De ainda sentir e sofrer e reagir e chorar e brigar. Você usa óculos? Eu às vezes uso Ritalina e Rivotril. Tenho bronquite também, e uso Aerolin. A dificuldade é encontrar um médico que tenha competência e sensibilidade para te tratar, da forma que for melhor para você.
Eu sei o eterno nó no peito que eu tinha antes de encontrar um médico que entendesse o que eu tinha, e principalmente me ajudasse a compreender e viver com isso. Nó era no peito e não na garganta. Não chegava na garganta. O mal-estar subia do estômago e parava no peito. E a voz não saía e as explicações não eram convincentes para mim ou para os que me cercavam. E eu não conseguia nem chorar mais.
A psiquiatria, que hoje é vista como indústria da depressão, salvou minha vida. Não que eu estivesse à beira da morte, mas me fez voltar a postar os dois pezinhos no chão.
Prazer, meu nome é Carolina e meu diagnóstico final é: sou humana. Tenho angústias, incertezas, inseguranças e uma montanha de emoções intensas. E eu posso cair. Está no meu diagnóstico: eu posso fraquejar.
Imagem de capa: Shutterstock/Rawpixel.com
TEXTO ORIGINAL DE REVISTA BULA
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